Dos brasileiros com medo de violência policial, maioria são jovens, pretos autodeclarados e moram na região Nordeste
Lilia Moritz Schwarcz – Nexo
Uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública acaba de concluir mais do mesmo: 62% dos moradores das cidades nacionais com mais de 100 mil habitantes têm medo de sofrer agressão da polícia. Foram entrevistadas, no último mês de setembro, 1307 pessoas distribuídas por todas as regiões do país, cujas respostas parecem ter atualizado uma representação consagrada nos anos 1970, nas notas da canção de Chico Buarque: o famoso “chame o ladrão”.
Mas vale à pena dar cara e cor aos números. Dentre aqueles que afirmam ter medo da PM, a maioria são jovens, pretos autodeclarados e moram na região Nordeste. A não ser que acreditemos em Cegonha desgovernada ou presente de Papai Noel com remetente equivocado é sempre bom levar a sério a imaginação da população.
Em 2009, o Brasil registrou mais de 191 milhões de habitantes, um aumento de 26% se comparado à população em 1995. Dentre as novidades do censo, uma delas chamava particular atenção: o aumento proporcional da população negra (preta e parda) no país. Em 1995, 44,9% dos brasileiros declaravam-se negros; em 2009 este percentual subiu para 51,1%, enquanto a população de brancos caiu de 54,5% para 48,2%.
Esta elevação não decorre, porém, do aumento da taxa de fecundidade da população negra, mas antes de mudanças comportamentais e na forma como essas pessoas têm se autodeclarado. Ou seja, desde que no final dos anos 1970 assistimos à emergência de uma agenda de direitos civis – pautada no direito à diferença na igualdade – brasileiros tem mudado seus critérios de autodefinição.
Se tal fato permite prever uma maior flexibilidade nos padrões de classificação, já outros resultados sinalizam para uma persistente e incômoda exclusão racial. Segundo o relatório do Ipea, a despeito do aumento geral da expectativa de vida, os indicadores que cobrem o período de 1993 a 2007 mostram como a população branca vive mais que a negra. Nesse período, por exemplo, o grupo de homens brancos em torno de 60 anos de idade passou de 8,2% para 11,1%, enquanto o de negros, nesta mesma faixa etária, aumentou de 6,5% para 8,0%.
Mais preocupantes são os índices de mortalidade de homens de uma forma geral e, em particular, de jovens homens negros: as maiores vítimas da violência urbana e do acesso precário a recursos médicos. Enquanto em 2012 a taxa de homicídio para os jovens brancos foi da ordem de 29,9%, a de jovens negros chegou a 82,3%.
Aliás, segundo a Anistia Internacional, um jovem negro no Brasil tem em média 2,5 vezes mais chances de morrer do que um branco. Na região Nordeste – onde as taxas de homicídio são as mais altas do país – essa diferença é ainda maior: jovens negros correm 5 vezes mais risco de vida.
Se elegermos apenas o ano de 2012, quando um pouco mais de 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil, desse total 30.000 eram jovens entre 15 a 29 anos e, entre eles, 77% negros. Em resumo: os números traduzem condições muito desiguais de acesso e manutenção de direitos, e dados de violência elevados mas também com alvo claro. Revelam mais: padrões claros de mortandade, que evocam questões históricas de longa e curta duração.
Não é segredo para ninguém que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão mercantil nas Américas, só o fazendo – após os Estados Unidos e Cuba – em 1888. Além do mais recebeu 40% da população que saiu compulsoriamente do continente africano. Por fim, se um sistema que supõe a posse de um homem por outro não tem como ser “bom” – é sempre “mal” – aqui a régua da violência foi sempre alta: enquanto nos EUA morria-se com uma média de 31 anos no trabalho, no Brasil a perspectiva de vida descia para 21.
Após o final desse longo, persistente e arraigado sistema, foi a vez de teorias raciais entrarem em ação. Depois da liberdade jurídica tornaram-se influentes teorias raciais que determinavam a inferioridade biológica de certas raças e a degeneração dos indivíduos mestiços, recriando a diferença social e histórica, agora em bases científicas.
E se hoje em dia essas teorias raciais saíram de voga; se o conceito biológico de raça é visto como falacioso, ainda introduzimos a noção no nosso dia a dia, assim como os dados acima – entre tantos outros – mostram como essa variável representa um “plus” perverso, que leva a que negros morram mais cedo, tenham menor acesso à educação, à saúde, e até mesmo ao lazer.
Claro está que história não é conta previsível de somar. Mas claro está, também, como não existem bons racismos: todos são igualmente carregados por traumas e sofrimentos. Hoje com 60% de sua população composta de pardos e negros, o Brasil pode ser considerado o segundo maior país de população originária da África, só perdendo o pódio para a Nigéria.
De um lado, essa mescla gerou uma sociedade definida por uniões, ritmos, artes, esportes, aromas, culinárias e literaturas realmente misturados. De outro, produziu um país que delega para a polícia o papel de performar a discriminação, como nos atos de intimidação – as famosas batidas policiais –, as quais selecionam sempre mais negros do que brancos.
Continuamos combinando inclusão cultural com exclusão social – mistura com separação – e carregando grandes doses de silêncios e não ditos. Por isso mesmo, não basta culpar o passado e fazer as pazes com o presente; o qual, aliás, anda repleto de passado. Toni Morrison no romance Amada conta a história da Casa 124 que era habitada por duas mulheres e seus fantasmas vindos do passado: violências, estupros e mortes dos dias de escravidão.
Paradoxalmente, os fantasmas, que insistiam em retornar, eram o que mais se pareciam com a danada da realidade. Nós brasileiros andamos mesmo perseguidos pelo nosso passado, e nos dedicando, ainda, à tarefa de expulsar fantasmas que, teimosos, continuam a assombrar.
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*Professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”; “O sol do Brasil”; “Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil” e “Histórias Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp.
Enviado para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.