Para Tzvetan Todorov, filósofo e ensaísta, a liberdade de expressão e o seu corolário, a liberdade de imprensa, defendidas depois do dia 11 de janeiro pelas ruas, não podem ser ilimitadas, e seria errôneo reduzir os acontecimentos da semana a esse combate
Céline Rouden – La Croix/IHU – Unisinos*
O senhor ficou surpreso que os franceses se mobilizaram em tão grande número, no domingo, para defender os valores da República?
Os franceses saíram às ruas, em primeiro lugar, para expressar a sua indignação diante dos assassinatos e para encontrar o efeito reconfortante de pertencer a uma grande comunidade, que rejeita a violência que se abateu sobre eles. A expressão “Je suis Charlie” [Eu sou Charlie] permitiu que todos participassem, sem especificar muito a natureza do engajamento.
No entanto, essa fórmula, da qual eu entendo a atração, me incomoda um pouco. Em primeiro lugar, acho que ela é presunçosa: se “Charlie” designa as vítimas do atentado, não, nós não somos todos equivalentes às vítimas, nós não tínhamos os posicionamentos arriscados do passado como os jornalistas assassinados. Nós nos atribuímos abusivamente o status de vítima. Se pensarmos mais na sua condição de militantes, é também uma assimilação abusiva: sabemos bem que nem todos aprovaram as escolhas políticas desses jornalistas.
Mas, além do Charlie Hebdo, não era a liberdade de expressão que os manifestantes queriam defender como um valor, embora algumas vezes poderiam estar chocados com certos desenhos?
A liberdade de expressão pública, ou a liberdade da mídia, não é um valor inalienável, intangível ou inegociável, como já foi dito muitas vezes nos últimos dias. O Estado democrático é a expressão da vontade popular, assim como um protetor das liberdades individuais, incluindo a liberdade de imprensa. Deve-se, então, defender também um certo número de outros valores, como a segurança dos cidadãos, a paz civil entre eles, a justiça, a igual dignidade de todos. Esses valores exercem um efeito de limitação uns sobre os outros. A política de Estado é sempre um compromisso entre eles. A liberdade de imprensa também é um poder. Ora, na democracia, nenhum poder sem limites seria legítimo.
Não esqueçamos que o jornal do antissemita Édouard Drumont, no fim do século XIX, se chamava La libre parole [A livre palavra]: a liberdade, para ele, consistia em poder falar mal dos judeus. Muito mais perto de nós, os partidos xenófobos na Europa se referem todos à liberdade de imprensa para poderem falar impunemente todo o mal que eles pensam dos muçulmanos que vivem no seu país. Esse objetivo não estava ausente entre os autores iniciais das caricaturas do Profeta, na Dinamarca: ao provocar a indignação da população muçulmana, eles queriam revelar ao grande público a intolerância dessa população. Devemos sempre nos interrogar, ao defender a liberdade de imprensa, sobre a relação de poder entre quem a exerce e quem a sofre. Drumont atacou uma minoria (os judeus) já discriminada, beneficiando-se do apoio da maioria. Edward Snowden, que revelou, graças à imprensa, os desvios ilegais das agências de vigilância dos Estados Unidos, é um indivíduo isolado que acusou o governo do seu país. São dois casos diferentes.
A liberdade de imprensa não é consubstancial à democracia?
Não tenho certeza de que os trágicos acontecimentos que acabamos de viver devam ser analisados no contexto de um combate a favor ou contra a liberdade de imprensa. Isso seria isolar um dos eventos, o ataque contra o jornal, dos outros. Coulibaly, que agiu de forma coordenada com os irmãos Kouachi, declarou ter recebido instruções da organização chamada “Estado Islâmico” e exigiu que o governo francês retire as suas tropas de todos os Estados de maioria muçulmana. Mohamed Merah nunca evocou a liberdade de expressão. Os assassinos do Charlie Hebdoderam outra justificativa para o seu gesto: queriam “vingar o Profeta”. O contexto desses gestos está ligado não à liberdade da mídia, mas ao conflito entre uma forma pervertida do Islã e alguns governos ocidentais, incluindo o da França, que a combatem militarmente no território desses Estados muçulmanos. Se nos lembrarmos desse quadro, do qual fazem parte os atos cometidos na França, não se pode mais falar, como se faz agora, de “caráter incompreensível dos crimes cometidos”. Nem todas as vítimas desse conflito vivem na França, longe disso.
Em uma obra recente, o senhor evoca “os inimigos internos” da democracia. O extremismo religioso, que gera o terrorismo, é um desses inimigos? Como combatê-lo?
Não, o extremismo religioso, a teocracia, assim como a ideologia totalitária, são inimigos “externos” da democracia, eles a combatem abertamente. Os inimigos íntimos adotam atitudes que se referem à democracia, mas, na realidade, a traem, forçados a tomar suas escolhas absolutas e a ignorar a limitação mútua que deve se estabelecer entre os diferentes princípios democráticos. Isso vale para o neoliberalismo, que não deixa espaço para a vontade coletiva, ou para o neoconservadorismo, que quer impor o bem aos outros com golpes de mísseis ou de ocupação terrestre do seu país. Esses inimigos íntimos ameaçam hoje a democracia não menos do que os seus inimigos declarados. São eles que devem ser responsabilizados, nos Estados Unidos, pela legalização da tortura (Abu Ghraib, Guantánamo) ou pela generalização da vigilância eletrônica da população.
*Tradução é de Moisés Sbardelotto.