Documentando a resistência: Entrevista com Jason O’Hara, diretor de “Estado de Exceção”

Rio On Watch

O papel da mídia e observadores internacionais de trazer visibilidade às injustiças e abusos no Rio de Janeiro se tornou de suma importância nos últimos anos, com a cidade abrigando uma série de megaeventos designados para o consumo global, muitas vezes às custas dos direitos de moradores locais. O cineasta documentarista Jason O’Hara tem estado na linha de frente desses esforços, trabalhando colaborativamente com as comunidades do Rio para contar suas histórias de resistência e documentar abusos de direitos humanos desde 2010. Agora, com mais de 300 horas de filmagem documentando remoções, protestos e a violência policial que definem as preparações do Rio de Janeiro para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, O’Hara realizou uma campanha de crowdfunding (plataforma de financiamento colaborativo) para realizar o documentário Estado de Exceção, no qual conta histórias essenciais e inspiradoras sobre a resistência de comunidades cariocas nesse momento crítico.

Leia a entrevista exclusiva do RioOnWatch com O’Hara sobre suas experiências e seu filme:

Nos conte um pouco sobre sua experiência como cineasta. O que o levou a esse campo de trabalho, e quais foram algumas das suas inspirações, e trabalhos iniciais?

Jason O’Hara: Crescendo no Canadá, eu fui muito inspirado pela tradição do meu país de cinema político. Particularmente pelo programa ‘Desafio por Mudança’ do Conselho Nacional de Filmes do Canadá, dos anos 60.

Historiadores dão crédito ao programa por ser o precursor de todo o movimento contemporâneo global de cinema participativo. O processo cinematográfico era abordado como exercícios de capacitação nos quais tanto as ferramentas de produção quanto as de pós-produção eram colocadas nas mãos das comunidades, para que elas pudessem contar suas próprias histórias.

Minha primeira incursão na mídia participativa foi organizando uma série de workshops de fotografia em um número de favelas na cidade de Belo Horizonte e nos municípios vizinhos em 2007, utilizando uma metodologia que se tornaria famosa mais tarde pelo documentário premiado “Nascidos em Bordéis“.

O ethos primordial dos projetos de arte participativa é o reconhecimento de que a expressão criativa deve ser um direito humano fundamental, e então esses projetos buscam atenuar algumas das barreiras estruturais que proíbem as pessoas de exercitarem esse direito.

Em termos da minha própria prática documentária, até agora eu completei dois curta-metragens de maneira independente. “Demur” é um curta de 15 minutos que eu filmei na minha cidade natal de Toronto em 2010, quando recebemos reuniões do G8 e G20 em meio a uma situação de lei marcial e liberdades civis comprometidas. Meu segundo documentário, meu filme que virou tese de Mestrado em Artes Finas, “Ritmos da Resistência“, conta histórias de artistas que resistiram à brutalidade policial em favelas do Rio de Janeiro.

Como você começou a fazer esse trabalho de documentar despejos e abusos de direitos humanos no Rio?

Tendo morado no Brasil duas vezes, e conhecendo o contexto sócio-político do país –uma democracia relativamente nova, emergente de uma ditadura autoritária, com altos níveis de corrupção tanto na esfera privada como na pública– eu estava profundamente preocupado com os impactos sociais negativos dos megaeventos, particularmente no Rio onde os dois mega espetáculos, a Copa do Mundo, e as Olimpíadas, seriam sediados um em seguida do outro pela primeira vez na história.

Eu comecei a pesquisar esses eventos e rapidamente descobri que sediar as Olimpíadas de 2004 precipitou sucessivas crises da dívida na Grécia. Eu aprendi sobre os milhares de pobres despejados e realocados em barracos inabitáveis na África do Sul para a Copa do Mundo de 2010, e os Jogos de 1976 no Canadá, estimado em um custo total de 120 milhões de dólares, mas que terminou custando 1,5 bilhão de dólares, deixando Montreal endividada por 30 anos. A cidade de Montreal terminou pagando a dívida das Olimpíadas cobrando um imposto dos cidadãos no cigarro. Para mim, isso fornece a metáfora para o verdadeiro legado dos eventos nas cidades sede. Se a cidade é deixada fumando cigarros ou lidando com serviços públicos inadequados após fundos públicos terem sido desviados para novos estádios ou outra infraestrutura relacionada aos eventos, é a cidade sede que, em última instância, acaba pagando pelos eventos.

