Incra avança na regularização de três territórios quilombolas no Rio Grande do Norte

Incra/RN

As 116 famílias que vivem nas comunidades quilombolas de Acauã, Jatobá, e Boa Vista dos Negros, comemoraram o avanço do processo de regularização de seus territórios. De segunda (9) a quarta-feira (11), o Incra/RN promoveu a assinatura de Contratos de Concessão Real de Uso (CCDRU) referentes a processos de desintrusão (retirada de ocupantes não-quilombolas), a imissão de posse de imóveis em nome do Instituto e a entrega de títulos registrados.

Na quarta-feira (11), o Incra foi imitido na posse de dois imóveis que compõem a área quilombola Boa Vista dos Negros, em Parelhas, no Território da Cidadania do Seridó, antes pertencentes a não-quilombolas. Juntos, os imóveis têm cerca de 210 hectares. O ato contou com a presença de crianças, adultos e idosos da comunidade e foi acompanhado pelo superintendente do Instituto no Rio Grande do Norte, Vinícius Ferreira Araújo, pela equipe técnica do Serviço Quilombola do Incra/RN, pela assessora da Procuradoria Federal Especializada, Valéria Poição da Costa, e ainda pela Oficiala da 9ª Vara Federal de Caicó, Constância Maria Bezerra Costa Uchôa.

De acordo o antropólogo André Garcia Braga, do Serviço Quilombola do Incra/RN, as próximas etapas para a regularização do território da comunidade Boa Vista dos Negros, onde vivem 36 famílias, são: a emissão de CCDRUs referentes a estes imóveis desapropriados e a continuidade dos processos desapropriatórios dos imóveis que compõem o restante do território, visando sua titulação.

Já na terça-feira (10) ocorreu a assinatura do título referente ao último imóvel do território quilombola reivindicado pelas 33 famílias do Quilombo de Jatobá, em Patu, no Território da Cidadania do Alto Oeste Potiguar. O imóvel, com área aproximada de 86 hectares, ainda pertencia a não-quilombolas. Participaram da solenidade o diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra, Richard Martins Torsiano, a coordenadora geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra, Isabelle Alline Lopes Picelli, o superintendente do Incra/RN, Vinícius Ferreira de Araújo, e a equipe técnica do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas da Superintendência Regional.

Na ocasião, também foram entregues sete títulos registrados referentes aos outros sete imóveis que compõem o território e somam cerca de 131 hectares, e ainda 30 DAPs para as famílias quilombolas.

Segundo o antropólogo André Garcia Braga, do Serviço Quilombola do Incra/RN, com este ato, o processo de titulação do Território Quilombola de Jatobá praticamente chega à sua conclusão, pois 100% do território de aproximadamente 219 hectares encontra-se desintrusado, demarcado e sob propriedade da Associação dos Quilombolas de Jatobá, restando apenas a união das matrículas dos oito títulos em uma só.

Na segunda-feira (9), no Quilombo de Acauã, foram assinados CCDRUs referentes a quatro imóveis que pertenciam a não-quilombolas e foram desapropriados. Os imóveis somam aproximadamente 289 hectares e compõem o território reivindicado pelas 47 famílias da comunidade, localizada em Poço Branco, no Território da Cidadania do Mato Grande. A solenidade foi realizada na própria comunidade e também contou com a presença de Torsiano, de Isabelle, de Araújo e da equipe técnica do Serviço Quilombola do Incra/RN.

Segundo o antropólogo, Braga, as próximas etapas do processo de regularização do território da comunidade Quilombo de Acauã são: a proferição das sentenças dos processos desapropriatórios que foram contestados judicialmente e a emissão dos títulos de propriedade em nome da associação quilombola. Com a regularização do território, serão implementadas ações visando à autonomia da comunidade, como a emissão de Declarações de Aptidão ao Pronaf (DAPs) para quilombolas e o Cadastro Ambiental Rural (CAR).

Boa Vista dos Negros

A ocupação da área em que está o Quilombo de Boa Vista dos Negros iniciou em meados do século XVIII, quando portugueses e seus escravos saíram da Paraíba para assumirem as sesmarias. O terreno, doado pela coroa portuguesa, deu origem às primeiras fazendas de cria de gado – principal atividade econômica do semiárido do Rio Grande do Norte no período colonial.

De acordo com o Relatório Antropológico constante no processo, uma destas fazendas, cujo nome era Boa Vista, foi dividida em três sítios: Boa Vista dos Negros, dos Luciano e dos Barros.
A origem de Boa Vista dos Negros, segundo o relatório, foi a doação de uma porção de terras, por um poderoso fazendeiro branco, para uma retirante negra chamada Tereza, que chegou grávida à fazenda, onde virou criada. Seus descendentes transmitiram por herança a terra doada, formando um grupo estável e autônomo economicamente, além de uma grande rede de solidariedade reforçada por casamentos endogâmicos e pelo parentesco.

A comunidade teria chegado ao seu auge em meados do século XIX, quando Theodozio Fernandes da Cruz comprou, junto com outras áreas, a fazenda Boa Vista através de transações financeiras dentro do próprio grupo e a registra em cartório. Com boa situação econômica, ele construiu uma casa de tijolos – algo raro para a época –, prosperidade que atraiu outros negros, livres e fugidos, levando Boa Vista a comportar 500 pessoas na época. O título e a propriedade até hoje se encontram em poder dos herdeiros de Theodozio.

