Povos do AP terminam o 1º Protocolo Comunitário para preservação ambiental

por Amelia Gonzalez, G1

Foi durante a Cúpula da Terra, evento paralelo à Rio-92 que aconteceu no Aterro do Flamengo, no Rio, que a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) foi aberta. Trata-se de um acordo internacional que reconhece, já em seu preâmbulo, a “estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais”.  E é no artigo número 8 dessa norma que fica estabelecido que os países signatários devem “respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e utilização sustentável da diversidade biológica”.

Essa sugestão embasa a necessidade de promover protocolos em tais comunidades. É uma espécie de código de ética que os moradores constroem juntos para viver de maneira melhor, mais justa para todos e também de maneira a tornar sustentável o uso dos recursos biológicos. Para ajudar a fazer um Protocolo Comunitário é preciso ter conhecimento do lugar e metodologia.

Conhecimento do lugar, a Rede Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), que acaba de finalizar o primeiro Protocolo Comunitário do Brasil, tem. Afinal, o projeto foi realizado no Arquipélago do Bailique, no Amapá, território muito frequentado pela equipe de Rubens Gomes, presidente da organização. Já a metodologia foi sendo criada, tendo como base trabalhos realizados pela própria organização, que se autointitula “Rede de Comunidades da Floresta”, e, acima de tudo, a relação entre pessoas.

Para espraiar a técnica e assim permitir que outros povos e comunidades possam usá-la, respeitando o que diz a CDB, o GTA escreveu uma cartilha, que a partir de terça-feira (13) já pode ser acessada em duas versões (disponíveis aqui e aqui) , como explicita a Convenção, que só foi adotada na Conferência das Partes da ONU realizada em Nagoya, no Japão, em 2010, mas não foi ratificada pelo Brasil (leia aqui sobre o Protocolo de Nagoya). A Convenção é o único instrumento internacional que aborda a diversidade biológica com três objetivos: preservar a biodiversidade; o uso sustentável de seus componentes; a repartição justa e equitativa dos benefícios advindos da utilização dos recursos genéticos.

É exatamente neste último ponto que entra o Protocolo Comunitário, “uma ferramenta de gestão de territórios, assim como do controle e da forma de uso de recursos naturais”, como está escrito na cartilha à qual tive acesso em versão eletrônica. Um conjunto de regras internas, estabelecidas pelos próprios moradores – no caso do Bailique, cerca de 11 mil pessoas – que, auxiliados pela delicada intermediação dos técnicos do GTA, percebem como é necessário cuidar do entorno para continuarem contando com a biodiversidade a seu favor.

O Protocolo Comunitário do Bailique começou a ser construído em outubro de 2013 e só agora ficou pronto. Não é nada fácil levar a sério a necessidade de ouvir o maior número de pessoas interessadas. E é absolutamente indispensável, como se sabe, para costurar projetos que realmente levem em conta o estilo singular das pessoas que são consideradas povos tradicionais.

Regras para caça
Os leitores que me acompanham nesse espaço sabem que estive no Bailique em junho do ano passado acompanhando o primeiro grande encontro de trabalho de todas as 50 comunidades que formam o arquipélago, protagonistas desse primeiro Protocolo Comunitário do Brasil. Pude perceber, in loco, os desafios que cercam pessoas que, entre outras particularidades, não têm praticamente intermediários para fornecer-lhes o alimento que consomem. Só para ilustrar: o arquipélago é habitat de preguiças, e a carne desse bicho faz parte da cultura alimentar daqueles moradores. Mas as preguiças têm apenas um filhote por gestação, que dura cerca de 180 dias. E durante nove meses carregam a cria nas costas até que ela esteja preparada para enfrentar a mata sozinha.

A caça predatória, sem respeitar essas peculiaridades, está fazendo desaparecer o bicho preguiça da região. O assunto surgiu numa das reuniões, puxado pelos próprios moradores, preocupados com a escassez, sobressaltados com o fato de que tal escassez leve à extinção daquela espécie tão importante para sua nutrição. Pude constatar: as crianças adoram aquele tipo de carne. O debate foi exaustivo e ainda inconclusivo, mas os moradores do Bailique perceberam que será preciso obedecer a algumas regras sobre a caça ao bicho. Regras que eles próprios vão ditar, sobre pesquisa que eles próprios se encarregarão de fazer.

O mesmo acontece com os peixes da região. Já há um período de defeso – entre novembro e março – quando os pescadores passam a ganhar um auxílio do governo federal para respeitarem a época da desova. Percebi que o cumprimento dessa exigência já não é mais uma questão de “executar ordens superiores”. Durante as reuniões para o protocolo, pescadores mais velhos deram seu depoimento aos mais novos, reforçando o que está escrito em lei. E os mais novos ouviram, acataram.

Exemplo para outros lugares
Conversei com Rubens Gomes, presidente do GTA, que me contou que em 27 e 28 de fevereiro toda a comunidade do Bailique vai se reunir novamente para planejar e, aí sim, começar o período de implementação de seu protocolo.

“O importante é que já temos uma referência criada em parceria com as comunidades tradicionais. Costumo dizer que agora é que o protocolo vai começar, é hora de aplicar de fato a metodologia. E estamos buscando apoio para formar, treinar novos multiplicadores para replicarem esse método pelo Brasil afora, na Amazônia, de preferência pelas 20 regionais da rede GTA. E já estudamos também como promover rodas de conversas com lideranças indígenas. Se o governo não cria estratégia para proteger o conhecimento tradicional, cabe às organizações da sociedade civil criarem instrumentos de proteção. E o Protocolo Comunitário pode vir a ser muito importante para esse fim”, disse ele.

O consentimento “livre, prévio e informado” é a base de todo o processo de construção do protocolo. Os técnicos escolhidos para realizarem os debates precisam conviver com as pessoas da comunidade para que o consentimento possa nascer espontaneamente, a partir de um sentimento de confiança. Não dá para esquecer que estamos falando sobre pessoas que vivem em lugares bem distantes, de difícil acesso, longe de grandes centros e onde a comunicação é prejudicada até pela falta de luz. Só para ficarmos no exemplo do Bailique, o arquipélago tem luz 24 horas por dia em algumas comunidades porque o estado paga o diesel para manter o gerador ligado. Nas demais, esse tempo é bem menor. O Amapá só começou a ter um sistema de telefonia pública nos anos 70.

Não é a solução para todos os problemas dos povos tradicionais, mas o Protocolo Comunitário merece um olhar mais atento por parte das políticas públicas. Muito reverenciada na teoria e nos discursos, seria bom se a tal parceria fosse, de fato, levada em conta. Um governo em cujo cerne está a legítima ocupação com as causas sociais pode ter muito o que aprender com os povos tradicionais.

Foto: Amelia Gonzalez

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.