Por Martha Neiva Moreira, na Trincheiras
Aos 26 anos, Luciene Lacerda participou de sua primeira passeata. Foi em 11 de maio de 1988, por ocasião dos questionamentos do Movimento Negro sobre a comemoração dos cem anos da abolição da escravatura no Brasil. O momento foi tenso, com cerco policial reprimindo os manifestantes que denunciavam a “farsa da abolição no país” e, por isso mesmo, marcante também para ela que, desde então, mergulhou de cabeça na militância.
Luciene, que é psicóloga e pesquisadora do departamento de Bioética do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não está no Brasil. Ela pesquisa, em universidades de Montreal, no Canadá, projetos já implantados de enfrentamento a diferentes formas de
violência dentro do campus universitário.
A pesquisa se insere no escopo de um trabalho longo na área de saúde coletiva que se dedica a investigar a relação entre identidade racial, de gênero e saúde. Do Canadá, ela concedeu esta entrevista, por Skype, em que conta sobre seu trabalho atual, a trajetória até a militância e os desafios da primeira Marcha de Mulheres Negras, marcada para 18 de novembro.
TRINCHEIRAS – Você nasceu no Rio de Janeiro. Como foi sua infância?
Luciene Lacerda – Nasci em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Morava em uma casa de vila. Saí de lá com 3 anos e fui morar em um pequeno prédio em Cascadura, onde fiquei até os 18, quando passei no vestibular. Tenho uma irmã, psiquiatra, e um irmão, formado em Letras. Eu e minha irmã éramos boas alunas na escola, tirávamos boas notas, éramos do pelotão da bandeira da escola. Mas quando se é negro, é difícil não sentir algo sobre o racismo.
Um dia, um colega da nossa turma na escola, nos contou que a mãe de uma outra colega havia dito à filha que ela, um dia, haveria de tirar notas mais altas que “aquelas irmãs cabelos de Bombril”. Soubemos que a menina apanhava da mãe quando tirava notas mais baixas que a nossa! Esse é um exemplo de como o racismo atinge a todos na sociedade.
Quando eu era criança, não gostava de ser negra e mulher. Havia crianças que não queriam brincar com a gente porque éramos negras. Eu odiava não ter espaço para as coisas que gostava de fazer.
TRINCHEIRAS – Em que escola você estudou?
Luciene Lacerda – No Colégio Pedro II, o que me possibilitou desenvolver toda a minha carreira como bailarina.
TRINCHEIRAS – Você é bailarina?
Luciene Lacerda – Sim, fui bailarina profissional. Minha família não tinha dinheiro. Eu sempre quis fazer balé clássico, mas não havia como. No Pedro II, aos 16 anos, tive a oportunidade de fazer dança. Daí em diante fui fazer dança afro, me tornei bailarina profissional e dancei em espetáculos de Mercedes Batista e Esther Piragibe, do qual fui solista. Foi a Esther que me levou para a academia de Nina Verchinina, que trouxe a dança moderna para o Brasil. Lá conheci Heloisa Vasconcellos, que me ofereceu uma bolsa de estudos de balé clássico.
Dancei espetáculos e fui professora de dança afro e moderna no Liceu de Artes e Ofícios, no Centro. Mas, embora tivesse carteira profissional de dançarina moderna, afro e contemporânea, tinha limitações para o balé porque comecei tarde. Não punha a perna na cabeça, por exemplo. Além disso, era muito difícil ser bailarina negra. A Mercedes Batista, na década de 1980, era solista do Theatro Municipal, mas raramente era chamada para dançar. Na época, os espetáculos que incorporavam negras e negros não eram muitos. Havia espetáculos para turistas. Cheguei a dançar um no Copacabana Palace, que tinha samba e dança de salão. Acabei então me voltando mais para a carreira de psicóloga, pois sabia que, quanto mais velha ficasse, pior seria para a carreira de bailarina, ao contrário da psicologia. Fui trabalhar então com psicodrama, pois tinha ideia de usar a psicologia focada na construção de um corpo libertário. Daí em diante, fiz vários trabalhos com grupos de mulheres. Foi nessa época, já na universidade, que vi cartazes sobre a passeata dos cem anos da farsa da abolição e logo me interessei.
TRINCHEIRAS – Essa experiência foi marcante, não é?
Luciene Lacerda – Muito, tanto é que passei a militar no movimento negro a partir daí. Vi que ali as pessoas pensavam o mesmo que eu e falavam da mesma coisa. A passeata foi tensa, cercada pela Polícia do Exército. O Ministério do Exército alegou na época que o cerco era necessário, pois poderíamos querer destruir a estátua de Duque de Caxias (por conta de sua conduta racista na Guerra do Paraguai), que a passeata poderia mobilizar algo na estrutura da sociedade que levasse a uma revolução.
