Desembargadora Kenarik Boujikian: “Kátia Abreu deve achar que todos nós somos gados e ela pode dizer as bobagens e mentiras que quiser”
Por Conceição Lemes, em Viomundo/Geledés
Não é nenhuma novidade. Kátia Abreu, a nova ministra da Agricultura do governo Dilma Rousseff, é contra o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a reforma agrária e a favor da PEC 215 (transfere do Executivo para o Legislativo a homologação da demarcação das terras indígenas).
Tanto que, no final de novembro de 2014, diante dos rumores de ela iria para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), intelectuais fizeram um manifesto contra a sua possível indicação. Não adiantou.
Mantido o seu nome, esperava-se que, na condição de ministra, ela talvez pudesse ser mais criteriosa. Ficou na esperança. Em entrevista à Folha de S. Paulo nessa segunda-feira 5, ela falou como jagunço do agronegócio.
“Katia Abreu representa o que de mais atrasado se pode ter na política agrária”, afirma a magistrada Kenarik Boujikian. “Ela ocupa este ministério para um fim específico: a defesa do latifúndio e do agronegócio, passando por cima dos direitos dos povos indígenas, dos trabalhadores da terra e do povo brasileiro.”
“Kátia Abreu foi inescrupulosa, na medida em que, deliberadamente, pretendeu distorcer a realidade do país”, acusa a magistrada. “Ela demonstrou total desrespeito à nossa história, ao povo brasileiro e à Constituição Federal.”
“Deve achar que todos nós somos gados e ela pode dizer as bobagens e as mentiras que quiser e todos, passivamente, acreditarão”, condena. “Não é possível aceitar que um ministro de Estado atue com tanta má-fé.”
Kátia Abreu é senadora pelo PMDB do Tocantins e, há cerca de 6 anos, presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Ela foi a primeira mulher a assumir a presidência da entidade. Foi ainda a primeira mulher a ser escolhida para presidir a bancada ruralista no no Congresso .
Kenarik Boujikian é desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD). É a juíza que condenou o ex-médico Roger Abdelmassih a 286 anos de prisão por estupro de suas pacientes.
Nessa entrevista ao Viomundo, Kenarik Boujikian faz uma análise das declarações de Kátia Abreu à Folha.
Viomundo — A senhora se surpreendeu com alguma coisa dita por Kátia Abreu na sua primeira entrevista como ministra do governo Dilma?
Kenarik Boujikian — Não tive nenhuma surpresa. Ela explicitou o que todos já sabiam: Kátia Abreu representa o que de mais atrasado se pode ter na política agrária. Ela ocupa este ministério para um fim específico: a defesa do latifúndio e do agronegócio, passando por cima dos direitos dos povos indígenas, dos trabalhadores da terra e do povo brasileiro. Na entrevista, Kátia Abreu foi inescrupulosa, na medida em que, deliberadamente, pretendeu distorcer a realidade do país.
Viomundo — Demonstrou o quê?
Kenarik Boujikian – Total desrespeito à nossa história, ao povo brasileiro e à Constituição Federal. Deve achar que todos nós somos gados e ela pode dizer as bobagens e as mentiras que quiser e todos, passivamente, acreditarão. Não é possível aceitar que um ministro de Estado atue com tanta má-fé.
Viomundo — Do que ela disse o que considera mais grave?
Kenarik Boujikian – Difícil dizer, tendo em vista o volume de atrocidades que ela despejou. Mas, se é para destacar alguns pontos, vamos lá:
– “Os índios saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção”.
– A aprovação da PEC 215 não trará consequências danosas para a demarcação das terras indígenas.
– O “latifúndio não existe mais” aqui no Brasil
– Não é necessário acelerar a reforma agrária.
– O que o MST faz é invasão e é ilícito.
– “Temos de apostar tudo na privatização” com alteração da legislação referente às hidrovias.
