Egon Dionísio Heck *
Adital –
“Aí os brancos fazendeiros foram chegando e tomando as terras de todo mundo aqui. Fizeram isso de muitos jeitos. Alguns chegaram com os donos dos cartórios que pediam o documento de propriedade da terra. Diziam que era só pra verificar. Aí pediam para colocar o dedo encima dum papel. Dali uns dias já apareciam de novo com os capangas pra botar a família pra foram dizendo que tinham comprado aquela terra…e assim foi acontecendo o roubo das terras do nosso povo”.(Maria Celestina, comunidade quilombola de Canudos, Jaíba-MG – 17 de janeiro de 2010)
Depois de andar por mais de duas semanas pelo território quilombola de vale do Gorutuba, percorrendo a pé quase cem quilômetros, se tem a clara sensação de que pouco e pouco conhecem esse outro Brasil, das negras raízes, da escravidão secular. Na medida em que fomos cortando estradas e veredas da caatinga do norte de Minas Gerais, fomos partilhando saberes, histórias e sofrimentos desse mesmo Brasil, tão diferente, emergente em linha direta da história de escravidão e da busca de libertação na fuga para os distantes e inóspitos espaços, onde podiam reconstruir sua liberdade e suas vidas. Histórias de vida e luta contadas pelos anciões como seu Julião, em Taperinha. Ele completou 91 anos no dia 10 de janeiro. Pudemos partilhar com ele, os familiares e comunidade essa importante data.
Mateus, um aliado da causa quilombola assim narra a origem dos quilombolas do vale do Gorutuba “Os antepassados dessas famílias vieram para cá por volta de 1750. Eles eram fugitivos do trabalho nos canaviais da Bahia e da mineração da região de Diamantina. Aqui era uma região de muita malária. Os brancos e nem os índios conseguiam viver aqui. Mas os negros, como eram resistentes à malária, encontraram aqui um oásis, protegidos pela força dos mosquitos transmissores da malária. Aqui constituíram comunidades de quilombolas que puderam viver em paz até o início do século vinte. Por volta de 1920 chegou a essa região a construção da estrada de ferro. Com ela chegaram para cá várias companhias. Passaram desmatar e afastar o mosquito da malária. Assim que desmatavam já iam repartindo e se apossando das terras. Desta forma iniciou a invasão e tomada das terras dos quilombolas dessa região.
O território quilombola do Vale do Gorutuba
A partir da Constituição de 1988 os remanescentes de quilombolas tiveram reconhecidos o direito a seus territórios. De lá pra cá mais de 3 mil comunidades quilombolas estão lutando pelo reconhecimento de seus territórios. Destes apenas 1.209 são reconhecidos e 105 tem título de posse. Em Minas Gerais são 454 comunidades quilombolas reconhecidos. Porém apenas uma tem seu território legalizado. E este está alagado por uma represa. Outros, como o Brejo dos Crioulos, também no norte de Minas está com o processo concluído, restando apenas o governo pagar a indenização dos fazendeiros e devolver oficialmente a terra aos quilombolas. São 17.309 hectares.
A regularização do território dos quilombolas do Vale do Gorutuba também está bastante adiantado. São 47 mil hectares, já identificados com relatório publicado no Diário Oficial da União. Os fazendeiros já foram notificados. Agora é pressionar o INCRA para que pague os fazendeiros e entregue a terras a 30 comunidades de quilombolas que estão organizados na Associação das Comunidades Quilombolas do Valo do Gorutuba. Eles tem sua sede na comunidade de Taperinha. Estão num crescente processo de organização, união e luta pelos seus direitos.
Quilombolas e índios – nativos na luta
Dona Fermina, numa das conversas que tivemos na caminhada, falou “minha avó foi pega no laço”. Expressão bastante comum quando se quer referir à descendência indígena. A partir daí não foi difícil uma boa prosa sobre a luta dos povos indígenas e as semelhanças com a luta pela terra. Uma das questões que de imediato fica evidenciado são as semelhantes dos dois processos de luta pela recuperação das terras. Apesar de existir muita desinformação recíproca entre índios e quilombolas, ou até preconceitos engendrados pelas elites responsáveis pela expropriação das terras e escravizadores e dominadores dessas populações, facilmente se entende que é chegada a hora de não apenas conhecer-se para unificar a luta, mas de escrever juntos a nova história na construção desse novo projeto para o país, onde negros e índios, terão muito a contribuir.
Além da luta pela terra o que unifica comunidades indígenas e quilombolas hoje é sua forma diferenciada de pensar e organizar a vida e a produção. Na cidade de Pai Pedro, donde iniciamos a caminhada, dona Ana nos preveniu “Ih! Vocês vão encontrar muita miséria. É gente dependente e acomodada nas ajudas do governo. Gente sem aspiração. Parecem uma tribo” Referia-se ela às comunidades quilombolas. Efetivamente parecem ainda pouco contaminadas pela ideologia da acumulação e consumismo, pelo processo de produção capitalista. Ainda preservam bastante a organização social baseada no parentesco da família extensa.
Segundo Antonio, sábio ancião do grupo e conhecedor da questão indígena, estes povos são os únicos que tem um projeto de futuro. Porém se encontram sob forte impacto do modelo neoliberal, o que tem por sua vez gerado intensa mobilização dos povos indígenas em todo o continente, especialmente na América Latina.
A caminhada e os caminhantes
Já há mais de uma década um grupo de pessoas, de diversas regiões do país, se junta, de forma bastante espontânea, para realizar uma caminhada de 20 dias em alguma região do país ou da América do Sul. “São caminhantes motivados e com objetivos. Abrangem diversas dimensões da pessoa e da natureza. São momentos carregados de profunda reflexão, mística, encontro pessoal, com o grupo e com as comunidades por onde passam. É um momento de troca de saberes e conhecimentos. É a busca de reconciliação com a natureza, consigo mesmo e partilha com os demais. No caminho acontece o encontro, a conexão com a terra, a busca do espírito nativo, a troca de energias e sabedoria. É tempo de enfrentar e superar ansiedades e medos. É tempo de silencio, de escuta, de sentir e falar. Tudo no tempo da natureza. Dormir na mata, acordar com o canto dos pássaros, andar na lama ou poeira na chuva ou sol quente, de dia ou de noite. Na mochila apenas o necessário. Que muitas vezes aponta os limites do caminhante. Tem que se garantir a comida e a dormida, a barraca, a rede, saco de dormir, água e a roupa. Isso na caminhada de uns cem quilômetros acaba pesando. Porém a satisfação, a gratuidade, a entre-ajuda, a união e a partilha acabam fazendo da caminhada um marco profundo de solidariedade, harmonização, sintonia, energia , mística e compromisso com a vida, a natureza, a terra, o cosmos.
São destaques no caminho as falas sabias de Antonio (Conselheiro) de Alencar. E mais do que as falas são seus gestos e jeitos que transmitem segurança e tranqüilidade e harmonia no grupo, mesmo quando as energias sofrem abalos. O mais importante desses vinte dias de caminhada e interação com a natureza e as comunidades por onde passamos, é sentir em cada um o pulsar de cada um, nos caminhos desse outro mesmo Brasil.
“Vamos ir a pé, vamos irmãos!”. A caminhada continua. Para os participantes na avaliação em Porteirinha, ela superou as expectativas. Já foram definidas as próximas – nordeste, depois duas na Amazônia, com povos indígenas e ribeirinhos e depois na Bolívia e Peru.
Cimi MS
Araguaina, 22 de janeiro de 2009
* Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul