Polícias Militares, força fora de controle?

Estudioso da Segurança Pública brasileira constata: PMs já desrespeitam até governos estaduais — por isso, seria trágico dar-lhes poder de investigação. Saída está em rever por completo a formação

Rafael Alcadipani, entrevistado por André Caramante, na Ponte | Ilustração Junião – Outras Palavras

Policiais militares do Estado de São Paulo mataram 11.358 pessoas nos últimos 20 anos, segundo dados do Centro de Inteligência da Polícia Militar paulista obtidos pela Ponte Jornalismo. O número é maior que o cometido de todas as polícias do EUA, no mesmo período. Também nesses 20 anos, 1.248 policiais militares foram mortos no estado.

Todas as 12.606 mortes (11.358 civis e 1.248 militares) incluem os crimes cometidos durante o período de trabalho e também na folga dos militares, assim como também nos casos nos quais os PMs são as vítimas.  Os números referem-se ao intervalo de  julho de 1995, quando o governo paulista começou a tabular dados sobre a letalidade policial, e agosto de 2015.

Com uma população 7,5 vezes menor do que os Estados Unidos, onde cerca de 319 milhões de habitantes são atendidos por aproximadamente 17 mil agências policiais, o Estado de São Paulo (43 milhões de moradores) tem uma polícia 53% mais violenta do que todas as norte-americanas reunidas.

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De acordo com Rafael Alcadipani, professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e Visiting Scholar no Boston College, EUA, “muita gente é executada deliberadamente” pelos policiais militares de São Paulo.

Leia a entrevista com o especialista em segurança pública:

Dados do Centro de Inteligência da PM de SP revelam que, entre julho de 1995 e agosto deste ano, PMs mataram 11.358 pessoas no Estado de SP. Por que os PMs matam tanto em SP? O total de mortos por PMs inclui mortes em serviço e na folga.

Rafael Alcadipani: Há inúmeros fatores a serem considerados e precisamos diferenciar estas mortes, primeiro entre em serviço e fora de serviço. As mortes causadas por policiais fora de serviço podem estar relacionadas ao “bico” [serviço extra-corporação]. A remuneração do policial é muito baixa e quase todos trabalham fora da polícia, muitas vezes em segurança privada. Aí, se envolvem em ocorrências e, como estão no bico, estão em inferioridade numérica. Há casos de policiais que se envolvem com o crime e matam pelo crime. Também tem os policiais que interferem em ocorrências policiais, sem chamar apoio e tudo mais. Muitas vezes, o policial percebe que será executado se for descoberto como policial e atua antes que isso aconteça. Em serviço, há dois tipos de mortes: as resistências legítimas e as ilegítimas. Há casos em que o policial para proteger a si e aos outros, tem que “neutralizar” o criminoso. Há, ainda, casos em que os policiais matam por pura maldade ou por não acreditarem que a Justiça irá resolver o problema da criminalidade. É um universo amplo, complexo e é urgente termos mais pesquisas para entender o que de fato acontece. Mas, sem a menor dúvida, há muita gente que é deliberadamente executada pela PM. 

Também entre julho de 1995 e agosto deste ano, 1.248 PMs foram assassinados, estivessem no trabalho ou na folga. Como isso pode ser analisado dentro da questão da segurança pública?

Rafael Alcadipani: Muitos policiais que estão fazendo bico e estão desguarnecidos, sem apoio. Envolvem-se em ocorrências que geram confronto e acabam matando. Há, ainda, os casos de policiais que são mortos devido ao seu envolvimento com o crime. A situação do policial da ponta é bastante frágil no Brasil. Ele está muito próximo ao crime e também muito fragilizado pelas más condições de trabalho. 

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Hoje, o Brasil discute a possível implantação do chamado “ciclo completo” da PM. De que forma a letalidade da PM pode ser afetada caso os militares passem também a exercer funções de Polícia Judiciária?

