Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da seção SP da entidade, Martim de Almeida Sampaio, nem corte de cabelo deve ser permitido em instituições de ensino superior: ‘Coisa do século 19, 18’
Por Eduardo Maretti, da RBA
Omissão das universidades, a velha máxima segundo a qual “tem lei que pega e lei que não pega” no Brasile investigações mal feitas pela polícia são algumas das causas que fazem com que o trote continue a fazer vítimas nas universidades do país.
Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção São Paulo, Martim de Almeida Sampaio, o trote, proibido pela lei estadual 10.454/99 e, na Universidade de São Paulo, pela portaria (GR) 4154/99, é “abominável”, uma “coisa do século 19”, e deveria ser abolido.
A tradição pela qual “veteranos” impõem aos “calouros” práticas que incluem a tortura é o principal tema da CPI que apura a violação dos direitos humanos nas universidades paulistas, presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT-SP).
Entre os casos mais chocantes dessa tradição, está a morte do estudante Edison Hsueh, durante uma festa do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, em São Paulo, da Faculdade de Medicina da USP, em 1999. Em 2013, o Supremo Tribunal Federal absolveu os quatro acusados definitivamente, por falta de provas. “Nesse caso, infelizmente, por alguma razão, não houve interesse, ou competência ou esforço, para apurar a autoria”, diz o advogado da OAB.
Leia a entrevista, concedida à RBA por telefone.
Por que o trote continua a ser “tradição” nas universidades brasileiras e em são Paulo, onde é proibido pela Lei 10.454/99. É uma lei que não pegou?
A questão gira em torno de alguns temas. Um é essa coisa de que “tem lei que pega e lei que não pega”, que você apontou. Outro tema é que essa lei é estadual, e não é incorporada pelo Código Penal, que é federal. Em regra geral ela deriva em sanção administrativa, pagamento de multa, esse tipo de coisa. Em terceiro lugar, realmente as universidades são omissas em coibir o trote. Só quando ele sai um pouco de eixo, desencaminha, a pessoa sai ferida, é que o corpo diretivo da universidade interfere. E por último, é uma tradição ruim que permanece pelos anos e deve ser abolida.
Como vê o chamado trote do bem?
É que alguns centros acadêmicos de direções progressistas tentaram isso, fazer trote cultural, trote do bem no sentido de levar pessoas para comunidades carentes, prestação de serviços. É uma tentativa que não decolou, falhou. As pessoas devem ser motivadas a fazer o bem não por uma questão de força, mas por argumentos. Deveriam praticar o bem o tempo todo. Mas não tenho registro que isso tenha tido como resposta mais violência. Acho preferível fazer o trote entre aspas chamado “do bem” do que o “do mal”.
Mesmo quando há casos gravíssimos, como o caso da morte de Edison Tsung Chi Hsueh, por afogamento na piscina em uma festa da Medicina da USP, o caso acaba não resultando em condenações. Por quê?
Infelizmente temos uma polícia que investiga mal. E quando você vai a julgamento, (a acusação) apoia-se em provas que são colhidas, e quando essas provas são colhidas de forma errada, precária, o julgamento acaba sendo levado à absolvição, porque existe um princípio constitucional: in dubio pro reo (em dúvida, para o réu). Ninguém pode ser condenado por mera presunção. Infelizmente é um problema do Estado brasileiro, localizado na polícia, não só de São Paulo, mas todas.
No caso da polícia paulista, ela investiga mal. Faço uma questão muito simples: vimos o caso daquela criança, dos Nardoni (Isabella Nardoni), que infelizmente foi atirada pela janela. Foi objeto de investigação de nível CSI (sigla deCrime Scene Investigation, série televisiva americana sobre investigações policiais altamente sofisticadas). A investigação acabou levando à condenação (do pai e da madrasta de Isabella). Nesses casos rumorosos, de repercussão, em que há forte comoção, a polícia vai e investiga. Na periferia morre gente todo dia e não se descobre e ponto final, porque não há interesse. No caso do menino da USP (Edison Hsueh), infelizmente, por alguma razão, não houve interesse, ou competência, ou esforço, não sei por que, para apurar a autoria. Me parece que um dos quatro estudantes acusados foi à TV dizendo que afogou o menino mas fez de brincadeira. Era um idiota mesmo, me parece. Foi preso imediatamente, se arrependeu. Não se deve nem brincar com uma coisa dessas. Mas é um problema da investigação que é malfeita. A polícia paulista apura somente 2% dos homicídios. Uma taxa lamentável.
O que se pode esperar da CPI?
Podemos esperar é que, primeiro, se aponte a omissão das universidades. E se aponte a universidade representada pelo reitor, o pró-reitor, que as pessoas que não têm tomado medidas sejam responsabilizadas e, por fim, que o estado e as maiores universidades, em conjunto, estabeleçam uma política de barrar definitivamente o trote. Que isso deixe de existir e seja uma coisa do passado, para que se torne tão intolerável e inaceitável quanto está sendo o tema da homofobia, que tem sido combatida. Embora ainda as pessoas façam atos homofóbicos, a sociedade adquiriu uma consciência de que isso é intolerável na democracia. A mesma coisa o trote.
Os trotes se caracterizam como crimes comuns em qualquer lugar, ficam impunes no ambiente universitário…
Batem nos rapazes, os obrigam a se alcoolizar, fazem assédio sexual às meninas, quando não abusam sexualmente delas, obrigam ao trabalho escravo. Se você estiver na rua e passar a mão numa moça que não conhece ou outra coisa você vai preso imediatamente. Se eu raspar o cabelo de uma pessoa ou obrigar alguém a se alcoolizar, a mesma coisa. Isso é crime, lesão corporal dolosa e ponto final. Determinados casos podem ser considerados tortura, sequestro. Já vi casos de amarrarem a pessoa. É abominável, isso é coisa do século 19, 18, deve ser de quando o sujeito entrava na inquisição e os inquisidores faziam isso para saudá-lo. Porque, de resto, não se justifica. É uma imbecilidade. Nem corte de cabelo deve ser admitido.
Foto: “É uma tradição ruim que permanece pelos anos e deve ser abolida”, diz advogado especialista em direitos humanos (MARCOS SANTOS/USP IMAGENS)