Enquanto eu estava preocupado com o Brasil, eu também sabia que uma catástrofe social era dificilmente um fato consumado. Pelo contrário, a sociedade civil brasileira é uma força a ser reconhecida como uma das organizações políticas mais efetivas do planeta. Não é coincidência que o Fórum Social Mundial nasceu no Brasil, em Porto Alegre em 2001, sob o princípio de que “outro mundo é possível”. O Brasil também possui o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), um dos movimentos sociais mais bem sucedidos do mundo e amplamente estudado, e é terra de Paulo Freire, cuja “Pedagogia do Oprimido” confirmou o poder democrático das classes marginalizadas do mundo.

Além disso, dada a cultura vibrante de resistência política no Brasil, o palco estava montado para o confronto de Davi e Golias, que constitui a narrativa principal do documentário: a sociedade civil brasileira lutando contra os abusos ilegais de direitos humanos motivados pelos megaeventos.

Nessa época, quantas vezes você esteve no Rio, e quais foram alguns dos eventos que você filmou?

Desde 2010, eu viajei oito vezes para o Rio, filmando um total de 32 semanas de produção. Durante esse tempo, eu testemunhei uma série de despejos forçados, e um número de outros abusos de direitos humanos nas favelas do Rio. Eu estava no Rio em junho de 2013, quando a revolta civil em massa começou, e na Copa das Confederações da FIFA no mesmo mês, que foi para nós no Rio, talvez a primeira visão da repressão policial intensificada que acompanha o estado de exceção, precursor do que veríamos novamente um ano depois, durante a Copa do Mundo.

Como você define “estado de exceção” e por que você escolheu esse nome para o filme?

Um “estado de exceção” é um quadro legal temporário que suspende o Estado de Direito, e estrangula as liberdades civis, tais como o direito de livre circulação e de protesto. Milhares de famílias foram desalocadas à força no Rio e em outros lugares do Brasil, apesar das leis internacionais, federais e locais inequívocas que proíbem tal deslocamento. O estado de exceção se justifica pelo oportunismo necessário para se preparar para eventos sensíveis ao tempo, que não podem arriscar os possíveis atrasos do devido processo legal.

Eu escolhi esse título para o filme porque o “estado de exceção” é realmente a fundação de todos os abusos de direitos humanos que tendemos a ver com esses eventos espetaculares. Se é a opressão das liberdades civis dos cidadãos, tais como liberdade de expressão e o direito de protestar durante o evento, ou os despejos ilegais que ocorrem nos anos antes dos eventos, as leis que em outro momento protegeriam os direitos dos cidadãos são, para todos os efeitos, suspensas.

Sobre o que é o filme?

Enquanto os despejos forçados na comunidade dão o pano de fundo do filme, a história é realmente sobre a resistência das comunidades contra esse processo, então esse documentário não é uma história triste. Pelo contrário, é uma história inspiradora sobre as comunidades que se levantam por seus direitos e lutam.

Os protagonistas no filme são vítimas de uma injustiça significativa, mas eu não estou interessado em retratá-los como vítimas. Sua história não é nunca de vítimas sem esperança. Ao invés disso, essas são histórias inspiradoras sobre a resiliência humana, sobre pessoas confrontando uma adversidade extraordinária para garantir seus direitos.

Quais têm sido seus maiores desafios ao realizar esse projeto?

Sem dúvida, o maior desafio em realizar esse projeto tem sido financiar o filme. Por que muitas emissoras (e anunciantes que as mantém) possuem acordos com a FIFA e as Olimpíadas, essa história é uma batata quente tão política, marginalizada pelos modelos tradicionais de financiamento e distribuição. Como uma emissora me disse em termos inequívocos logo depois do início do projeto em 2010: “Essa é uma história realmente importante, mas não vamos tocar nela com uma vara de 10 metros”.

Eu planejava ter terminado o filme agora. Mas, devido à natureza do conteúdo–sendo crítico dos dois maiores eventos transmitidos no planeta–eu tive uma enorme dificuldade em encontrar apoio e agora estou enfrentando mais de 300 horas de filmagem, até então sem qualquer financiamento para a pós-produção. Então, por falta de qualquer outra opção, lançamos recentemente uma campanha de financiamento colaborativo, pedindo que a sociedade civil se juntasse à nossa comunidade e apoiasse o projeto, buscando levantar um orçamento mínimo para a pós produção, para terminar o filme antes das Olimpíadas de 2016. Fomos bem-sucedidos, captando os $22.000 necessários.

