Por Eduardo Nobre*, em ObservaSP
Alguns anos atrás, estive numa banca de doutorado no Recife. Hospedei-me na Praia de Boa Viagem e, à tardinha, logo depois de ter feito o check in no hotel, resolvi sair para jantar. Apesar de não ser muito adepto, resolvi ir até o shopping mais próximo pela facilidade e rapidez no serviço, visto que estava cansado da viagem. Para minha surpresa, no caminho, passei por uma ruazinha extremamente simpática. O casario colorido no alinhamento, meio que espontâneo, chamava a atenção. A vitalidade e a variedade do comércio e sua mescla com as habitações eram outras coisas que se destacavam. Tudo que os urbanistas contemporâneos definem como o ideal de cidade.
Acabei encontrando um restaurante simpático e resolvi comer por ali uma comidinha caseira bem gostosa e deixar a homogeneidade da “praça de alimentação” para lá. No dia seguinte, conversando com os outros professores da banca, fiquei sabendo que o local fazia parte da “Favela do Entra a Pulso”, comunidade que vinha de uma história aguerrida de resistência às tentativas de expulsão desde que a “especulação imobiliária” chegou à Boa Viagem ainda na década de 1970.
Essa pequena passagem, que poderia passar despercebida para qualquer outra pessoa, tem relação direta com o urbanismo e o planejamento urbano. Em que pese o fato de a Entra a Pulso ainda hoje ter muitas carências, a sua permanência foi fruto de resistência, mas também, ou em decorrência dela, foi fruto da implementação no local de uma ZEIS – Zona Especial de Interesse Social. A comunidade prosperou e hoje em dia se beneficia de estar localizada numa das regiões mais valorizadas do Recife, vizinha ao principal shopping da cidade, como pode ser visto em matéria do Jornal do Commercio.
Pioneira na utilização das ZEIS, a cidade do Recife criou esse instrumento na década de 1980 para possibilitar a regularização fundiária de assentamentos irregulares, muitos dos quais com localização central nas áreas mais nobres da cidade, hoje localidades bastante conhecidas, como as comunidades do “Pina/Encanta Moça” e “Brasília Teimosa”, garantindo o direito de permanência das comunidades ameaçadas de expulsão. Posteriormente, as ZEIS acabaram sendo utilizadas também para a demarcação de áreas vazias dotadas de infraestrutura, nas quais há interesse do poder público em promover a construção de habitações de interesse social, voltadas para a população de baixa renda.
Em um país cujas cidades representam um “apartheid” social, com a população mais rica morando nas áreas mais consolidadas, dotadas de infraestrutura, equipamentos públicos e oportunidades de emprego, e a população mais pobre sendo “expulsa” para uma periferia distante, precária e carente de todas essas benesses, a implementação das Zeis representa uma possibilidade, se não de reversão dessa lógica, de mitigação das condições de precariedade de parte dessa maioria da população. Só para lembrar, o Brasil detém o título de um dos países com a distribuição de renda mais desigual do planeta, onde os 10% mais ricos abocanham 45% da renda nacional, enquanto que para os 50% mais pobres restam apenas 18%, segundo dados do IBGE para 2010.
Foi justamente nesse contexto que a municipalidade de São Paulo aprovou, no PDE – Plano Diretor Estratégico de 2002, as suas primeiras ZEIS. Dez anos antes já havia ocorrido uma tentativa frustrada de aprovação, que foi rechaçada na Câmara de Vereadores em virtude da forte reação do mercado imobiliário na utilização desse instrumento.
O PDE 2002 incluiu, além das ZEIS de regularização e de urbanização de glebas vazias (1, 2 e 4), as ZEIS de áreas centrais (3), definidas no inciso III do artigo 171 da Lei do Plano Diretor (Lei nº 13.430/2002) como “áreas com predominância de terrenos ou edificações subutilizados situados em áreas dotadas de infraestrutura, serviços urbanos e oferta de empregos […] onde haja interesse público […] em promover ou ampliar o uso por Habitação de Interesse Social – HIS ou do Mercado Popular – HMP”.
A ideia das ZEIS 3 era justamente reverter o processo de abandono da área central, promovendo a ocupação dos terrenos e edifícios vazios (antigos hotéis, edifícios residenciais, escritórios e fábricas que foram abandonados) com a construção de conjuntos habitacionais para a população de baixa e média rendas. Novas construções nessas áreas deveriam reservar 40% do total construído para HIS (para a população que ganha até 6 salários mínimos), 40% para HMP (para a população com renda até 16 salários mínimos). Os demais 20% poderiam ser destinados a outros usos.
Contudo, a realidade da produção imobiliária de 2005 até 2012 na área central foi muito diferente do que previa a lei, muito em função das questões controversas que ocorreram no Departamento de Aprovações de Edificações da Prefeitura (APROV), no período, e que levaram o Ministério Público a abrir sindicância e denunciar funcionários públicos por crimes contra a administração, corrupção e lavagem de dinheiro.
Em 2006, quando fui representante da FAUUSP na Câmara Técnica de Legislação Urbanística, órgão da prefeitura responsável pela análise e solução de questões não previstas pela lei de zoneamento, deparei-me com vários casos controversos com relação à legislação vigente, e em especial com a regulamentação das ZEIS.