Como se vê, a gravidade é de duas ordens. Ela apresenta fatos falsos como se verdadeiros fossem. E exibe um projeto que ela pretende implementar que vai contra os objetivos da República, esculpidos na Constituição Federal, como: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Defender esse projeto de economia agrícola para o país é um absurdo, pois o Brasil precisa de maiores investimentos nesta área importantíssima da economia. Agora, distorcer a realidade é algo de outro patamar ético.
Viomundo — Gostaria que, agora, esmiuçasse as atrocidades ditas, começando pela PEC 215.
Kenarik Boujikian — A declaração de que a PEC 215 não trará consequências danosas para a demarcação das terras indígenas é totalmente estapafúrdia. Ela pretende pretende alterar toda a nossa história. Todo brasileiro sabe que nestas terras estavam os nossos indígenas.Desde 1500, são eles que tiveram suas terras desmatadas e ocupadas. Processo que, no século XX, se intensificou no Mato Grosso do Sul, desalojando os guarani, kaiowa, terena e outras comunidades de suas terras. Muitos deles estão em beira de rodovias. Uma injustiça sem igual.
Viomundo — São os não índios que desmatam a floresta…
Kenarik Boujikian –– Pois é isso mesmo. O Estado brasileiro não cumpre o artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece aos povos indígenas o respeito à sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocuparam e declarou nulo todo e qualquer negócio jurídico que as tenha por objeto. A verdade é que as demarcações de terras indígenas estão empacadas, especialmente no que compete ao poder executivo.
Viomundo — A propósito, como avalia o primeiro mandato do governo Dilma nesse quesito?
Kenarik Boujikian – Vergonhoso. Não fez nada em relação às demarcações. Nem a presidenta nem o Ministro da Justiça cumpriram o seu papel. O ministro José Eduardo Cardozo tem em sua mesa relatórios circunstanciados que aguardam a portaria declaratória, além de diversas terras que sequer possuem tais relatórios, que devem ser feitos por órgãos submetidos ao seu ministério.
Viomundo — E a campanha Eu apoio a causa indígena?
Kenarik Boujikian – A campanha, que por sinal o Viomundo e o Barão de Itararé apoiaram, tinha três pedidos básicos dirigidos aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário: rejeição da PEC 215, pela demarcação das terras e urgência nos julgamentos.
Realizada pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidades indígenas e indigenistas de todo o Brasil, ela teve apoio de personalidades internacionais e nacionais, entre os quais: Antonio Cândido, Noham Chomsky, Eduardo Galeano, Boaventura de Souza Santos, Orlando Villas Boas, Dalmo Dallari, Fábio Konder Comparato, Milton Hatoun, Fernando Morais, Wagner Moura, Kabengele Munanga, Dom Pedro Casaldáliga, Frei Betto, Michel Löwy, Helio Bicudo, Plínio de Arruda Sampaio, Heloísa Fernandes, Paulo Arantes, José Celso Martinez Corrêa, Sérgio de Carvalho e Mc Leonardo.
Ao final o manifesto de apoio agregou mais de vinte mil assinaturas, que foram encaminhadas aos presidentes da República, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional.
Da parte do Judiciário, o que se sabe é que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) realizou um levantamento de todos os processos que envolvem a questão indígena no Brasil inteiro. Ele ainda não foi publicado, mas certamente dará maior transparência à situação das demarcações e apontará o gargalo existente no Judiciário.
Viomundo — Voltando ao que Kátia disse. Qual o risco para as populações indígenas de a PEC 215 ser aprovada?
Kenarik Boujikian – O extermínio, pois as demarcações ficarão inviabilizadas. Afinal, todas as sairão da esfera do Executivo e passarão para o Legislativo, o que sabemos implicará em paralisação absoluta. Não temos a menor dúvida de que a aprovação da PEC 215 acirrará a violência no campo e os conflitos fatalmente serão recrudescidos.
Viomundo — Que tal a afirmação de que “os índios saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção”?
Kenarik Boujikian – Aberração. Absurdo completo. Por má-fé, ela inverte a verdade dos fatos. É como se os índios vivessem apenas em florestas e eles fossem os invasores e não aqueles que desmatam e os expulsaram das suas próprias terras ancestrais.
Viomundo — E de que “latifúndio não existe mais” no Brasil?