Quais têm sido as experiências mais marcantes durante a documentação dos despejos e o “estado de exceção” no Rio? Existem momentos ou situações que se destacam?

Na minha primeira visita ao Rio em 2010, eu acordei um dia com a mensagem de amigos da organização Comunidades Catalisadoras de que um despejo forçado estava ocorrendo na comunidade de Vila Taboinha, na Zona Oeste. Eu corri para o local para encontrar a entrada da comunidade com barricadas: homens, mulheres e crianças se recusando a permitir a passagem dos tratores. Não foi muito antes da polícia do Rio ser chamada e o que aconteceu depois virou cena corriqueira: bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha, toda a força estatal brasileira em cima de homens, mulheres e crianças que se mantiveram corajosamente em defesa da comunidade.

Apesar da força brutal, a polícia estava em desvantagem numérica e a comunidade desafiante, então ao final do dia a polícia foi forçada a recuar. Foi uma pequena vitória. Três dias depois, com a maior parte das pessoas da comunidade no trabalho, a polícia voltou, dessa vez sem a resistência da comunidade nem a presença da mídia. Os tratores começaram a derrubar as casas. Trabalhando com um amigo ativista, nós respondemos ao chamado de emergência e começamos a gravar assim que chegamos no local. Fomos abordados imediatamente pelo chefe da polícia, que gritou na minha cara: “Isso não é para o mundo ver”. Eu discordei. A polícia começou a antagonizar e fomos rapidamente cercados pela comunidade, que veio em nossa defesa, diversos deles filmando tudo no celular, novo instrumento de registro. A intimidação foi rapidamente revertida e a polícia forçada a se retirar. Fomos levados por membros da comunidade que nos acompanharam de um lugar seguro para outro, esperando a polícia ir embora.

Foi nesse dia na Vila Taboinha que o projeto do documentário nasceu. A comunidade estava confrontando o que parecia uma situação sem solução e viu minha câmera como um facho de esperança em meio a uma situação desesperadora. O incidente demonstrou claramente o poder emergente do jornalismo cidadão, novo registro sendo criado por testemunhas infalíveis, que são os vídeos e câmeras de celular.

Você se machucou durante um protesto no Rio em julho do ano passado. Você pode falar um pouco sobre isso? Como isso aconteceu? E quais foram as consequências disso para o projeto e para você, pessoalmente?

O estado de exceção nunca foi mais evidente do que naquele dia –final da Copa do Mundo– quando o Rio de Janeiro viu uma das maiores mobilizações do exército e da Polícia Militar desde a ditadura. Não eram os cidadãos que a polícia estava protegendo. Ficou claro que eles estavam protegendo a FIFA e os interesses dos mercados globais associados à ela.

A polícia colocou ativistas e mídia em quarentena, usando a mesma tática que vimos a polícia usar em Toronto durante o G20: ninguém pode entrar na área pública delimitada, ninguém pode sair. O cartão de memória da minha câmera estava cheio e eu me encostei em uma parede para mudar o cartão. Uma fila de policiais militares estava correndo e um girou o cassetete na minha direção, e imediatamente outros vieram e eu comecei a levar golpes de todos os lados. Um dos oficiais arrancou a câmera GoPro presa no meu capacete, e outro foi para o golpe final: um chute no rosto. Eu fui deixado no chão para ser tratado por médicos e logo fui para o hospital levar pontos.

Não havia nada particularmente especial sobre o meu caso. Eu havia testemunhado muitos ataques não provocados do tipo por policiais em protestos anteriores. No entanto, nessa ocasião eu era um “gringo” privilegiado sendo atacado e a história foi manchete internacional. O fato de esse incidente relativamente pequeno ter ganhado tanta atenção da mídia internacional é emblemático das desigualdades contra as quais os brasileiros estavam protestando nas ruas naquele dia – a transformação do cenário urbano do Rio e do Brasil para servir pessoas como eu, turistas internacionais, às custas das pessoas que moram lá.

O que você sente que é seu papel como documentarista ao cobrir essas situações?

