Por Michael F. Schmidlehner*, em O Nortão
Uma declaração de lideranças das comunidades Paiter Suruí, na qual pedem a extinção do projeto de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal “plus” (REDD+) em suas terras pode ser um marco decisivo nas discussões acerca de projetos de sequestro de carbono e serviços ambientais em terras indígenas. O Projeto Suruí Carbono até então foi apresentado internacionalmente pelas organizações e empresas envolvidas como exemplo pioneiro, que poderia servir para a implementação de projetos similares em outras comunidades indígenas. Uma entrevista publicada pela Revista Porantim com o cacique Henrique Iabaday Suruí em dezembro do ano passado, assim como a declaração supracitada começam revelar o outro lado da história, mostrando graves impactos e efeitos desestruturantes do projeto sobre as comunidades. Levanta-se mais uma vez a questão, até que grau os programas de REDD e serviços ambientais não são soluções inadequadas para os problemas de comunidades indígenas em geral.
O projeto
Iniciado em 2007 e tendo a Associação Metareila do povo Suruí como proponente, os principais intermediários e facilitadores do Projeto Carbono Suruí na terra indígena Sete de Setembro (Rondonia) são as ONGs norte-americanas Forest Trends e Equipe de Conservação da Amazônia ACT, o Instituto de Conservação e Desenvolvimento do Amazonas – IDESAM, Associação e Defesa Etnoambiental Kanindé e Fundação Brasileira para a Biodiversidade – FUNBIO. A implementação do projeto contou ainda om o acompanhamento da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Sendo politicamente bem articulado e recebendo prêmios no exterior, o presidente da Associação Metareilá Almir Narayamoga Suruí propaga a ideia de implementar projetos REDD também em outras terras indígenas no Brasil. Uma das suas visitas no Acre, facilitadas por Forest Trends e Comissão Pró Índio do Acre (CPI-AC) foi noticiado com as palavras: “A palestra de Almir Narayamoga Suruí, chefe dos Paiter (RO), no último dia da Oficina de Informação sobre o Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais (Sisa), acabou com as dúvidas das lideranças indígenas do Acre e encheu todos – índios e não-índios -, de esperança: a proteção da floresta e da biodiversidade tem valor, é em dólar e aos milhões”.
Em 2013 a empresa de cosméticos Natura, adquiriu as primeiras 120 toneladas de carbono do Projeto Carbono Suruí , tornando-se com isto primeira do mundo a adquirir créditos de carbono indígena, emitidos por duas certificadoras internacionais. O valor do negócio teria girado em torno de R$ 1,2 milhão.
As denúncias
Na sua entrevista, Henrique Suruí relata sobre fortes represálias em consequência do projeto: “Acabaram com as plantações culturais e com o artesanato tradicional, com a pesca, a caça, a liberdade na sua terra. Além disso, nós ficamos na mão da Polícia Federal, que nos ameaçava por qualquer coisa, por fazer derrubada ou caça na nossa terra… quem fizesse, seria condenado por isso. Acabou a liberdade do Suruí na nossa terra. A Polícia Federal agia por pressão dos responsáveis do projeto. Eles que pediam pra PF atuar, pra mostrar pro mundo que os Suruí poderiam cumprir um acordo.” Alem disso, Henrique denuncia que o dinheiro da Natura não chegou até as comunidades: “ninguém sabe onde tá este dinheiro”.
A entrevista provocou veementes reações por parte dos proponentes do projeto. A Associação Metareilá emitiu uma nota de repúdio avisando que processaria a jornalista responsável pela entrevista na Comissão de Ética e Sindicância do Sindicato dos Jornalistas do DF . Apos publicação da entrevista no REDD Monitor (site de discussão sobre REDD, em inglês ), representantes da Forest Trends publicaram respostas onde procuram desmentir as afirmações de Henrique Suruí, questionando sua credibilidade ao chamar ele o “líder da facção madeireira”.