Kenarik Boujikian – É totalmente surreal, de outro planeta. A realidade e os números oficiais mostram algo bem diverso. Até onde eu sei, o Brasil tem grandes propriedades, uma boa parte delas está sendo corretamente explorada. Mas temos também terras improdutivas. Evidentemente que, como presidente da CNA, ela sabe disso tudo.
O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) indica que, no período de 2003 a 2010, houve aumento da concentração de terras. Em 2003, eram 112 mil proprietários com 215 milhões de hectares. Em 2010, 130 mil proprietários concentravam 318 milhões de hectares.
O Incra também revela aumento no índice de improdutividade. Ele é maior do que o crescimento das terras produtivas. Além disso, muitas das terras usadas por particulares são públicas, terras devolutas.
O Brasil tem grandes latifúndios e terras improdutivas e a Constituição Federal estabelece que a propriedade é direito fundamental. O povo constituinte qualificou esta propriedade, que deve cumprir a função social, o que significa produtividade adequada, de acordo com o desenvolvimento tecnológico nacional, com respeito ao meio ambiente, à terra, à água, ao ciclo da vida, e sem utilização do trabalho escravo.
Viomundo — O que acha de a Kátia Abreu afirmar que não é necessário acelerar a reforma agrária?
Kenarik Boujikian –Ao contrário do que a ministra afirma, nós estamos atrasados na distribuição da terra, que deve ser qualificada. O Brasil precisa de uma reforma agrária popular, massiva, que tenha o ser humano como fim essencial e os seres humanos como destinação do produto.
E isso é absolutamente viável. Atualmente existem mais de 150 milhões de hectares de terras improdutivas, devidamente cadastradas. E o Estado, nos termos do artigo 184 da Constituição Federal, tem o dever de desapropriar para fins de reforma agrária a propriedade rural, que não esteja cumprindo a sua função.
Recentemente, o papa Francisco alertou para a destruição do planeta. Sublinhou que os alimentos não podem ser tratados como mera mercadoria; que a alimentação é um direito inalienável, razão pela qual “a reforma agrária vai além de uma necessidade política, mas se trata de uma obrigação moral” (“Compêndio da Doutrina Social da Igreja”). Estou com o Papa Francisco.
Viomundo — E quanto Kátia Abreu dizer que o MST faz é invasão e é ilícito?
Kenarik Boujikian– O que ocorre são ocupações, modo de manifestação. Nós temos diversas decisões dos tribunais, que afastam a figura ilícita.
Viomundo — E quanto à ideia de que “temos de apostar tudo na privatização” com alteração da legislação referente às hidrovias?
Kenarik Boujikian – A água é um bem do povo e a ministra já fala em privatizar !!!
Viomundo — Então o que fazer agora?
Kenarik Boujikian– Os povos indígenas resistem bravamente há 515 anos de violência e desrespeito. Os trabalhadores do campo e da cidade também estão na luta para construir um país mais digno, justo e solidário. Não conheço outro caminho, senão continuar a resistência e a luta, mesmo que tenham à frente as poderosas forças econômicas, que, com o seu poder financeiro, elegeram boa parte deste Congresso Nacional.
O primeiro instrumento para construir a democracia é o direito à manifestação, direito de protestar. Assim, diante deste quadro, a tendência é intensificar a luta pela concretização da Constituição Federal, nesta arena.
Mas é absolutamente necessário uma Constituinte Exclusiva para a Reforma do Sistema Político, que tem que partir da premissa que as decisões fundamentais do país não podem estar enfeixadas nas mãos daqueles que têm a força econômica. Inaceitável que as campanhas sejam financiadas por empresa. Urge que as decisões fundamentais e estruturais do país tenham maior intervenção do povo brasileiro.
Em outubro de 2014, o Papa Francisco protagonizou no Vaticano o Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Ele desenvolveu os trabalhos sobre três eixos: terra, trabalho e teto. Disse que era impossível imaginar um futuro sem o protagonismo das grandes maiorias. Acho que o Brasil precisa urgentemente de um novo futuro, com as maiorias.