Por Maurício Angelo, em Ministério da Verdade
Quando se é criança, não há muitas certezas com as quais se pode contar. A única certeza que eu tinha na minha época de menino no norte do Espírito Santo era de que sempre teria o mar. Ficava ali, por horas e horas, brincando na areia ou dentro da água, desviando das ondas constantes do mar aberto de Guriri, cidade de São Mateus, divisa com Linhares e a praia de Regência, pertinho do sul da Bahia. A única certeza é que aquilo sempre estaria ali. Algo com o que contar. Um refúgio. Um santuário. Um pouco de paz de espírito.
Na adolescência, já morando em Belo Horizonte, pegava as 12 horas de ônibus que separam a capital mineira de São Mateus, passando por boa parte do curso do Rio Doce, incluindo Governador Valadares, uma das cidades mais quentes de Minas Gerais e de relação umbilical com o rio, que seguia seu trajeto até Linhares.
Litoral rústico, de águas mornas, reduto de turistas locais, com muitas praias pouco visitadas, como Urussuquara e Barra Nova e também das mais famosas, como a própria Guriri e Itaúnas, sobretudo no verão. O Rio Doce, imponente, fundamental em todos os sentidos para a região, incluindo Colatina, onde passa, vizinha da minha terra natal, São Gabriel da Palha. Jamais aquela paisagem iria se modificar, pensava. Tratava o mar como cúmplice de minhas confidências mais íntimas. E ele sempre me retribuiu bem.
Pois estamos em novembro de 2015 e tudo virou lama. Lama espessa, de rejeitos, tóxica da origem e que foi arrastando todas as impurezas que encontrou pelo caminho por mais de 600 quilômetros até desembocar no mar, em Regência. Mas o mar não morre sozinho. O mar morre assassinado coletivamente pela ganância do homem, pela sanha autoritária do capital, protegida pela estupidez canalha e seletivista. Somos todos culpados: o que enxergamos não chega até nós por acaso, mas são conduzidos pelas nossas escolhas e omissões. O debate que optamos por não participar, a briga que não queremos comprar, a aparência que precisamos manter, as indisposições que fazemos questão de evitar, o nosso mundinho que buscamos preservar, o ego que não podemos ferir, o rabo preso que nunca admitimos. Somos todos covardes. Escolhemos qual buraco podemos cheirar não de acordo com as convicções, mas com o interesse.
O que Rubem Braga, capixaba, maior cronista da história desse país e notório amante da natureza, por mais brega que a expressão se revele, sentiria neste momento? Penso nisso com a admiração de menino que cresceu lendo suas crônicas, aprendendo com sua concisão e sensibilidade, sua capacidade quase incomparável de contar histórias. O que você faria, caro Rubem, companheiro de todas as horas, se transformassem o seu mar em lama tóxica? Como jornalista e cronista de primeira grandeza, jamais cínico, figura tão rara hoje em dia, é difícil prever. Nós nunca mais teremos o mar, Rubem. Não do nosso jeito. Do nosso e de tantas pessoas queridas.
Somos um país embrutecido pela cretinice institucional. Reféns voluntários de um sequestro anunciado. Gostamos de preparar um banquete para o nosso algoz. E que banquete generoso: 248 bilhões de reais em lucro apenas da Vale nos últimos 10 anos. R$ 869 bilhões em ativos totais da BHP, Vale e Samarco somadas. Ativos são, basicamente, todos os bens da empresa. O mar é deles. Os rios, as montanhas, a mata, as cidades, a produção ininterrupta de minério de ferro e outros materiais que são conduzidos por dutos de centenas e centenas de quilômetros por água potável, todos os dias, 24 horas. E eles continuam produzindo.
Como lembra Marshall Berman: “nossas vidas são controladas por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”, em vez de subverter esta sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento. Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o redesenvolvimento e a renovação; Dizer que nossa sociedade está caindo aos pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma.”
Quer ir para a praia, mas praia não há mais, diria Drummond. Quer tomar banho no rio, mas o rio cimentou. O dia não veio. Não veio a utopia. E tudo acabou. E todos fugiram. E tudo apodreceu. Sua incoerência. Seu ódio. E agora? Quer morrer no mar, mas o mar virou lama.
E agora você?