Vinícius Lisboa – Enviado Especial da Agência Brasil
A professora Bárbara Guerra, 37 anos, chama os alunos a responderem mais alto ao jongo [dança de origem africana com acompanhamento de tambores] que o grupo ensaia para a festa do Dia da Consciência Negra, na Ilha da Marambaia. O tempo está nublado e os remanescentes quilombolas dançam e batem o atabaque em meio a prédios da Marinha do Brasil e serras cobertas de Mata Atlântica.
O cenário é a Praia Suja, na Baía de Sepetiba. Perto dali, paredes de pedra ainda guardam a história da antiga senzala em que os negros em quarentena esperavam para ser traficados, depois de terem sido sequestrados da África para nunca mais retornar.
“Eu nasci, nasci de Angola. Angola que me criou. Hoje estou na Marambaia, moreno. E por isso negra sou”, canta Bárbara para que o grupo repita e para embalar os passos que resgatam a dança de seus ancestrais.
A resposta ao chamado da griô [contadora de histórias] ganha força e se soma às vozes que nas últimas décadas trouxeram de volta o jongo, a capoeira, o carnaval e o reconhecimento de que há uma história a ser contada na ilha.
“A importância disso tudo não é manter, é continuar a história, porque sem história nós não somos nada. Falam que quem escreve a história são os vencedores, mas cada um pode escrever sua história. No momento em que você escreve sua história, você já é um vencedor.”
No mês da Consciência Negra, a comunidade quilombola da Marambaia tem mais vitórias a celebrar. Depois de uma disputa judicial com a Marinha que se estendeu por mais de dez anos, um Termo de Ajustamento de Conduta assinado no fim do ano passado entre as duas partes pôs fim ao litígio. Além da herança quilombola, a ilha abriga desde a década de 1970 o Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia, onde são realizados treinamentos militares.
No mês passado, uma cerimônia que contou com a presença do ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, concedeu o título de posse de 53 hectares às famílias quilombolas que habitam o local. Após anos impedidos de fazer pequenas expansões, os moradores da ilha – cerca de 430 pessoas – hoje constroem mais 24 casas para famílias que antes moravam com parentes e uma sede para a Associação dos Remanescentes Quilombolas da Ilha da Marambaia (Arqimar), fundada em 2003.
Ao visitar a comunidade e participar da cerimônia que contou com uma apresentação de jongo, o ministro Patrus Ananias disse que o acordo entre a Marinha e a comunidade pode servir de exemplo para a superação de outros conflitos.
“Eu fico muito feliz com o encontro dos interesses do país presentes nesta belíssima Marambaia: a defesa nacional, com a presença da Marinha do Brasil, e a preservação ambiental, daqueles que estão comprometidos com ela”, disse na entrega dos títulos.
Políticas públicas
Presidente da Arqimar, Nilton Alves espera que a regularização abra as portas para a entrada de mais serviços públicos.
Hoje, a comunidade depende da Marinha para ter atendimento médico de emergência e transporte para o município de Mangaratiba. Há apenas uma escola de nível fundamental na ilha que funciona em um prédio cedido pela Marinha.
Para quem cursa o ensino médio, é preciso ir a Mangaratiba no barco da Marinha que sai pela manhã e só retorna no início da noite, o que faz com que os sete jovens que fazem esse percurso muitas vezes percam o primeiro tempo de aula e fiquem ociosos durante a tarde aguardando o barco de volta.
Para fazer um saque no banco ou um exame médico, por exemplo, muitas vezes é preciso sair antes das 6h e só voltar às 18h.
“Com a chegada do título, a gente vislumbra ter melhorias para a comunidade, na área de políticas públicas, saúde, transporte, educação, saneamento básico e outras coisas”, conta Nilton, que também é diretor-adjunto da Escola Municipal Levy Brandão, onde estudam 61 crianças e adolescentes da Marambaia.
Ensaios
É na escola que Bárbara e o professor de biologia Osmar Lima Estanislau, de 31 anos, ensaiam o grupo de jovens que vai apresentar o jongo do Dia da Consciência Negra. A dança é uma das atividades do Grupo Cultural Filhos da Marambaia, fundado em 2005, e também é tema de debate em sala de aula.
“Faço a integração da cultura com o meio ambiente nas aulas. Introduzo sempre que possível a capoeira, o jongo e procuramos mostrar para eles a nossa identidade. A escola tem um papel fundamental na tradição cultural”, conta Estanislau, que também aborda temas como o uso racional de recursos naturais que fazem parte do dia a dia da comunidade.
“Também falo de pesca e de coleta de molusco, porque aqui é muito comum o mexilhão. De como é importante tirar uma parte e deixar a outra parte preservada. Se pegar um peixe que não tenha validade para venda, devolver para o mar. A pesca é a atividade mais importante aqui na Ilha da Marambaia.”
No final de mais um dia de aula no 9º ano do ensino fundamental, Vitória Machado, 15 anos, respondia ao jongo e batia palmas para a dança de Bárbara e Osmar. Para ela, ser quilombola é “descender de uma cultura africana, mas daqui do Brasil”. A jovem diz ainda que o conhecimento histórico é o melhor aliado no enfrentamento ao racismo. “O preconceito é uma coisa muito primária, muito primitiva. Ele podia ser evitado com um pouco mais de conhecimento. Se eles [os racistas] conhecessem a nossa história, a nossa cultura, talvez não tivessem esse preconceito.”
