Elaíze Farias – Amazônia Real
A Justiça Federal do Amazonas negou um pedido de liminar do Ministério Público Federal para impedir a remoção das famílias remanescentes de quilombos que vivem na Comunidade do Tambor, dentro do Parque Nacional do Jaú, no município de Novo Airão (AM), pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), do Ministério do Meio Ambiente.
A remoção, que também deverá ser efetivada pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), foi determinada pela Câmara de Conciliação da Advocacia Geral da União (AGU), em reunião realizada em março de 2014.
Na decisão proferida no dia 14 de janeiro último, o juiz federal Ricardo Sales, da 3ª, Vara da Justiça, colocou em dúvida se a famílias da Comunidade do Tambor são remanescentes de quilombolas, causando surpresa e indignação em representantes do Tambor, procuradores do MPF do Amazonas e antropólogos. É que o assunto relacionado à identidade quilombola não é mencionado na ação do MPF.
“Ocorre que não é possível afirmar, neste momento, de análise perfunctória (superficial), que a Comunidade do Tambor seja, de fato, remanescente de quilombola, qualidade que deve ser aferida por profissional especializado, na área de antropologia, especialmente considerando a região é tradicionalmente ocupada por indígenas e ribeirinhos, o que é de fato notório”, diz o juiz na decisão.
Ricardo Sales determinou na decisão que seja realizado um estudo antropológico da comunidade. “Assim, para que se identifiquem as pessoas da mencionada comunidade como descendentes de quilombolas faz-se necessário, como já dito, um detido estudo por especialistas a serem oportunamente nomeados pelo juiz”, diz sua decisão.
A Comunidade Quilombola do Tambor fica na margem esquerda do rio Jaú, afluente do rio Negro, no Amazonas, numa faixa de terra delimitada em 719,8 mil hectares. A agência Amazônia Real visitou o local em outubro de 2014, e fez reportagem especial sobre a comunidade e os moradores.
Nos relatos, todos afirmaram ter relação de parentesco ou de afinidade com os primeiros ocupantes do Jaú: os três casais negros que migraram do Nordeste em 1910. Os moradores afirmaram ter conhecido sobre a decisão da AGU de removê-los, mas afirmaram serem contra a medida.
Os moradores da comunidade do Tambor são reconhecidos como quilombolas e tiveram seu certificado concedido pela Fundação Cultural Palmares, do governo federal em 2006. Com esta certificação, o passo seguinte seria a titulação fundiária.
Mas por estar sobreposta a uma unidade de conservação que restringe ocupação humana – o Parque Nacional do Jaú – a comunidade não teve a titulação fundiária assinada pelo Incra devido o litígio administrativo empreendido pelo ICMBIo .
O ICMBio contesta a regularização fundiária da comunidade alegando que o Parque Nacional do Jaú (PNJ) é uma unidade de proteção integral da fauna e da floresta, que exclui ocupação de populações humanas.
Na sua ação, o MPF pede que o Incra realize em um ano a conclusão da titulação de terras ocupadas pelo Tambor, mas o juiz, com base nas alegações do órgão federal, negou o pedido. Entre suas alegações, o Incra ressaltou que a sobreposição de terras levou a Câmara de Conciliação da AGU a pedir a remoção das famílias.
AGU decidiu remover
Em março de 2014, durante reunião em Brasília, Incra, ICMBio, Fundação Cultural Palmares, entre outros órgãos, decidiram pela remoção das famílias do Tambor, mas em nenhum momento questionaram a identidade quilombola dos moradores, conforme consta nos documentos, aos quais a Amazônia Real teve acesso. Na reunião, nenhuma liderança do Tambor esteve presente.
Foi para evitar a remoção e pedir agilidade na titulação da área que a o MPF entrou na justiça com pedido de liminar.
Sebastião Ferreira, vice-presidente da Associação de Moradores Remanescentes do Quilombo do Tambor, foi procurado pela Amazônia Real para falar sobre a decisão.
“Isso é coisa da cabeça do juiz, mas de onde ele tirou isso? O Tambor é quilombola. Foi reconhecido pela Fundação Palmares, tem documentos. O que está se tratando é sobre terra e não sobre se somos ou não quilombolas”, disse Ferreira, que vive na cidade de Novo Airão (a 180 quilômetros de Manaus), cidade mais próxima do Tambor, e se descreve como “representante legal” da comunidade.
Ferreira disse que vai se organizar para ir até a comunidade (cujo acesso pode levar até um dia de viagem de voadeira pelos rios Negro e Jaú) e informar sobre a decisão e procurar mobilizar os moradores. Ele reafirmou que os moradores se negam a sair do Tambor.
Procurador diz que juiz considerou tratado internacional
A Amazônia Real enviou perguntas por email para que o juiz federal esclarecesse sua decisão e dissesse com base em que documento ele pôs em dúvida a identidade quilombola do Tambor. Também pediu uma entrevista com ele. Após quatro dias do envio do pedido de entrevista, Ricardo Sales, por meio da assessoria de imprensa da Justiça Federal, respondeu que não iria se manifestar.
O atual procurador do 5º Ofício Cível do MPF/AM, Fernando Merloto Soave, que ficou no lugar de Julio José Araujo Júnior, autor da ação, disse que a decisão foi “omissa”, pois ela não aprecia o pedido que consta na ação.
“O juiz apresenta algo que não é divergência no processo. Não há contestação se os moradores são ou não quilombolas. Ele não se manifesta quanto ao nosso pedido”, disse.
