Cynara Menezes – Socialista Morena
“Estou aperreado”. “Não me aperreie, menino!”. Quem, no Nordeste, nunca ouviu uma frase assim? Usar “aperreado”, “aperreio”, no sentido de estar chateado, incomodado, em uma situação difícil, faz parte do vocabulário corrente dos nordestinos. Mas de onde é que vem essa palavra, afinal?
Aperreado vem de perro, que, em espanhol, significa cachorro. Aperreamiento (aperreamento, em português), portanto, significa literalmente ser alvo de cães. A palavra surgiu da prática comum entre os conquistadores da América de atiçar cães ferozes contra os nativos para os amedrontar e, em muitos casos, os devorar. Aperreado não é sinônimo de “agoniado”, “aflito”, mas de “dilacerado ou comido por cães”. Não é chocante?
É incrível como um termo aparentemente inocente pode dizer tanto sobre a forma como nos ensinam a história. No passado, os conquistadores foram muitas vezes descritos como “valentes”, “aventureiros”, “audazes”, “heróicos”. E, mesmo quando as crueldades que eram capazes de fazer vieram à tona, os detalhes sórdidos foram omitidos. Um exemplo é o papel (horrendo) que tiveram os cães na conquista.
Tudo indica que os primeiros cães europeus que chegaram à América foram mastins, alanos e galgos espanhóis trazidos por Cristóvão Colombo em sua segunda viagem, em 1493. Até então, só havia cães esquimós e um tipo de cachorro tão manso que vários cronistas os chamavam de “o cão mudo”. Conhecidos na língua náuatle como techichi ou itzcuintli, foram domesticados pelos índios como cães de companhia, sobretudo para as crianças. Eram encontrados em abundância em todo o México e América Central, mas, de carne saborosa, eram também comidos pelos espanhóis e nativos, e desapareceram.
Já os ibéricos tinham treinamento de cães de guerra. Utilizados para submeter os indígenas, aterrorizando-os psicológica e fisicamente, as feras eram capazes de, ao simples comando de “pega!”, estraçalhar com seus caninos gigantescos dezenas de índios de uma vez. Há cães que passaram à história por sua “bravura”, eufemismo para ferocidade e dentes afiados: Becerrillo, Leoncillo, Amadis, Bruto.
Apesar de estes relatos terem sido convenientemente deixados de lado na história que nos ensinam nos colégios, os cronistas da época são pródigos em descrições, principalmente Bartolomeu de las Casas (1474-1566). O frei dominicano espanhol, célebre por denunciar em suas obras o sadismo de seus compatriotas, que matavam velhos, adultos e crianças indígenas por diversão, traz alguns depoimentos revoltantes sobre o uso de cães no livro Brevísima Relación de la Destrucción de las Indias, de 1552 (leia aqui). É de chorar:
“Todos que podiam se escondiam nas montanhas e subiam às serras fugindo de homens tão desumanos, tão sem piedade e tão ferozes bestas, extirpadores e inimigos capitais da linhagem humana. Ensinaram e amestraram galgos, cães bravíssimos que, vendo um índio, o despedaçavam em um credo, e se arremetiam contra ele e o comiam como se fosse um porco. Esses cachorros fizeram grandes estragos e carnificinas.”
“Fizeram e cometeram grandes insultos e pecados, e acrescentaram muitas e grandíssimas crueldades mais, matando e queimando e assando e atiçando cachorros ferozes, e depois oprimindo e atormentando e explorando nas minas e em outros trabalhos, até consumir e acabar com todos aqueles infelizes inocentes.”
“Como andavam os tristes espanhóis com cães bravos buscando e aperreando os índios, mulheres e homens, uma índia enferma, vendo que não podia fugir dos cachorros, para que não a fizessem pedaços como faziam aos outros, pegou um trapo e amarrou ao pé um menino que tinha de um ano e enforcou-se numa viga, e não o fez tão rápido que não chegassem os cães e despedaçassem a criança, mas antes de que acabasse de morrer um frei o batizou.”
“Indo certo espanhol com seus cães à caça de veados ou de coelhos, um dia, não achando o que caçar, lhe pareceu que os cachorros tinham fome, e tirou um menino pequeno de sua mãe e com um punhal cortou-lhe em nacos os braços e as pernas, dando a cada cachorro a sua parte; e, depois de comidos aqueles pedaços, jogou todo o corpinho no solo a todos juntos.”
Horror: segundo de las Casas, os espanhóis mantinham inclusive uma espécie de açougue onde penduravam pedaços de índios para dar aos cachorros. Curioso é que os europeus de então se chocavam com a existência de canibais entre os índios da América…
“Já está dito que os espanhóis das Índias têm cães bravíssimos e ferocíssimos, adestrados e ensinados para matar e despedaçar os índios. Saibam todos que são verdadeiros cristãos, e ainda os que não são, se foi ouvida no mundo tal coisa, que para manter os ditos cães trazem muitos índios em correntes pelos caminhos, que andam como se fossem varas de porcos, e os matam, e têm açougue público de carne humana, e dizem uns aos outros: ‘Me dê um quarto de um desses bellacos (“inúteis”, “canalhas”, como se referiam aos índios) para dar de comer a meus cachorros até que eu mate outro’, como se fossem quartos de porco ou de carneiro. Há outros que saem a caçar de manhã com seus cães, e voltando para comer, perguntados como foi, respondem: ‘Foi bem, porque coisa de quinze ou vinte bellacos eu deixei mortos com meus cachorros’.”
Na América do Sul há menos relatos disponíveis sobre os aperreamentos, mas sabe-se que os cães foram usados contra os índios na Colômbia, Venezuela e Peru. No Brasil, fala-se de cães da raça fila utilizados na caça de escravos fugidos. Como será que a palavra “aperrear” entrou de forma tão forte no Nordeste? Ainda não sei, mas prometo descobrir. Desconfio que seja coisa dos bandeirantes, aqueles “heróis” paulistas.
Se eu pretendo que os nordestinos parem de falar que estão “aperreados” por causa dessa origem tão abjeta? Não, embora termos como “judiar” e “denegrir” sejam hoje vistos com reservas, pois trazem embutidos preconceitos de raça. Eu ficaria satisfeita se, ao ouvirem ou pronunciarem este termo, pelo menos viesse à memória das pessoas que milhares de índios foram mortos a dentadas para que “aperrear” entrasse em nossos dicionários.
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Ilustração: O “açougue” humano ilustrado por Theodor de Bry
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.