É dito normalmente que nosso papel como documentarista é ser testemunha, e ao fazer isso, dividir o que testemunhamos com uma audiência maior que está privada dessas experiências através de imagens e sons capturados por nossos equipamentos de gravação. Pessoalmente, eu acho que tal descrição imparcial é um pouco evasiva. Essa noção do observador neutro é um legado das convenções jornalísticas: a ideia de que todas as histórias devem ser “justas e equilibradas”. A abordagem participativa de cinema da qual eu faço uso vê o processo de contar histórias como uma colaboração, onde eu estou muito engajado na realidade que estou documentando. Isso não dispensa a importância de ser justo, mas eu acho que precisamos acabar com essa noção ilusória de “equilíbrio”, como se o mundo de cinzas sutis pudesse ser reduzido a preto e branco.

O cinema documental é muito mais do que somente testemunhar, é uma arte de contar histórias –construindo histórias engajadoras que conectem com a platéia. Há algo muito humano sobre a experiência de assistir a um documentário. Nos conectamos com os “personagens” na narrativa, apesar de todas as nossas diferenças culturais e sociais. Vemos nossa própria humanidade refletida neles e nas suas lutas. Então, eu vejo meu papel como o de trazer essas histórias para um público internacional, para que não percebam essas histórias como tragédias que ocorrem em terras distantes, mas como injustiças com causas bem definidas, que ocorrem com pessoas muito parecidas. As pessoas na tela compartilham de esperanças e sonhos semelhantes às pessoas na platéia, e elas estão sendo vitimizadas pelas circunstâncias, nas quais somos colocados como consumidores desses eventos espetaculares.

Na sua opinião, tendo documentado os cinco anos antes da Copa do Mundo e das Olimpíadas, quais impactos esses megaeventos tiveram na cidade do Rio de Janeiro e nas favelas?

Eu acho que a crítica Helen Lenskyj resume de maneira apropriada os impactos sociais de sediar megaeventos: “Esses projetos, massivos em escopo e escala, custam tantos bilhões de dólares públicos e deixam para trás legados ambíguos. Quase todo megaevento global resultou em perdas financeiras para o país sede, pausa temporária do processo democrático, produção de espaços militarizados e de exclusão, deslocamento residencial e degradação do meio ambiente“.

As queixas no Rio têm sido múltiplas: milhares de famílias sendo expulsas de suas casas (normalmente com violência, pela polícia que atira gás lacrimogêneo e balas de borracha); gastos excessivos na construção de estádios ou outras infraestruturas relacionadas ao evento, enquanto serviços públicos básicos, como saneamento básico, saúde e educação continuam sendo mal financiados; e a militarização das favelas no Rio, através do programa de “pacificação”.

O que você sonha para o filme “Estado de Exceção”?

Eu quero que o filme acorde as pessoas para os abusos de direitos humanos flagrantes que são deixados na esteira desses eventos que tanto reverenciamos: a Copa do Mundo da FIFA e os Jogos Olímpicos. Enquanto assistimos esses eventos do conforto de nossas casas, bares e restaurantes em cidades ao redor do mundo, não deveríamos esquecer o custo real de criar esse espetáculo. Brasileiros vão lidar com o legado desses eventos por anos.

É importante reconhecer que o documentário é apenas um elemento de um momento global muito maior que busca iluminar essas histórias não contadas, um esforço mais amplo no qual o RioOnWatch e outros grupos contribuem ativamente todos os dias. Juntos, buscamos levar essas histórias para o mundo, pois essa loucura tem que parar. Nós já estamos vendo abusos semelhantes na Rússia e no Qatar, antes das Copas do Mundo de 2018 e 2022, e podemos esperar o mesmo em outros eventos futuros. Onde houver um estado de exceção, há uma ampla oportunidade para abuso, pois as leis que proibem esses abusos deixam de ser aplicadas. Onde há oportunidades, há oportunistas, então os abusos de direitos humanos que estamos vendo são a manifestação lógica dessa dinâmica.

Há uma quantia de dinheiro tão extraordinária envolvendo esses eventos, seria tão fácil fazer bom uso dele. O tempo é curto, as leis já estão nos livros, não deveria haver exceção, não para a FIFA, nem para o COI. Vamos manter o jogo bonito, e insistir nos padrões mais básicos de decência humana para aqueles organizando esses eventos espetaculares.

Para saber mais sobre o filme Estado de Exceção e apoiar o projeto, visite a página de crowdfunding aqui.

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