Rafael Alcadipani: O ciclo completo é uma boa ideia que pode se transformar em um grande desastre. Uma polícia com quase 100 mil homens não pode ter ciclo completo pelo simples fato de que ninguém vai controlar o que ela vai fazer. Hoje, os diferentes governos têm muita dificuldade em comandar de fato as PMs. Veja o que aconteceu no Distrito Federal recentemente. A PM teve uma ação muito truculenta contra os professores e o secretário não foi informado. Pediu para trocar o comandante da PM e, no final, ele teve que sair. Não se pode dar o ciclo completo para uma polícia que não é controlada por ninguém efetivamente. A PM mata muito porque todo mundo fecha os olhos para esta matança.

Para o comando, parece que está tudo bem. A Folha de S.Paulo fez uma pesquisa em que mostrou que cerca de 60% das pessoas não confiam na PM. Ao invés da PM querer entender, o comandante-geral fez uma nota criticando a Folha e a pesquisa. Na verdade, a PM só quer pessoas que digam que ela é o máximo, ela não quer ser questionada. O comando da PM precisa entender que a PM é da sociedade, não do comando. Tem muita gente séria e extremamente competente na PM. Muita mesmo. Tem muita gente querendo acertar, querendo melhorar a polícia. Mas a cultura da PM impede que as pessoas pensem lá dentro com independência. É urgente, totalmente urgente, que a PM saia da sua posição de distanciamento da sociedade e venha abraçar a sua sociedade, a respeitá-la e a escutá-la.

A bem da verdade, todo mundo tem medo da PM e uma polícia em que as pessoas não confiam e todo mundo tem medo não pode ter ciclo completo. Muita gente debate o ciclo completo pela visão do mundo ideal, mas há um mundo concreto, onde o pobre da periferia está sendo morto. Se você for em muitas festas de bacanas vai encontrar drogas e sexo. Mas a PM vai lá? Temos uma sociedade injusta com uma PM violenta contra os pobres. Esta PM não pode ter ciclo completo sob a pena de piorar muito a situação das pessoas no dia-a-dia. E pioraria por que? Porque ao saber que o policial vai apresentar a ocorrência para um delegado, ele tem o mínimo de pudor do que apresentar. Ao apresentar para um membro da própria PM, eles poderão montar a versão que eles quiserem dos fatos.

Muitas das mortes cometidas por PMs são justificadas por integrantes do comando da corporação como resultado de uma guerra contra criminosos. Essa lógica de guerra pode ser aplicada na análise da letalidade da PM de SP? Entre janeiro e agosto de 2015, PMs mataram 568 pessoas em SP. São, em média, 2,36 pessoas mortas ao dia — cinco a cada dois dias. No mesmo período, foram mortos 38 PMs — 0,15 ao dia ou um PM morto a cada seis dias. 

Rafael Alcadipani: As polícias do Brasil matam muito, assim como os policiais também morrem muito, isso é um fato. É o sintoma de um modelo de segurança pública que não dá certo no momento.  Ele não é bom para a sociedade e não é bom para a maioria dos policiais. Por isso, mudanças são necessárias e uma delas é diminuir o poder das PMs na segurança pública, não aumentar. Guardas Municipais e a Polícia Civil precisam ter mais investimento e precisam ser melhoradas. No mundo ideal, acredito que deveríamos ter uma única polícia, mas dividida por territórios. Por exemplo, uma polícia em Jundiaí, uma em Campinas [cidades no interior de SP] e assim por diante, com uma corregedoria única e estadual para todas as polícias. Hoje, as PMs dominam o cenário e atendem muito mal o cidadão, principalmente os que mais precisam. A viatura até chega rapidamente, mas depois a coisa pode piorar e muito.

O policial deve atuar, na maioria dos casos, um mediador de conflitos. Casos em que realmente precisa haver confronto são muito menores. É urgente mudar o paradigma de como as polícias operam no Brasil.

Como o Estado de São Paulo pode tentar diminuir a letalidade dos PMs e também evitar que os militares sejam mortos?

Rafael Alcadipani: Eles [o Comando da PM] deveriam retirar por seis meses o policial que se envolve em confronto com resultado morte. O policial deveria ter que ir a um programa todos os dias. O [Mário] Covas [governador de SP] fez isso e foi quando a polícia foi menos letal. É urgente melhorar os salários e as condições de trabalho dos policiais. O policial morre porque ganha pouco e precisa fazer bico. São Paulo paga muito mal aos seus policiais. 

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