Um dos casos que me chamou a atenção foi justamente o da construção de um grande templo religioso no interior de uma ZEIS 3. A interessada era a Igreja Universal do Reino de Deus, conforme consta do Processo Administrativo Municipal 2006-0.185.282-2. A igreja solicitava reforma com aumento de área em uma antiga fábrica na Mooca (Lanifício Paulista Ltda.), apresentando toda a documentação para isso. O pedido vinha com parecer positivo do APROV, que dizia que em função de o imóvel estar sendo utilizado, a sua reforma não precisaria atender às exigências da ZEIS. Estranhei o fato de a fábrica ainda estar ativa, pedi vistas do processo e fui realizar vistoria no local.
Para minha surpresa, a fábrica de quase 20 mil metros quadrados de área construída não existia mais e no seu lugar havia um megaestacionamento, conforme foto abaixo. Em 7 de agosto de 2006 apresentei relatório, que foi anexado ao processo, concluindo que o pedido estava prejudicado, tendo em vista que o parágrafo 2º do artigo 140 da Lei 13.885/04 (Lei de Zoneamento que regulamentou o PDE) dizia que “a demolição de edificação situada em lote com área superior a 500 m² (no interior da ZEIS) submeterá o imóvel à exigência de destinação de área construída computável para HIS e HMP […] independentemente do motivo que tenha levado à demolição”. A solicitação da igreja foi retirada da pauta da reunião.
Seis meses mais tarde, o processo voltou à pauta, dessa vez com parecer técnico de engenheiro habilitado, dizendo que em vistoria realizada no dia 5 de julho de 2006, ele tinha averiguado que a fábrica estava ruindo. Estranhou-me o fato de o relatório dele ser anterior ao meu, mas a data do recolhimento da ART – Anotação de Responsabilidade Técnica –, taxa que os engenheiros têm de recolher quando realizam serviços, ser muito posterior (24 de janeiro de 2007). Instruído por técnicos idôneos da prefeitura, pelos quais tenho muito apreço, pedi novamente vistas do processo, dessa vez solicitando cópia de fotografia aérea oficial da prefeitura, de 2004, onde o imóvel aparece… demolido.
Não é necessário conhecer muito da lei para saber que a apresentação do relatório elaborado pelo engenheiro e anexado ao processo pela interessada constitui em falta grave, passível de punição penal, pois este documento afirma que o imóvel estava ruindo, quando, de fato, já havia desaparecido dois anos antes, como comprovou a foto aérea. Estranhou também o fato de a interessada, na defesa de seu interesse, informar que havia adquirido o imóvel em 2005 com toda a edificação aprovada existente no local, conforme folhas 139 a 144 do referido processo. Novamente, anexei meu parecer ao processo, afirmando ser impossível a sua aprovação em virtude de todos os vícios apontados.
De novo, para minha surpresa, o APROV encaminhou novo parecer favorável ao pedido de reforma com aumento de área da interessada, mesmo com todos os problemas apontados. Lembro que, na reunião em que esse projeto foi aprovado, o representante de uma ONG da sociedade civil alertou a todos os conselheiros que o que eu estava denunciando no meu relatório consistia em crime e que todos que aprovassem o parecer do APROV poderiam estar sendo coniventes com ele. Por fim, apenas eu e mais dois conselheiros (incluindo o da ONG) votamos pelo indeferimento do projeto.
Sete anos mais tarde, esse caso volta à tona com a inauguração do projeto construído, denominado agora “Templo de Salomão”. O diretor do APROV na época, Hussain Aref Saab, responde por vários processos na Justiça (veja matéria da Folha) e o Ministério Público Estadual tenta negociar com a Igreja Universal um acordo judicial, obrigando-a, por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), à construção das unidades habitacionais de baixa renda para as quais a Zeis foi criada ou à doação de terreno para este fim (leia matéria).
Após esse problema e outros escândalos, o Departamento de Aprovações de Edificações foi extinto e a prefeitura criou a Secretaria de Licenciamento com a promessa de informatizar, agilizar e tornar mais transparente o processo de aprovação das edificações na cidade. Criou também a Controladoria Geral do Município, com o objetivo de prevenir e combater a corrupção na gestão municipal e contribuir para a melhoria da qualidade dos serviços públicos. Resultados práticos disso foram sentidos com o desbaratamento da “Máfia do ISS”.
Infelizmente, casos como este que presenciei não são exceção nas cidades brasileiras. De fato, eles constituem a prova cabal do nosso subdesenvolvimento e da herança patrimonialista e clientelista de nossa sociedade, onde o interesse público se imiscui com o privado. Cabe a nós, enquanto cidadãos, técnicos e funcionários públicos, a lida contínua para tornar esse país mais digno e justo. E, seguramente, para que isso ocorra, é necessário que casos como esses continuem a ser desvendados e combatidos por todos nós.
Com certeza a cidade do Recife apresenta também os seus problemas de administração pública, mas pelo menos conseguiu viabilizar, através das Zeis, a permanência da população de baixa renda nas suas áreas centrais. Quem sabe se na maior cidade brasileira isso também não é possível? Talvez o desfecho desse caso que acompanhei aponte para esse caminho. É o que espero!
*Eduardo Nobre é arquiteto e urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
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Foto: Foto do terreno da Fábrica Lanifício Paulista, em 04/08/2006, anexada ao PA 2006-0.185.282-2.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.