A declaração que o CIMI recebeu na semana passada e publicou nesta segunda-feira (12), foi assinada (leia) por cerca de 50 indígenas Suruí, 22 delas identificados como caciques ou dirigentes das associações comunitárias. Nela, os indígenas agradecem “a oportunidade levantada pelo Henrique e pelo jornal Porantim de provocar a discussão a respeito do Projeto de Carbono, que o Henrique falou em cima da realidade do nosso povo”. Fornecendo detalhes sobre repasses de recursos do Fundo do projeto para as associações comunitárias, eles confirmam a constatação de Henrique que apenas uma ínfima parte do pagamento da Natura chegou nas comunidades. A declaração está escrita de maneira bastante sensata procurando evitar desnecessárias polemicas. Os autores defendem tanto Henrique Suruí, afirmando que ele não promove a venda de madeira, quanto os parceiros do projeto que na sua avaliação tiveram boa intenção. Entretanto, eles denunciam claramente a má gestão, intransparência e autoritarismo por parte da Associação Metraleirá e seu presidente Almir Suruí. “… algumas lideranças já estão sendo chamadas a assinarem recibos de valores que as associações não receberam.”
Eles não mencionam um outro fato bastante preocupante (do qual possivelmente nem tem conhecimento): Almir Suruí, na sua função de coordenador da Coordenação da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas – Cunpir/RO, enfrenta problemas na justiça em decorrência de um convênio de R$ 9,5 milhões que esta organização assinou em 2002 com a Fundação Nacional de Saúde. (mais informação aqui).
Perguntas
Muitas perguntas ainda terão que ser respondidas. Como se chegou a esta situação paradoxa, onde há de um lado grande visibilidade externa deste projeto e do outro lado total abandono das comunidades numa situação de miséria e divisão interna? Em que consistiu de fato o acompanhamento da FUNAI? Ela deve ter tido conhecimento dos problemas judiciais do presidente da Metraleirá. Porque o Ministério Público e a Polícia Federal, que tanto se preocupam em fiscalizar e punir as “infrações ambientais” dentro da Terra Indígena até agora não investigaram as irregularidades do Projeto Carbono?
Também tem que questionar sobre os parceiros não governamentais. Mesmo que as lideranças Suruí afirmam que se trata de organizações sérias, tem que ser perguntado: Quais informações os Suruí possuíram sobre os possíveis impactos de projetos REDD? Como e por quem o projeto foi explicado para eles?
A consulta com as comunidades sobre o projeto foi conduzida pela ACT, que publicou em 2010 um documento intitulado “Consentimento Livre, Prévio e Informado Projeto Suruí Carbono”. O documento afirma que o processo de consulta garantiu que as “informações necessárias” foram fornecidas. Mas, quais informações foram estas? Quais informações devem ser consideradas necessárias para decidir sobre um projeto desta natureza? O documento fala de uma “metodologia participativa”, dos marcos legais e de teorias antropológicas que teriam orientado os “eventos comunicativos” e “articulações interétnicas” que compuseram o processo de consulta. Entretanto, o documento trás praticamente nenhuma informação sobre os conteúdos que realmente foram discutidos com os quatro clãs dos Paiter-Suruí nestes encontros.
A declaração dos Suruí na semana passada revela alguns detalhes sobre as promessas que foram feitas nesta fase inicial, tais como renda mensal e melhoria de vida para as famílias e de que “o paiter iria virar empresário”. Obviamente, as comunidades não foram informadas sobre as crescentes críticas que no mundo afora vem sendo articulados acerca de projetos do tipo REDD. Estas críticas se referem desde a questionável logica do “pagar para poluir” e da “lavagem verde” (lembramos neste contexto da multa de R$ 21 milhões que a Natura levou em 2010 por ter acessado recursos genéticos de forma irregular que prejudicou a imagem pública da empresa) até os concretos e bem documentados impactos que estes projetos já vem causando há anos para comunidades indígenas em outros países da America Latina, Africa e Asia, tais como perda de soberania alimentar e criminalização. Estas informações não teriam sido essenciais para subsidiar o processo de decisão dos Paiter Suruí e para evitar futuros danos materiais e morais?
