Regência é um lugar especial para o fotógrafo Leonardo Merçon, de 34 anos. Desde a adolescência, a vila na foz do rio Doce, norte do Espírito Santo, era parada obrigatória para a prática de surfe.
Ali ele conheceu uma comunidade de 300 famílias, entre pescadores, caboclos e descendentes de índios, com uma característica marcante: a preocupação em conservar a natureza.
“É uma população organizada, acostumada a brigar pelo local, que é um santuário ecológico mesmo. Muitos escolheram viver ali”, diz Leonardo.
No último final de semana, naquele mesmo local, o fotógrafo acompanhou o momento em que o povoado se tornou vítima do maior acidente ambiental da história do Brasil.
Um dos trechos mais preservados do rio Doce foi tomado pela lama de duas barragens da Samarco (Vale e BHP Billiton), rompidas no último 5 em Mariana (MG). Cerca de 25 mil piscinas olímpicas de rejeitos de mineração se deslocaram – e ainda percorrem – mais de 600 km até a costa capixaba.
“A água verde do rio se misturou com a lama até tudo ficar marrom. Os moradores estavam chocados, tentando ajudar de alguma forma”, conta Leonardo, sobre o momento em que a mancha se espalhou por 10 km de praias na foz do rio.
Expedição de emergência
O testemunho em Regência foi a última escala da segunda expedição de Leonardo pelo rio Doce desde o desastre de Mariana.
Acompanhado por dois colegas do Instituto Últimos Refúgios, organização ambiental sem fins lucrativos que fundou em 2011, o fotógrafo acompanhou as consequências da tragédia por diferentes cidades: Governador Valadares, Resplendor, Conselheiro Pena, Aimorés, Baixo Guandu.
Em Governador Valadares (MG), a maior cidade da região, sem água por uma semana em razão do desastre, veio a consciência do tamanho do problema.
“Ali tomamos um susto e vimos que era muito mais feio do que imaginávamos. Começamos a ver milhares de peixes mortos, camarões, caramujos que saíam da água para morrer queimados em pedras quentes, só para não ficar na água. Vimos peixes de 10 kg mortos e moradores desavisados recolhendo tudo para consumo”, relata.
Após essa primeira viagem de três dias – “assustadora”, na definição de Leonardo – os recursos terminaram e o grupo voltou a Vitória. Mas logo conseguiu doações para pegar a estrada novamente, desta vez para registrar o impacto do deslocamento da lama até a foz do rio.
Para o fotógrafo, foi possível perceber que a lama está descendo o rio em blocos. “Em cada lugar a lama assume uma aparência diferente, o que talvez explique a diferença nas análises de qualidade da água”.
Na semana posterior à tragédia, por exemplo, a Prefeitura de Baixo Guandu (ES) apresentou análise da água do rio Doce que apontava concentração elevada de metais pesados, como mercúrio, arsênio e chumbo. Dias depois, outro exame da lama do rio em Valadares apontou metais em limites toleráveis.
Alerta
Independentemente da discussão ainda em aberto sobre a qualidade da água do rio, os danos à natureza, segundo Leonardo, são gigantescos. “As pessoas não têm noção. É mais grave do que possam imaginar.”
O impacto, diz o fotógrafo, não se restringe a ambientes aquáticos. “Jacarés, capivaras, lontras, mas também bois, cachorros, aves migratórias – todos foram afetados.”
Para ele, o mais triste e chocante da passagem pelo rio foi acompanhar o relato de pessoas que tiveram a vida revirada pelo desastre. Em Aimorés, Minas Gerais, sua equipe registrou o choro de um pescador diante da paisagem marrom.
O homem, chamado Benilde, chorava ao recolher peixes mortos no rio, sustento da família. Dizia fazer aquilo para ter provas do “crime” em curso.
“Quando o encontramos estávamos fotografando peixes e camarões morrendo em Aimorés. Ele apareceu remando com seu barquinho de madeira, recolhendo lentamente peixes mortos, como em luto. Ele disse que estava recolhendo os peixes porque achava que ninguém acreditaria nele se contasse que todos os peixes do rio estavam morrendo. E chorou ao contar o que estava acontecendo e o que o rio significava pra ele”, conta o fotógrafo.
“Meu filho me perguntou quando iria ter a chance de pescar um dourado, e não tive coragem de responder”, disse ainda o pescador, segundo o relato de Leonardo.
“Ninguém nunca viveu isso”, diz o fotógrafo. “A vida no rio Doce foi toda morta.”
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Imagem destacada: Marreco-pé-vermelho morto no rio Doce após a passagem da lama; equipe havia passado pelo mesmo local antes da chegada dos resíduos e observado aves vivas / Fotos: Instituto Ultimos Refugios