A histórica Marcha das Mulheres Negras pautou demandas para os próximos vinte anos e mostrou que é preciso um novo pacto civilizatório. São as Dandaras de hoje
Por Maria Carolina Trevisan | Foto: Vinícius Carvalho / Vídeos: Mídia Ninja – Outras Palavras
A Marcha das Mulheres Negras avançava lentamente em direção ao Congresso Nacional, levando cerca de 15 mil pessoas pelas avenidas de Brasília (DF). Na linha de frente, em respeito à ancestralidade que ancora as religiões de matriz africana, estavam as mulheres mais velhas, abrindo os caminhos sob a proteção dos orixás. Vestiam seus trajes sagrados. Ao apontar na beira do gramado da Esplanada dos Ministérios, as senhoras entoaram em coro o “Canto das três raças”, canção eternizada na voz de Clara Nunes. Foi um dos momentos mais emocionantes do ato. A música lembra que o povo desta terra ainda “canta de dor”.
As senhoras negras precisaram ultrapassar o acampamento dos manifestantes a favor da intervenção militar para chegar diante da Câmara dos Deputados. O choque de ideologias gerou confusão. Um dos acampados (depois se soube que é um policial civil que já havia sido preso com munição letal há algumas semanas) deu tiros no meio da multidão e dos três caminhões de som. Justificou-se dizendo ter se sentido ameaçado pelas mulheres negras que marchavam por direitos.
A ação — triste e também reveladora — foi simbólica da violência a que esse grupo social é submetido diariamente. Em nenhuma manifestação de rua, desde 2013, um participante sacou uma arma no meio do ato. Mas contra a marcha de mulheres negras, sim. É como se os corpos negros continuassem, seguidamente, a não ter valor algum. “Nós decidimos que vamos viver. Vamos fazer isso tendo condições de decidir no poder. Não vamos delegar nossa representação a ninguém”, afirma a socióloga Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia. “Essa é a grande virada que a Marcha das Mulheres Negras faz.”
A atitude da Polícia Militar do DF — muito mais de controlar o cortejo do que de proteger quem estava ali, oposta ao festival de selfies nos protestos da direita — demonstra também a violência de Estado a que estão sujeitas as personagens brasileiras com mais história de resistência e de luta do país. É o racismo explícito e que mata. “O racismo no Brasil insiste em cobrar em vida”, afirma a advogada Ana Luiza Flauzina, doutora em Direito e pós doutora pelo Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas. “Aquele momento é muito simbólico para compreendermos o que é a vida das mulheres negras neste país. É uma vida completamente desprotegida, que pode ser assaltada até no momento em que esse sujeito político está, de alguma forma, empoderado, gritando suas reivindicações na Esplanada dos Ministérios”, completa Flauzina.
O som dos estampidos ecoa noite e dia, ensurdecedor
Por instantes, a agressão fez do canto de alegria “um soluçar de dor”. Acontece que não existe História do Brasil sem considerar a participação das mulheres negras. Sua força é muito maior do que a crueza do racismo brasileiro. Como a de Dandara, guerreira do Quilombo dos Palmares que resistiu à escravidão. Naquele momento, as mulheres que marchavam cuidaram umas das outras e quando se certificaram de que estavam todas bem, seguiram adiante. Com a mesma dignidade com que enfrentam o dia a dia. “Certamente nós carregamos sobre os nossos corpos um conjunto de contradições e determinações que se superadas são pré-requisitos para fazer deste país uma verdadeira democracia racial, com igualdade e justiça social”, afirma a filósofa e doutora em Educação Sueli Carneiro, fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra de São Paulo e importante liderança do movimento negro.
“Ser mulher negra é estar localizada estrategicamente nesse lugar de onde se tem que compreender todos o processos de exclusão, desigualdade e marginalização social. Mas é também o lugar em que pode estar a condição de libertação de todos e de todas nós”, diz Sueli Carneiro.
Contra o racismo, a violência e pelo Bem Viver
Desde 2008, as mulheres negras são maioria no Brasil: correspondem a 50% do total de brasileiras. Em 2009, segundo o “Dossiê Mulheres Negras”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), já havia cerca de 600 mil negras a mais que brancas. Representam 25,5% do total de pessoas no país. A população negra (pretos e pardos) é composta por quase 104 milhões de pessoas, cerca de 51% da população total do Brasil. Portanto, a Marcha das Mulheres Negras não se refere a reivindicar políticas para uma minoria. Trata da maioria da população brasileira. Esse é o ponto de partida.
“É a primeira vez que mulheres negras ousam ir às ruas para apresentar um novo pacto civilizatório para o povo brasileiro e não apenas para as mulheres negras”, explica Valdecir Nascimento, do Odara — Instituto da Mulher Negra, de Salvador (BA). “Se for bom para as mulheres negras será bom para todo o povo brasileiro”, completa. Uma das demandas específicas da marcha diz respeito à situação de violência que esse grupo social vem sofrendo. A violência letal contra mulheres no Brasil tem taxa muito elevada. Segundo o Mapa da Violência 2015, são 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, índice 48 vezes maior do que no Reino Unido.