Quem é a ACT?
Vale levantar neste contexto alguns fatos sobre a Amazon Conservation Team ACT (Equipe de Conservação da Amazonia). Esta ONG, com sede principal nos Estados Unidos atua em diversos países da Panamazônia, trabalhando principalmente com “mapeamentos culturais” e aquilo que chamam “conservação biocultural”. Este trabalho inclui entre outros capacitações de guardas parque indígena, programas para aprendizes de xamanismo e clínicas de medicina tradicional. O componente brasileiro da organização foi fundado em 2002 por iniciativa do primatólogo Holandês Marco van Roosmalen e seu filho Vasco van Roosmalen, que preside a organização até hoje. Marco van Roosmalen foi acusado de biopirataria e causou fortes polemicas no Brasil, entre outros após ter “descoberto” duas espécies de macacos. Esses animais, endêmicos da Amazônia e conhecidos pelas comunidades tradicionais por nomes como Zog-Zog, ganharam nomes “científicos” de Roosmalen como, por exemplo, Callicebus Bernhardi, em homenagem ao príncipe Bernardo, da Holanda (fundador da organização conservacionista WWF).
Segundo o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra a Biopirataria, de 2006, a ACT possui ligações com empresas estadunidenses da indústria de farmacêuticos e cosméticos e teria acessado, de forma irregular, patrimônio genético nacional e conhecimento tradicional associado através da elaboração de um “mapa cultural” dos povos indígenas do Tumucumaque e do Xingu. Após investigação, esta CPI concluiu: “Embora a ACT Brasil negue, ficou evidenciado que a elaboração do Mapa Cultural não foi uma demanda das comunidades indígenas do Xingu. Esta CPI não consegue conceber que elas possam ter solicitado um produto para o qual a grande maioria não entendia (e ainda não entende) a utilidade. No máximo, esse desejo pode ter sido manifestado por alguns chefes indígenas e a ACT, por conta própria, resolveu estender a ideia às demais comunidades do Xingu, praticamente impondo-lhes a execução do mapa. […] No entendimento desta CPI, esse comportamento por parte da ACT Brasil constitui evidente aliciamento das comunidades indígenas”.
Como uma organização com este histórico pude ser considerada competente para conduzir a consulta com os Paiter Suruí? Esta e muitas outras perguntas ainda terão que ser respondidas, se realmente queremos aprender as lições que a experiência do Projeto Carbono Suruí oferece.
Solidariedade da sociedade civil
Enfim, a partir da declaração das lideranças, e da entrevista de Henrique Suruí começa revelar-se uma situação muito triste deste povo, marcada pela corrosão das relações entre si e com seu ambiente. Os povos indígenas encontram-se cada vez mais expostos aos interesses de empresas e de ONGs do “ambientalismo de mercado”, ao mesmo tempo sofrendo as represálias de um governo que cada vez mais se alia a estes interesses.
A sociedade civil precisa se solidarizar com a luta destes povos e acompanhar ativamente as políticas indigenistas do país. Assim podemos contribuir para que povos como os Paiter Suruí, ao invés de se tornarem reféns da lógica do mercado de carbono, possam realizar projetos construídas a partir das demandas reais e das ideias próprias das comunidades, ou seja, nas palavras das lideranças Suruí “projetos que garantam uma autonomia de verdade para as comunidades, com desenvolvimento sustentável e geração de renda sem depredação dos recursos naturais”.
Clique aqui para leitura da Carta de Esclarecimento das Surui.
* Michael F. Schmidlehner, nativo da Áustria e naturalizado brasileiro, é fundador da organização não-governamental acreana Amazonlink.org e trabalha como pesquisador, jornalista e professor de filosofia. Suas pesquisas e publicações são principalmente relacionadas a questões de acesso e repartição de benefícios dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e de justiça climática na Amazônia.