Suponhamos que uma imensa barragem de lama estourasse no interior do Brasil, arrastando pessoas, animais e árvores por onde passasse, deixando um rastro de destruição e inviabilizando o consumo humano de água. É claro que isso nunca aconteceria em um país que diz tanto se preocupar com o meio ambiente e canta para os quatro cantos do mundo que tem as empresas mais ambientalmente responsáveis. Mas suponhamos que isso aconteça.
Com certeza a presidente da República sobrevoaria imediatamente o local atingido – até porque esperar uma semana seria coisa de quem não está nem aí para nada. Mas estaria tranquila, porque o poder público contaria com um plano decente de desastres dessa natureza. E, sabendo que respostas pontuais não levam a lugar algum, governantes e parlamentares saberiam aproveitar o momento de comoção pública para reabrir a discussão sobre a regulamentação da mineração no Brasil com a efetiva participação das comunidades atingidas e foco na responsabilidade empresarial e no direito ao território e à dignidade humana. E as empresas envolvidas já estariam pagando até a tosa e banho dos cachorros das famílias atingidas.
Certamente representantes do governo federal repudiariam fortemente o ocorrido, demandariam a rápida investigação sobre as causas do atentado e a devolução do território aos indígenas – até porque a ditadura militar e o discurso dos grandes “desertos verdes”, que justificaram genocídios pelo interior do país, não mais existem. Esse país não teria um Congresso Nacional que quer mudar a Constituição para dar a palavra final em demarcações de territórios indígenas pois deseja bloqueá-las. Afinal de contas, o desejo do crescimento a qualquer preço ficou nos Anos de Chumbo.
Portanto, se por uma dessas impossibilidades estatísticas, fosse descoberto que a incompetência do próprio Estado brasileiro em devolver terras ocupadas ilegalmente pela agropecuária fosse a principal causa, não tenho dúvidas de que o governo indenizaria os índios com o dobro do valor que foi emprestado pelos bancos públicos a essas fazendas para o desenvolvimento agropecuário.
Da mesma forma, se funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego, durante uma fiscalização de rotina, fossem emboscados e chacinados, os envolvidos seriam descobertos e julgados imediatamente. Nunca demoraria 11 anos para o julgamento porque isso é coisa de lugar onde grassa a barbárie. E a Assembleia Legislativa do Estado onde isso ocorreu nunca condecoraria os réus pelo crime com uma de suas mais altas comendas. Pelo contrário, repudiaria fortemente o ocorrido e os condenaria ao esquecimento.
Outro ponto: como sabemos, ricos e pobres vão para a cadeia pelo mesmo tempo e nas mesmas condições quando cometem os mesmos crimes. Nunca uma pessoa que assaltou uma casa teria uma pena desproporcionalmente grande em comparação a um ex-diretor de um grande veículo de comunicação que matou a namorada, por exemplo. Afinal, no Brasil, a Justiça é cega.
E também sábia e justa. Nunca a Justiça mandaria uma pessoa para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador. Afinal os custos para o sistema público seriam enormes e isso seria enviar a pessoa a uma escola de crime por algo que talvez se resolvesse com um emprego. E se, uma vez presa, essa pessoa perdesse um olho envolvida em uma briga, seria imediatamente solta porque o Estado reconheceria que não teria sido capaz de garantir a integridade de alguém sob seus cuidados.
A Justiça brasileira também não mandaria ninguém para a prisão por roubar dois pacotes de biscoito e um queijo minas a fim de saciar a fome. Que covil de lobos seria nossa sociedade se isso acontecesse?
Ou ainda, se uma pessoa roubasse coxinhas, pães de queijo e um creme de cabelo em um supermercado de uma grande rede e seguranças da empresa terceirizada espancassem essa pessoa até a morte, no mínimo, a rede seria responsabilizada pela contratação dos jagunços.
Até porque se um desembargador espancasse um homem inocente, ao confundi-lo com um assaltante, seria condenado e preso por aqui.
E quando uma mulher condenada a dois anos de prisão por roubar uma caixa de chicletes pedisse revisão da pena ao Supremo Tribunal Federal, a corte certamente lhe daria um habeas corpus. Se a corte garante isso a empresários envolvidos em crimes muito piores que envolvem milhões sob a justificativa do direito à dignidade, por que não daria para alguém que roubou algo mais barato que a conta da lavagem da toga do magistrado?
Ainda bem que o Brasil é justo pra burro. Durmam tranquilos.
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Destaque: Isto não é um mar de lama (René Magritte, 2015).