As vítimas de homicídio feminino são predominantemente negras. Foram quase 2.875 mulheres negras assassinadas em 2013. O estudo também mostrou que enquanto a violência letal contra mulheres brancas vem diminuindo, entre 2003 e 2013, houve 54% de aumento no número de homicídios contra mulheres negras. Significa que ser mulher e ser negra, nessa sobreposição que se junta à opressão de classe, é o lugar mais vulnerável da sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo, são elas que abrigam as maiores fortalezas da nossa estrutura. “Nós estamos nos piores extratos sociais, com menor nível de salário, com menor acesso à educação e à saúde, com menor mobilidade social”, alerta a psicóloga Maria Lucia Silva, do Instituto Amma — Psique e Negritude, de São Paulo. “Nós, mulheres negras, fomos o esteio e a construção deste país. Queremos ocupar um lugar de poder, de mobilidade e de acesso para que a gente possa dizer como a gente pensa o Brasil democrático e efetivamente bom para brancos, negros, indígenas, para todos os grupos sociais.
Depois da caminhada até o Congresso Nacional, um grupo de representantes formado majoritariamente pelas senhoras da Irmandade da Boa Morte (as anciãs, em respeito à ancestralidade) puderam se encontrar com a presidenta Dilma Rousseff. Ela recebeu a “Carta das Mulheres Negras: o Bem Viver como nova utopia”, documento que detalha as proposições do movimento de mulheres negras e demarca as prioridades para os próximos 20 anos. O conceito de “Bem Viver”, no qual se baseia a Marcha, é uma construção conjunta com mulheres indígenas da América Latina e se caracteriza pela luta coletiva que prioriza a complementaridade, em que todos têm direitos. “Marchamos pelo direito de estar no mundo sem violência e sem racismo. Nós marchamos pela vida e não pela sobrevivência”, explica a enfermeira, blogueira e militante Emanuelle Góes, no texto “Dialogando sobre o Bem Viver e as Mulheres Negras”.
Ponto de inflexão
Há 20 anos, a primeira Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida reuniu 30 mil pessoas em Brasília. Naquele momento, o movimento negro denunciava a ausência de políticas públicas para a população negra. Marcou também os 300 anos do assassinato de Zumbi, principal liderança do Quilombo dos Palmares, um território de resistência na capitania de Pernambuco (que se tornaria Alagoas), durante o regime escravista.
A primeira marcha rompeu com o mito da democracia racial e evidenciou as graves desigualdades a que essa parcela da população estava submetida. Pela primeira vez, o Brasil reconheceu seu racismo. Dez anos depois, a Marcha Zumbi + 10 voltou a juntar milhares de pessoas na capital do país. Começaram aí as primeiras ações afirmativas, que culminaram nas cotas para ensino superior e no Estatuto da Igualdade Racial, entre outras conquistas.
Agora, a Marcha das Mulheres Negras, que começou a ser articulada há três anos, pretende dar um passo firme, ser um ponto de inflexão nas conquistas de direitos para a população negra no Brasil. “Essa marcha não tem uma pauta conjuntural. É para falar de uma situação histórica no Brasil, que apesar dos avanços que a gente possa perceber no nível socioeconômico de exclusão social, as mulheres negras continuam na base da pirâmide”, explica Tricia Calmon, socióloga e militante do movimento negro na Bahia.
Para Vilma Reis, a Marcha organizou a pauta para os próximos 20 anos. “O objetivo é termos mulheres negras dirigindo as empresas públicas e de capital misto, que são as maiores do Brasil, com equilíbrio na representação política, nas artes e produção de conteúdos de comunicação, e, definitivamente, dando fim ao genocídio”, explica Reis.
Significa que a Marcha das Mulheres Negras amplia uma concepção de reivindicações isoladas para um conjunto de condições que seriam necessárias na sociedade brasileira, não apenas para um processo de inclusão das mulheres negras, mas da população negra em geral e dos outros grupos que compõem a sociedade brasileira. São demandas mais complexas. “Não se trata de trabalhar especificamente determinados pontos ou determinadas áreas que são desvantajosas para as mulheres negras, mas uma concepção de que a situação da mulher negra só se modifica na medida em que a sociedade brasileira se modifica também”, explica Luiza Bairros, doutora em Sociologia e ex-ministra chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), entre 2011 e 2014. “O racismo não está mais protegido pela ideia da existência de uma democracia racial. Portanto, fica agora muito mais evidente que a questão negra não é uma questão específica. Precisa ser tratada no âmbito das grandes questões nacionais. Chegamos num determinado limite em termos das conquistas para a população negra no Brasil”, diz Bairros.
O recado da Marcha das Mulheres Negras está dado: para que o país avance, a presença negra nos espaços de tomada de decisão é fundamental. “A ocupação do poder político institucional, eu vejo como sendo a parte central da nossa estratégia daqui para frente. Ou você faz com que essas concepções que o movimento negro construiu ao longo do tempo cheguem nas instituições através das pessoas que têm efetivamente esse tipo de interpretação e análise da sociedade brasileira, ou então você não vai muito mais adiante. Não tem mais como pensar o país desconsiderando a população negra, que é a maioria da população. Você não estaria fazendo nada, não estaria pensando nada”, afirma Bairros.
Salve a força negra do Brasil.