Alexandre Araujo Costa, Correio da Cidadania
As lamúrias em torno do anúncio, por parte da Petrobrás, de que não daria continuidade ao projeto da Refinaria Premium II, levaram praticamente toda a grande mídia local (como o Jornal O POVO, cuja capa é mostrada abaixo) e políticos (como Tasso Jereissati), visceralmente alinhados aos interesses dos mais ricos em nosso estado, a um queixume em coro uníssono (isso para não falar das próprias declarações do governador cearense Camilo Santana).
Sem que isto represente, de minha parte, nenhuma solidariedade ao governo federal e estadual, que propagandearam a refinaria, iludiram e capitalizaram em cima da promessa, há algo muito mais importante em jogo.
A sociedade cearense tinha a obrigação de rejeitar a presença de uma refinaria em seu território em pleno século 21. Como se já não bastasse a Térmica do Pecém, que aumentou sozinha as emissões de CO2 do estado em 15% e usa 1000 litros de água por segundo, a Refinaria iria aumentar em muito essas cifras (as estimativas são de que ela também demandaria 1035 litros/segundo, calculados a partir da projeção de processar aproximadamente 300 mil barris de petróleo por dia, sendo que um barril equivale a 119,24 litros e que um litro de petróleo requer tipicamente até 2,5 litros de água no processo de refino).
Caso ela viesse a se instalar, ao lado da termelétrica e da siderúrgica, somente essas três empresas requereriam, juntas, mais de 10 milhões de litros de água por hora, o que implicaria no estabelecimento de uma demanda hídrica da mesma ordem de grandeza daquela associada à cidade de Fortaleza inteira, como discutimos anteriormente em nosso blog e como, sem nenhum pudor, anunciava o próprio ex-governador do Ceará e hoje ministro da Educação, Cid Gomes.
Mas, como se não bastasse o consumo de água e as emissões associadas, não apenas no próprio refino, mas, claro, na queima ulterior dos derivados do petróleo gerados na refinaria, há questões de impacto ambiental e de saúde humana extremamente sérias, que estão associadas a esse tipo de indústria. Por sinal, sérias e entrelaçadas.
Há evidências cada vez mais incontestáveis de aumento da incidência de câncer nas proximidades de refinarias, em função da contaminação ambiental por produtos tóxicos. Por exemplo, o benzeno, um composto volátil bastante comum no processo de refino, é um agente cancerígeno conhecido (no organismo, ele sofre reações químicas de oxidação, produzindo um novo composto, que é mutagênico, na medida em que reage com o DNA) e provavelmente é um dos principais vilões no aumento da incidência, principalmente, de leucemia/linfomas.
Como divulgado pela Science Daily há cerca de um ano e meio, pesquisadores de um programa de estudos de linfomas na Universidade Emory, usando dados públicos da EPA (Agência de Proteção Ambiental dos EUA), investigaram a possível relação entre ocorrência desse tipo de câncer e a presença de refinarias, que liberam benzeno no ar e água circunvizinhos. As conclusões a que chegaram são no mínimo incômodas, havendo uma relação clara entre a distância das refinarias e a ocorrência de linfoma, ou seja, com aumento da incidência quanto mais próximo se chega delas.
Nas palavras de uma das pesquisadoras do grupo: “esperamos que nossas pesquisas informem aos leitores sobre o risco potencial de se viver próximo a instalações que liberam agentes carcinogênicos no ar, lençol freático ou solo”.
O que acontece, porém, é que a localização dessas empresas, nos próprios EUA (e, obviamente, em praticamente o mundo inteiro), é carregada de racismo ambiental. Segundo um artigo na página da Earth Justice, “metade das pessoas com risco de câncer aumentado por conta da poluição das refinarias é ‘de cor’. Latinos, afroamericanos e pessoas pobres em geral vivem geralmente mais próximas das refinarias e, infelizmente, esses grupos sofrem uma incidência de câncer significativamente maior do que outros grupos”.
Mesmo refinarias mais modernas (caso de Lysekil, uma refinaria na Europa) não representam solução para o problema, pois, conforme artigo neste link, nos últimos 10 anos as comunidades a sotavento da refinaria apresentaram o dobro dos casos de leucemia que se esperaria, dadas as emissões tidas como “baixas”.
Mas tais problemas ocorrem quando do funcionamento “normal” de uma refinaria. Os problemas se multiplicam e tragédias ecológicas e sanitárias acontecem quando se tem um vazamento de petróleo ou seus derivados, seja de uma refinaria, de uma plataforma, de um navio petroleiro ou de um oleoduto… E são extremamente frequentes, como se constata nesta lista de vazamentos.
Tal lista inclui um bastante recente, que contaminou o Rio Yellowstone e fez com que os moradores da cidade de Glendive bebessem água contaminada, além de catástrofes de proporções gigantescas, como o Deepwater Horizon no Golfo do México ou realidades próximas, como o vazamento da refinaria de Manguinhos.
Nestes casos, o que acontece é que as substâncias tóxicas e cancerígenas são lançadas no ambiente em grande quantidade e espalham-se pelo ecossistema de maneira imediata, impactando os biomas e as comunidades próximas, muitas vezes de forma imprevisível. Somente mais tarde é que as reais consequências aparecem.
E tais consequências para o ambiente e a saúde humana costumam ser de longo prazo e por vezes irreversíveis. A população habitante do Delta do Níger, na Nigéria; a fauna marinha do Golfo do México; e as populações indígenas, rios e floresta nas proximidades dos locais de operação da Chevron, no Equador, são exemplos claros dos danos dessa indústria tão tóxica.
Por todos esses motivos, tais empresas são obsolescências vivas, símbolos do fracasso da matriz energética de fonte fóssil, vorazes consumidoras da água, que desaparecerá tanto mais rapidamente quanto mais quente estiver o planeta. Se é absurda a simples existência delas em nossos tempos, mais absurda ainda é colocá-las em nosso quintal, para usar a água escassa do semiárido e espalhar as mazelas que deixaram cicatrizes abertas para sempre, nos povos e no meio ambiente por onde passaram.
Evidentemente, é necessário cobrar reparações da Petrobrás. Houve várias obras de infraestrutura voltadas para a refinaria. As comunidades Anacé de Matões e Bolso tiveram suas vidas viradas de cabeça para baixo e já estão praticamente de malas prontas para mergulharem na incerteza de uma reserva indígena com pouquíssima terra, para onde seriam deslocadas para que suas terras originais recebessem o monstrengo fóssil. Isso, sim, se pode e deve reivindicar. Mas não choremos lágrimas de petróleo.
Nunca valeu a pena a ilusão da refinaria. Aproveitemos para ter mais elementos para revisar o modelo de desenvolvimento em voga, que dizima a nós e ao ambiente, espalha doenças terríveis, consome nossa água e emite gases que aquecem o clima do planeta. Tenhamos a coragem de dizer bem alto: adeus refinaria, e não volte!
*Alexandre Araujo Costa é Ph.D. em Ciências Atmosféricas, professor titular da Universidade Estadual do Ceará.
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Foto destaque: Luta dos Anacé contra Petrobras em 2009. Foto: Tania Pacheco