Jean Eugênio, 15 anos, é o responsável pelas batidas no atabaque. Ser quilombola, para ele, é um processo de aceitação. “Para mim, é aceitar ser o que você é. É mostrar para o mundo a sua cultura, o que você aprendeu e o que você quer.”
O estudante quilombola espera que, daqui a alguns anos, seu instrumento de trabalho seja a Constituição, que um dia já foi usada para legitimar o tráfico e a exploração de africanos escravizados. O desejo de se formar em direito e usar a lei para reivindicar igualdade é compartilhado com Vitória. “A gente vê essa luta que é travada pela nossa comunidade, e a gente quer defender de um modo jurídico a nossa sociedade”, diz a jovem, cujos pais não terminaram o ensino fundamental.
‘Que tal resgatar o Carnaval?’
O resgate de danças africanas faz parte de uma série de iniciativas tomadas nos últimos 15 anos para reviver a cultura quilombola. Outro exemplo é o renascimento do carnaval na Ilha da Marambaia, com a fundação do Bloco Pé de Cana, há quatro anos.
“Moro aqui há 20 anos e lutamos muito para resgatar a comunidade. Fomos de casa em casa para conversar com os moradores mais velhos e eles foram contando para gente. Começamos a resgatar o jongo, a capoeira e pensamos: que tal resgatar o carnaval, se a gente gosta de se reunir?”, conta Joeci Gomes, de 39 anos.
Foi preciso ainda pensar no samba, no nome do bloco e correr atrás de patrocínio, que foi concedido pela Prefeitura da Mangaratiba.
“Aí a gente começou a fazer o carnaval. É um dia só. Vem os parentes de fora e assim foi crescendo. Quando termina o dia 20 [de novembro], já tem que organizar o carnaval”, conta Jô, como é conhecida na comunidade.
Antiga senzala
A apresentação do grupo de jongo no Dia da Consciência Negra ocorre há 10 anos nas ruínas de uma senzala, onde o teto já veio abaixo e alguns pilares de pedra foram engolidos por árvores.
Historiadores afirmam que a Ilha da Marambaia foi usada como “lugar de engorda”, onde os negros que chegavam da África debilitados eram alimentados para que tivessem mais força e pudessem ser vendidos a valores mais altos e distribuídos em propriedades da região. Quase um mês antes da festa, o trabalho de capinar e arrancar as ervas daninhas começa pelas mãos dos próprios quilombolas, que convidam organizações não governamentais, ativistas e parentes para participar da celebração, a mais importante do ano para a comunidade.
A festa termina com uma feijoada como cardápio. Além disso, um grupo de mulheres costuma passar a noite anterior ao evento na antiga senzala, fazendo orações e cuidando dos últimos preparativos.
Jô conta que nem todos os moradores da ilha tem coragem de dormir ou frequentar a região, por considerarem o local “carregado” pelo sofrimento dos antepassados. “Algumas pessoas não gostam. Veem vultos, vozes, as coisas mexendo. Mas a gente conhece a história e tem respeito. Com respeito, não tem problema”.
Consciência negra
Uma das líderes da mobilização dos quilombolas na Marambaia, Vânia Guerra, 56 anos, acredita que a luta dos moradores da região acabou se transformando em mais consciência sobre o que é ser negro.
Mãe de Bárbara e griô, ela lembra que foi preciso superar muito medo para poder reivindicar seus direitos. “O medo é a herança do tronco. Esse medo já nasce com a gente, porque a gente aprendeu a não confiar. Tudo isso a gente teve que trabalhar, porque a nossa esperança é fazer com que cada um se assuma e assuma sua missão para que a gente não deixe essa vitória [a conquista do título de posse da terra] sem comemoração, sem legitimidade.”
Com três filhos e sete netos, ela diz que já foi questionada muitas vezes sobre a origem quilombola de sua família.
“Já botaram o dedo na minha cara e disseram que eu não era quilombola, porque não cultivava aquela herança do tronco que era o medo desesperado por se achar raça inferior. Mas nossas heranças do tronco são outras. É o contador de história, é proteger aquela árvore ali até ela virar tronco, é defender aquela pedra porque muitos foram chicoteados e muitos correram e sentaram nela para chorar, e eram nossos antepassados”, diz.
Reconhecimento
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o órgão do governo responsável pelo reconhecimento, pela identificação, delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas, que são regidas pelo Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003.
De acordo com o documento, “consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
“Segundo antropólogos, o que fundamenta o atual conceito de quilombo é a consolidação de um território próprio por comunidades negras rurais que mantêm costumes tradicionais e uma relação de subsistência e preservação do ecossistema, além de desenvolverem práticas culturais que remontam à opressão histórica da escravidão”, diz o Incra.
A concessão do título de posse da terra da comunidade da Marambaia, em outubro deste ano, ocorreu 13 anos depois do início da Ação Civil Pública que pediu o reconhecimento da comunidade, em 2002. Entre 1996 e 1998, a comunidade foi alvo de ações de reintegração de posse movidas pela União para retirar as famílias. No final de 2014, a Marinha e a comunidade assinaram o Termo de Ajustamento de Conduta, que encerrou as disputas na Justiça.
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Foto: Na Ilha da Marambaia, alunos dançam jongo em frente à da escola Levy Miranda –