Lembro que havia um cerco policial da PM e do Exército. Eles se reuniram no Campo de Santana e cercaram a passeata para que ela não fosse adiante. Tentamos esclarecer os policiais negros que estavam ali colocados no lugar de opressores. Isso para mim foi tão mobilizador que escrevi um texto, comparando o cerco policial a uma senzala. A proposta era que o plenário do Conselho Regional de Psicologia, do qual eu fazia parte, assumisse o texto, pois eu entendia que pessoas que trabalham com a subjetividade humana deveriam estar atentas ao impacto que situações racistas como a que vivemos na passeata provocavam na vida das pessoas. Decidiram colocar o texto no setor de Cartas do Jornal do Conselho. Essa experiência foi determinante para eu ingressar no Movimento Negro e, posteriormente,
de Mulheres Negras, e também para a escolha do tema de pesquisa do mestrado.
TRINCHEIRAS – Qual foi o tema?
Luciene Lacerda – Fiz mestrado na área de saúde coletiva, no Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, e pesquisei em sindicatos a relação entre racismo, saúde e trabalho, focando nos sindicalistas negros antirracistas em cujos sindicatos havia secretaria ou GT antirracista. Quis entender de que forma o sindicalista negro via a questão do racismo em sua categoria profissional.
TRINCHEIRAS – E o que você descobriu com sua pesquisa?
Luciene Lacerda – Muitas pessoas que entrevistei para a pesquisa já eram do Movimento Negro, mas encontravam dificuldades para levar o debate sobre racismo para dentro do seu universo de trabalho. Entendiam, porém, que o racismo era uma questão institucional também, que as instituições praticam a
segregação de várias formas, muitas vezes sutis, como, por exemplo, exigindo “boa aparência” como critério de seleção.
TRINCHEIRAS – Fala um pouco mais sobre esse racismo institucional.
Luciene Lacerda – A pesquisa foi realizada no ano 2000. Identifiquei muitas formas de racismo, além do critério de “boa aparência”. Os negros e negras entram nas corporações, mas não se tornam chefes, por exemplo. O racismo é usado para desqualificar esses profissionais. Há um assédio moral e racial. Há profissionais que ficam tão fragilizados que começam a não conseguir ir ao trabalho, ou ficar bem no
trabalho. Há alguns que denunciam, mas as corporações não reconhecem a queixa.
Os profissionais que entrevistei para a pesquisa tinham todo esse entendimento do que sofriam, mas não conseguiam ir além disso e fazer, de fato, algo concreto em seus locais de trabalho, como campanhas internas de combate ao racismo. Com essa pesquisa, também compreendi que a questão do racismo deve ser também um aspecto considerado pelos profissionais de psicologia, na perspectiva de entender que o combate ao racismo é um fator importante para a promoção da saúde.
TRINCHEIRAS – Na lei que regulamenta a profissão de psicólogo há, inclusive, uma resolução que trata do assunto, não é?
Luciene Lacerda – Sim, é a Resolução 018/2002 do Conselho Federal de Psicologia, que estabelece que a questão da identidade racial deve ser vista com cuidado pelo psicólogo. Essa resolução nasceu, inclusive, de uma luta da militância no Conselho, que entendia que profissionais que lidam com saúde e saúde mental não podem deixar de considerar a questão racial. A saúde da população negra é pouco debatida e considerada, mesmo entre os profissionais da área de saúde. Por isso acabei criando no Instituto em que trabalho um curso sobre saúde da população negra voltado para profissionais da área. Na primeira edição, houve 76 inscrições, pouco mais de cinquenta foram selecionados e apenas 22 concluíram. Foi um curso de 180 horas, três vezes na semana. O trabalho final tinha como proposta criar um projeto de saúde da população negra em seus locais de trabalho. Vamos oferecer o curso novamente ano que vem, em horários mais flexíveis, para que os profissionais que trabalham durante o dia possam frequentar.
TRINCHEIRAS – Você também trabalhou no Hospital do Fundão, com mulheres, não é?
Luciene Lacerda – Sim, trabalhei 18 anos no ambulatório do Hospital e lá desenvolvi grupos de mulheres. Do ambulatório, fui trabalhar com pesquisa no Departamento de Bioética do Instituto de Saúde Coletiva da universidade.
