Por Rita Lisauskas, no Estadão/Geledés
O nascimento de Pedro foi um pesadelo para a mãe dele, Milena Caramori, na época com 23 anos. A engenheira florestal chegou ao Hospital Sorocabana em Botucatu, interior de São Paulo, depois de uma madrugada em trabalho de parto. Teve as pernas amarradas e, por isso, não conseguia fazer força o suficiente para dar à luz.
Para “ajudar” o bebê a nascer a enfermeira subiu na barriga de Milena espremendo o ventre dela com o peso de seu corpo (a manobra de Kristeller é sabidamente responsável por lesões sérias na mulher e, por isso, desaconselhada há décadas). Mas o pesadelo não terminava por aí. Sem nenhuma anestesia, a médica fez uma episiotomia em Milena, ou seja, cortou o períneo, região entre a vagina e o ânus, para ampliar o canal de parto e também “ajudar” o bebê a nascer. “Eu gritava. Eu só conseguia gritar”, lembra. O parto foi assistido por diversos residentes e o marido de Milena foi deixado de fora “porque a sala estava lotada”. Pedro nasceu e um residente foi incumbido de fazer a sutura, ainda sem anestesia. Foram sete pontos, que tiveram de ser refeitos. “Ouvi a médica dizer que estava tudo errado, que era para refazer”, lembra.
“Desde a década de 80 existem evidências científicas sólidas indicando que a episiotomia traz à mulher mais danos do que benefícios”, afirma Simone Diniz, médica e professora de saúde materno-infantil na Faculdade de Saúde Pública da USP, Universidade de São Paulo. “A mulher tem mais dor no pós-parto e maior demora ao retornar à vida sexual. Por isso o uso rotineiro foi formalmente desaconselhado já que piora a vida das mulheres, dos bebês e também dos maridos”, completa. A episiotomia, contudo, está incluída no pacote de assistência ao parto do SUS, Sistema Único de Saúde como parte do atendimento padrão. Também é amplamente praticado nos poucos partos normais feitos na rede particular.
A pesquisa “Nascer no Brasil”, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz, mostra que no período de 2011/2012 mais da metade das mulheres que optaram pelo parto normal sofreram esta intervenção. Diante do risco desses danos genitais, muitas mulheres terminam preferindo uma cesárea. “Mesmo quando as mulheres manifestam verbalmente ou por escrito a sua vontade de não ter uma episiotomia, não raro esta cirurgia é feita contra a vontade delas”, afirma a médica.
Foi o que aconteceu com Natália Leal, 25 anos, mãe de Pietro. “Passei a gestação toda falando pra minha médica que não autorizava nenhum tipo de intervenção e ela aparentemente concordou”, lembra. Na hora em que a filha estava para nascer no Hospital Ipiranga, na cidade de Mogi das Cruzes, em São Paulo, Natália viu a médica pegando um instrumento que não sabe dizer se era uma tesoura ou bisturi. “Disse que eu não queria ser cortada”, conta. “Ela me pediu que ficasse calma e que era só um ‘pique’ pra ajudar meu bebê a nascer. Na hora as lágrimas escorreram e eu quis gritar, levantar dali, sair correndo, mas não deu tempo. Senti o corte e na contração seguinte meu filho nasceu”, lembra. Natália diz que sente dores durante as relações sexuais até hoje.
Milena e Camila ainda ouviram suas médicas darem uma ordem inusitada aos residentes. “Ela pediu que ele desse também ‘o ponto do marido’, que eu não sabia o que era”, lembra Milena. Camila urrava de dor enquanto o tal ponto era feito. O “ponto do marido” é um “ponto a mais” feito para deixar a vagina mais fechada que o necessário. “Em tese para que o homem tenha mais prazer sexual”, explica a médica. Só que uma vagina apertada demais é um tormento para a mulher. “É um resquício de uma visão machista, um vexame, além de obsoleto, incorreto e agressivo”, resume.
O corte no períneo e o “ponto a mais” impediram Milena e o marido de voltarem a ter relações sexuais satisfatórias. “Todas as vezes que transava era com muita dor. Isso durou mais de um ano e eu passei a não me interessar mais por sexo”, conta. O marido começou a sentir ciúmes, começou a duvidar da fidelidade dela. Três anos depois, o casal se separou.
No pós-parto Camila não conseguia se sentar para amamentar a filha ou ficar de pé para dar banho na bebê. As relações sexuais só foram possíveis oito meses após o parto e até hoje, quase três anos depois do nascimento de Isabella, ainda são muito doloridas. Camila procurou ajuda e ouviu da ginecologista que precisa de uma cirurgia plástica no períneo, mas não tem condições de pagar pelo procedimento. “Eu me sinto humilhada porque fui mutilada sem necessidade alguma. Meu parto foi rápido”, lembra. O casamento está estremecido. “Minha libido diminuiu e eu não tenho vontade de fazer sexo. Ter relações sexuais com dor não é fácil”.
“Não há justificativa para episiotomia de rotina. Ela é recomendada de 15 a 30% dos casos, apenas quando há evidência de sofrimento fetal ou materno”, garante a médica. “A grande maioria das mulheres pode ter um parto vaginal seguro e satisfatório com melhor tônus vaginal após o parto do que antes se receber assistência baseada em evidências científicas e forem respeitados os seus direitos sexuais e reprodutivos”, completa Simone Diniz. Existe a possibilidade de laceração do tecido do períneo na hora da saída do bebê durante o parto normal, e aí sim os profissionais que acompanham o procedimento têm de fazer a sutura. Mas geralmente são menos pontos do que os necessários para fechar o corte da episiotomia.
Milena se casou de novo e teve mais dois filhos. Conseguiu que o marido estivesse ao seu lado nos partos seguintes, não foi amarrada pelas pernas ou sofreu a manobra de Kristeller, episiotomia ou “ponto do marido”. “Meus filhos mais novos nasceram pelo menos meio quilo mais gordinhos que o Pedro”, conta. Mesmo assim nenhuma intervenção foi necessária no parto normal. A vida sexual dela e do marido vai muito bem, obrigada.