Em Justificando
O colégio Fernão Dias foi ocupado pelos alunos em um ato de resistência contra a reestruturação da rede estadual de ensino. Milhares de alunos terão que mudar de escola, famílias terão que reorganizar suas vidas sem terem sido ouvidas em nenhum momento.
Nem se trata de discutir o mérito da proposta. Fazê-lo significaria de algum modo conceder razoabilidade ao que é absolutamente ilegítimo. Obscureceria o aspecto crucial do conflito, que é a tensão entre moral e Direito ou moral e política.
A questão moral pode ser sinteticamente expressada com uma frase que retiro da poesia de um clássico da música brasileira: gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente.
Um governante decidiu que tem o direito de alterar significativamente a vida de milhares de famílias. Pensa que o seu mandato lhe dá o poder de tratar as pessoas como gado. Pensa que o seu mandato lhe permite dispor da existência de seres humanos de acordo com seu arbítrio.
No momento em que escrevo uma ordem judicial de reintegração de posse está para ser cumprida.
A resistência dos jovens do Fernão Dias insere-se no seio de uma tradição milenar. Aquela que, desde Sócrates, diz que a imoralidade não obriga. Já condenado, perguntaram-lhe se se arrependia da conduta que o levava à morte: “você está errado se pensa que um homem vale alguma coisa gastando seu tempo ao pensar sobre as chances de vida e morte; ele deve considerar somente uma coisa, se está agindo certo ou errado, como um homem bom ou não” (Críton).
Preso por desobedecer leis segregacionistas, Martin Luther King escreveu a célebre Carta da Prisão de Birmingham:
“um indivíduo tem a responsabilidade moral de desobedecer leis injustas (…) Qualquer lei que eleve a individualidade humana é justa, qualquer lei que a degrade é injusta. Uma lei injusta é um código que um grupo, majoritário, força uma minoria a obedecer, sem que alguém seja responsabilizado (…) um indivíduo que viola uma lei injusta deve fazê-lo abertamente, amorosamente e disposto a aceitar as penalidades. Um indivíduo que desobedece uma lei que sua consciência diz ser injusta, e que prontamente aceita a pena de prisão para estimular a consciência de uma comunidade frente às injustiças que ela comete, está na realidade expressando o maior respeito possível pela lei”.
Na Índia colonizada era proibido extrair sal. Garantia-se assim o monopólio comercial da Inglaterra. Gandhi, em 1930, empreendeu uma marcha de 400 km até o litoral para extrair um punhado de sal.
Thoreau foi preso por não pagar impostos a um governo escravocrata e que naquele momento promovia uma guerra injusta contra o México.
São paradigmas da desobediência civil. Espécie do gênero direito de resistência, o direito inalienável que todo homem tem de não se submeter à tirania e à opressão. O direito de não obedecer ao mal social.
Até quando sonharemos com uma decisão judicial fundamentada em uma ordem de ideias dessa natureza? Uma que dissesse, em síntese, que os seres humanos têm dignidade, não podem ser tratados como coisas e movidos de um lado para o outro como os móveis de uma casa ou como animais desprovidos de razão e sensibilidade, e que sequer são ouvidos sobre o seu próprio destino? Que tivesse a coragem de dizer que a dignidade humana é fundamento da República e, isto posto, denega-se a reintegração de posse, publique-se, registre-se, intime-se?
Seria preciso, antes de mais nada, escapar das sombras da caverna. As sombras constituídas pelas convenções sociais, pelos mitos do senso comum, pela aceitação de noções que jamais são submetidas à razão.
Por exemplo, as noções de “ordem” e “desordem”. É sempre desordem alunos ocuparem uma escola, não importa a motivação. Não é desordem o governo transtornar a vida de milhares de famílias e importa sempre a motivação do governo – apenas porque é governo. É mais um exemplo de banalidade do mal. O mal é sempre raso e superficial. O justo e o bem exigem pensar radicalmente, ou seja, usar a razão para ir às raízes das coisas, alcançar consequências e efeitos, compreender a sociedade para além das ideias fossilizadas do cotidiano.
Nesta noite escura que vive a sociedade brasileira, com o fascismo, o ódio e a intolerância assombrando nossos dias, saudemos esse punhado de jovens corajosos e com alma. Eles são a melhor notícia que podíamos ter. Não se submeteram. Recusaram-se a ser gado. Deslegitimaram estruturas de mando. Não importa o que acontecer, a vitória é deles.
Que ações como essas sirvam de luz para a esquerda fossilizada que se enclausurou no Parlamento e abrigou-se nas velhas estruturas de poder. A esquerda que esqueceu que para transformar é preciso desobedecer.
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Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal. Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.
Destaque: Escola Fernão Dias ocupada por alunos. Foto: Marco Ambrosio /Estadão.