TRINCHEIRAS – Hoje você coordena o Laboratório de Ética nas Relações de Trabalho e Educação desse Instituto e está no Canadá fazendo uma nova pesquisa. Do que se trata?
Luciene Lacerda – Temos planejado na UFRJ criar uma comissão de direitos humanos e enfrentamento à violência. É uma política que estamos construindo na universidade. A ideia é cuidar de todas as denúncias de assédio, violência, constrangimentos de toda ordem que possam ocorrer com funcionários, professores e alunos. Estou fazendo uma pesquisa nas universidades de Montreal, que já implantaram comissões semelhantes e que cuidam dos conflitos decorrentes das relações de trabalho e educação, incluindo, entre outras violências, aquelas que ocorrem no campus. No Brasil, já temos exemplos também, como na Universidade Federal do Paraná, que perdeu na justiça por assédio moral coletivo e foi culpabilizada por isso. USP e Unicamp também estão no caminho de criar políticas semelhantes. Em Santa Catarina e no Ceará já existe o mesmo movimento em algumas universidades. Fico no Canadá até dezembro, recolhendo informações nas quatro universidades em Montreal.
TRINCHEIRAS – A primeira Marcha de Mulheres Negras será este mês, no dia 18 de novembro. Como surgiu a Marcha?
Luciene Lacerda – As primeiras marchas do Movimento Negro surgiram no final dos anos 1980, quando o próprio Movimento Negro estava se reestruturando no Brasil. Na época havia a discussão de que um movimento de mulheres negras poderia fragmentar não só o Movimento Negro, mas o Movimento Feminista também. Nós alegávamos que não, que, tanto em um quanto em outro, era preciso o recorte de gênero e raça. De lá para cá, aconteceram muitas coisas, como a política de cotas, a criação da Secretaria de Igualdade Racial, a Lei 10.639, que estabelece como obrigatório o ensino de História da África nas escolas. No entanto, os desafios para as mulheres negras são grandes. As dificuldades que enfrentamos no dia a dia são inúmeros e desconhecidos da maioria da população.
Há uns dois anos, alguns setores do Movimento de Mulheres Negras avaliaram que este era o momento de as mulheres marcharem. Em 1995 o Movimento Negro organizou em Brasília os 300 Anos da Morte de Zumbi dos Palmares; em 2005 – dez anos depois – foi a vez da Marcha Zumbi+10, em que as mulheres negras construíram um documento a partir do Encontro Nacional Olhares da Mulher Negra sobre a Marcha Zumbi+10. E, agora, 20 anos depois da Marcha de Zumbi, as mulheres negras vão marchar.
TRINCHEIRAS – Quais são essas dificuldades?
Luciene Lacerda – Somos vítimas de muitas formas de opressão. Somos nós as que mais morremos por complicações relacionadas a aborto, por exemplo. Temos menos anos de estudos, somos poucas dentro das universidades, nas pós-graduações, em cargos púbicos, embora sejamos, proporcionalmente, mais numerosas no Brasil. Somos vítimas frequentes de violência doméstica, de violência em geral, de violência obstétrica, a ponto de haver relatos de mulheres negras que não recebem anestesia em hospitais públicos porque os médicos alegam que elas são mais resistentes.
Qualquer forma de violência é inadmissível, mas em espaços de saúde é algo absurdo, pois esses são locais que deveriam zelar pela saúde, e não descuidar dela. Há poucas pesquisas, por exemplo, sobre saúde da população negra, há poucas pesquisas com recortes de raça. Isso é também uma forma de racismo que afeta a nós, mulheres negras, a nossos filhos. Aliás, são nossos filhos os que mais morrem, vítimas de violência. Fora das áreas urbanas, somos nós, mulheres negras, nos meios urbano ou rural, as maiores vítimas dos impactos do racismo ambiental em nossas atividades. Por tudo isso, vamos marchar no dia 18.
TRINCHEIRAS – Mas você estará longe…
Luciene Lacerda – Sim, não estarei em Brasília no dia 18 de novembro, só retorno ao Brasil dia 8 de dezembro, mas daqui colaboro com as companheiras da organização da Marcha. E todos os meus dias estou e estarei lutando por uma outra sociedade, por um país de fato multicultural, sem racismo, sexismo, lesbohomofobia, de onde eu estiver. E minha pesquisa é parte dessa luta, para levantar e construir propostas para novas realidades dentro do campus universitário.
Gostaria de entrar em contato com alguma representante do coletivo das mulheres negras . Estou fazendo um documentario sobre a questão do aborto no Brasil que será transmitido no dia Internacional da Mulher 2017. Favor entrar em contato . obrigado
Helena Solberg