Soave afirmou que vai definir que medidas tomará para responder à decisão. “Podemos entrar com um embargo de declaração para o juiz aclarar sua decisão. Ou então, um agravo de instrumento, que é um recurso contra uma decisão no curso do processo. Isso é feito no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília”, disse.
O procurador da República Julio José Araujo Junior disse que a decisão judicial desconsiderou tratados internacionais, a Constituição e a própria regulamentação sobre o tema, que falam em autorreconhecimento da identidade pela comunidade.
Ele ressaltou que ainda que não fosse assim, o autorreconhecimento dos quilombolas do Tambor já foi certificado pela Fundação Cultural Palmares e há relatório antropológico elaborado pelo Incra. O procurador afirmou que nem o Incra nem o ICMBio contestaram a identidade do grupo como quilombola.
“É um fato sobre o qual não paira qualquer controvérsia e que foi reconhecido, inclusive, durante toda a Câmara de Conciliação da AGU. O que se pretendeu com a ação judicial e não foi apreciado na liminar, é a garantia da permanência da comunidade na área do Parque Nacional. Além de estar lá há mais tempo, a comunidade quilombola tem o direito ao seu território assegurado pela Constituição, de modo que o art. 42 da Lei 9985/2000, que trata da impossibilidade de presença humana no parque, deve ser compatibilizado com a legislação de hierarquia superior”, disse.
Antropólogo diz que decisão é dúbia
O antropólogo João Siqueira, que foi o autor do estudo de identificação fundiária da Comunidade Quilombola do Tambor no período em que era funcionário do Incra, leu a decisão do juiz, a pedido da reportagem para comentar o assunto. Ele disse que não poderia supor sobre o que teria levado o juiz a levantar dúvida sobre a identidade quilombola dos moradores da comunidade do Tambor, mas afirmou que o juiz sequer se ocupa de apontar, na decisão, um marco ou pressuposto teórico que apoie sua percepção, por ora incerta, sobre a identidade étnica da referida comunidade.
Siqueira comentou ainda: “Nota-se que o conteúdo do documento que embasa a decisão do magistrado apresenta uma dubiedade que é própria das manifestações jurídicas de tradição brasileira porém, inconsistente, pois é evasiva e até confusa quanto aos fatos abordados. Note que num trecho do documento a identidade quilombola é colocada em dúvida, mas, logo em seguida, ele cita a existência do processo em trâmite na AGU referente à titulação da referida comunidade, o que se pode depreender com isso que ele, como operador do direito e um agente do judiciário, deveria, com base nesse fato, estar ciente que a identidade quilombola da comunidade já fora admitida pelo Estado brasileiro”, analisou.
João Siqueira continuou: “O juiz está não somente recorrendo à usual estratégia da dilação probatória, mas, também, reificando uma das principais características do direito brasileiro. A saber, a abstração”.
Em 2012, João Siqueira defendeu tese de doutorado com o título “Tambor dos Pretos: processos sociais e diferenciação étnica no rio Jaú, Amazonas”, pela Universidade Federal Fluminense.
Autor do livro “Do rio dos Pretos ao Quilombo do Tambor”, o antropólogo Emmanuel de Almeida Farias Júnior comparou a decisão de Ricardo Sales com a tomada pelo juiz Airton Portela, do Pará.
“Essa decisão do juiz federal do Amazonas coincide com o momento que está ocorrendo. Em Santarém, a Funai reconheceu os indígenas, mas o juiz diz que eles não são. Se grupos dizem que são quilombolas ou índios, eles são. Têm leis que garantem isso. O que os que questionam isso querem? Que mais elementos os juízes querem? Que se faça DNA? Ou que alguém chegue e diga que eles não são?”, afirmou Farias Júnior.
Em dezembro passado, o juiz Airton Portela declarou como inexistente a Terra Indígena Maró, em Santarém (PA), mesmo que a área já tenha sido reconhecida pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Segundo Airton Portela, os indígenas da etnia Borari-Arapium são ribeirinhos. Assim, o juiz determinou que a União e a Funai deixem de declarar os limites da terra indígena e de todos os procedimentos para demarcá-la.
Emmanuel de Almeida Farias Júnior diz que duvida que o juiz tenha lido o seu livro, anexado na ação do MPF, ou outro estudo atestando a presença de quilombolas no Tambor.
A reportagem da Amazônia Real teve acesso ao processo completo sobre o caso e viu que, nas petições anexadas às respostas enviadas pelo ICMBIo, há um estudo de 2009 onde o órgão ambiental questiona a identidade quilombola do Tambor, e cita pesquisas do historiador Victor Leonardi, estudioso na área do rio Jaú, onde ele nega que a região é habitada por quilombolas, apenas por ribeirinhos.
Foto: Os irmãos Vandernilson, Izaniele Nascimento e Ana Kelly, que nasceram e vivem na comunidade do Tambor – Elaíze Farias/AR
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.
No Amapá temos conflito semelhante. No Parque Nacional do Cabo Orange existe uma comunidade quilombola certificada pela Fundação Cultural Palmares “Comunidade de Cunani”, que parte do território sobrepõe a área dessa unidade de conservação. Ocorre que a comunidade habita a área em anos que antecede a data de criação da unidade de conservação. No meu ponto de vista seria um absurdo semelhante decisão na câmara de conciliação da AGU. Uma tremenda injustiça para com os quilombolas, que historicamente ocupam a área.