“Foi preciso um índio ser eleito presidente da república num país sul-americano, como Evo Morales na Bolívia, para a população branca de outros países, como o Brasil, não continuar convencida que a terra desse continente só pode ser considerada e explorada como mercadoria”, escreve Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, em artigo
Um dos principais argumentos da oposição à reforma agrária no Brasil lembra repetidamente a extensão territorial do nosso país, como prova da desnecessidade de partilhar a terra já sujeita à propriedade privada. Esse argumento desaparece quando o interesse latifundiário por ampliar os seus domínios entra em questão. Para os proprietários das maiores extensões de terra do Brasil o país continua muito pequeno.
Por meio de um projeto de emenda constitucional (PEC 215), a sua representação no Congresso Nacional vem procurando modificar a Constituição em mais de uma das suas disposições. Assim, a emenda acrescenta ao artigo 49 um inciso, de número 18 e, no artigo 231 ela modifica o parágrafo 4º, acrescentando um parágrafo 8º aos demais, ficando a redação de ambos como segue:
Art. 49. É de competência exclusiva do Congresso Nacional:…18 – aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas;
Art. 231. § 4º As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 8º Os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas Indígenas deverão ser regulamentados por lei.
Se a possibilidade de o Poder Legislativo poder demarcar terra indígena já não fosse absurda, a redação do projeto ainda acrescenta a de ele poder ratificar aquelas cuja demarcação já foi homologada. As inconstitucionalidades manifestas dessa iniciativa parlamentar provam, mais uma vez, até onde vai a representação ruralista do Congresso brasileiro, na tentativa de fazer passar por lei o que não passa de uma invasão e de um esbulho criminosos praticados no território do país contra o povo indígena, como se esse já não tivesse sofrido dizimação bastante, desde séculos, pela mão do branco colonizador.
Se uma tal emenda, então, para infelicidade do povo indígena, for introduzida no texto constitucional, o Legislativo invade e esbulha também o Poder Executivo, pois, para garantir os interesses dos grandes proprietários de terra, vai mandar e desmandar na implementação das políticas públicas relacionadas com a terra das/os índias, não para protegê-las/os, evidentemente, mas sim para acentuar o confinamento daquelas gentes originárias e tradicionais desse chão, que o Brasil ainda não conseguiu matar.
Roberto Antonio Liebgott, representante do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), no Rio Grande do Sul, publicou um resumido estudo sobre essa PEC 215, no qual, além de apontar as principais fases de tramitação legislativa dessa emenda, sob forte protesto do povo indígenas e entidades da sociedade civil contrárias ao seu texto, denuncia os vícios de inconstitucionalidade da sua redação como a de ferir cláusula constitucional pétrea relativa à divisão dos Poderes Públicos (artigo 60 e seus parágrafos da nossa Constituição), ignorar a competência legal e administrativa da Funai, referindo até um acórdão do próprio Supremo Tribunal Federal que, julgando uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIN 4.102), ainda em 2010, deixou muito claro o seguinte:
“As restrições impostas ao exercício de competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas públicas, importam em contrariedade ao principio da independência e harmonia entre os Poderes”
E a isso ainda seria possível acrescentar o seguinte: reservando-se o poder de aprovar, com exclusividade, onde está implícito o de reprovar, demarcação das terras indígenas, e o de ratificar, onde está implícito o de negar ratificação às demarcações já homologadas, o Poder Legislativo fica autorizado, também, nessa última hipótese, a desrespeitar o próprio direito adquirido do povo possuidor de aldeias indígenas com demarcação de terra já homologada.
Uma arbitrariedade desse grau de despropósito, típica da representação latifundiária no Congresso brasileiro, não há de ficar constrangida com a comparação que se faça da sua iniciativa com o texto da Constituição boliviana, sobre matéria idêntica, em tudo e por tudo diferente da nossa.
Foi preciso um índio ser eleito presidente da república num país sul-americano, como Evo Morales na Bolívia, para a população branca de outros países, como o Brasil, não continuar convencida que a terra desse continente só pode ser considerada e explorada como mercadoria. Ela é possuída por um número muito grande de gente pluriétnica, pluricultural, plurinacional, comportando, por isso mesmo, um pluralismo jurídico de tratamento, marcado pelo respeito à vida da terra e à vida do povo que graças à ela vive.
É verdade que a Bolívia tem uma população indígena muito maior do que a nossa, mas não é menos verdade que a maioria do povo brasileiro nem branca é, somente se explicando um ordenamento jurídico eurocêntrico típico desta etnia, como o nosso, por uma fidelidade histórica ao modelo jurídico da legislação colonizadora do passado, que até hoje não arranca as suas raízes daqui.
A começar pelo fato de a Constituição da Bolívia ter sido aprovada por um referendo popular, ter estabelecido um módulo máximo de extensão da terra rural (5.000 hectares), ter garantido autonomia política para os povos de diferentes etnias lá situados, a ponto de autorizá-los a criar seus próprios tribunais, ter previsto formas as mais abrangentes de democracia participativa e proteção da natureza, nisso tudo ela é tão superior à nossa, com o devido respeito às opiniões em contrário, que uma PEC semelhante a 215, lá, nem conseguiria iniciar a sua tramitação legislativa.
Em vez de ameaçar o povo indígena do nosso país com essa nova proposta de emenda constitucional, aumentando o poder da chamada república dos ruralistas, “que não nos alimentam nem nos representam”, como se lê na internet, deveria diminuir um pouco o peso da sua consciência pelo mal que já fez à terra, ao povo sem-terra e às/os índios do Brasil, não se metendo onde a própria Constituição Federal, felizmente, nem lhe permite se meter.