Ainda segundo o relatório antropológico, a prosperidade declina no fim do século XIX, com a grande seca de 1877, que fez muitas pessoas de Boa Vista migrarem por uma vida melhor. Em situação de penúria, as famílias realizaram negócios imobiliários desfavoráveis, e terras e até filhos teriam sido trocados por sacos de farinha ou cachimbos de fumo.
No relatório consta ainda que, com o início do século XX, as terras que ainda não tinham sido negociadas começam a ser invadidas, sobretudo na década de 1950, principalmente pelos antepassados dos atuais ocupantes não-quilombolas do território identificado. Os expropriadores detinham poder político e econômico na região e se utilizavam, conforme o estudo, do aparato estatal para que seu ponto de vista sobre as terras prevalecesse. Terras invadidas teriam sido vendidas a terceiros como se adquiridas de forma legal.

Quilombo de Jatobá

De acordo com o Relatório Antropológico que integra o RTID do Quilombo Jatobá, seus moradores são descendentes de Manoel e Raymunda, escravos de Joaquim Teixeira Dantas, proprietário de terras no Patu de Fora, em Patu (RN). Manoel era filho da escrava Vicência e Raymunda, índia, que foi “pega a dente de cachorro e a casco de cavalo”.

Com a liberdade adquirida pela família escrava e o casamento de alguns de seus filhos, o núcleo familiar do escravo Manoel teria começado a se separar. Continuaram na região, embora em sítios diferentes, mas mantendo relações comos antigos proprietários, provavelmente como agregados (morador com direito a roçado e com a obrigação de prestar serviços como trabalhador ou capanga). Os negros continuavam presos ao proprietário, após a libertação, no final do século XIX e início do século XX. Alguns dos seus filhos encontram residências próximas, reforçando os laços de consanguinidade e parentesco. Os descendentes de Raymunda ficaram conhecidos como “negros da Atenas”, e a comunidade posteriormente conhecida como Jatobá.

O processo de regularização do território quilombola de Jatobá foi aberto no Incra em novembro de 2004 e os trabalhos de campo tiveram início no mesmo ano, com o levantamento topográfico prévio. Em abril de 2005, foi iniciada a pesquisa cartorial dos imóveis incidentes no território ocupado pela comunidade.

O Relatório Antropológico que integra o RTID da comunidade Jatobá foi elaborado através de convênio com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pelo professor Luiz Carvalho de Assunção. Entregue em dezembro de 2006, estabeleceu um território de cerca de 219 hectares e revelou que a área sob domínio da comunidade de Jatobá é menor do que a original. Trechos do imóvel foram vendidos ao longo do tempo, e o relatório sugere recuperar a sua totalidade diante da perspectiva de crescimento populacional da comunidade.

Quilombo de Acauã

Em 2013, Acauã foi a segunda comunidade quilombola do Rio Grande do Norte a ter os imóveis que integram o território reivindicado por seus moradores sob posse do Incra para regularização coletiva das terras. A primeira foi Jatobá, no final de 2012.

A comunidade de Acauã, com cerca de 540 hectares, se definiu como comunidade remanescente de quilombo em 2004, ano em que o Incra abriu processo com fins de demarcação e titulação das terras ocupadas por seus moradores. Ainda dentro do processo, foi elaborado o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), documento composto pelo relatório antropológico, cadastro das famílias quilombolas, levantamento fundiário da região, planta e memorial descritivo do território.

Em 2008, o Incra publicou portaria de reconhecimento do território quilombola, mesmo ano em que a Presidência da República decretou a desapropriação da área por interesse público e para fins sociais de reforma agrária. Também foi feita a avaliação do imóvel.

De acordo com o Relatório Antropológico do RTID do Quilombo de Acauã, a maior parte das famílias da comunidade foi atingida pela construção da barragem de Poço Branco, do fim da década de 1950 a 1969. A antiga cidade de Poço Branco foi inundada bem como povoados e comunidades ribeirinhas, como a antiga Acauã. As famílias foram removidas e criaram novos povoados, como a atual sede municipal e a atual Acauã. Através de negociação com o prefeito e com os diretores da obra da barragem, as famílias suas famílias conseguiram uma área de cerca de quatro hectares onde vivem hoje 16 destas – parte das que anteriormente viviam na antiga Acauã ou Cunhã velha.

Segundo a história oral registrada no Relatório Antropológico, a área foi descoberta pelo escravo fugido José Acauã. As versões da origem de Acauã envolvem a chegada dos antepassados das atuais famílias da comunidade e reportam-se às três irmãs Santana que casaram com José Gomes e Sebastião Rodrigues, iniciando uma intrincada rede de relações de parentesco e de aliança.

As famílias viviam da agricultura em terras livres, consideradas como terras “desimpedidas”, portanto “terras do Estado” nas duas margens do Rio Ceará-Mirim. O processo de concentração fundiária implicou no crescimento das “terras aforadas” (registradas em cartório), e na redução das áreas e terras livres que não eram cercadas. Com a inauguração da barragem, as famílias de Acauã retiraram-se dos locais onde viviam e plantavam e passaram a arrendar terra para a manutenção da autonomia econômica doméstica. O trabalho no corte de cana-de-açúcar virou uma estratégia, mas o ofício como diarista era bastante comum.

Ainda segundo o Relatório Antropológico de Acauã, a precariedade social e econômica persistiu desde a remoção das famílias. Das 16 famílias originárias da antiga Acauã, algumas saíram. Outras continuam através do fortalecimento das relações de parentela pelo casamento. A ideia de que todos são parentes é comum, de acordo com o estudo, o que evidencia um sentido de identidade.

Processo de regularização quilombola

No Rio Grande do Norte existem cerca de 60 comunidades remanescentes de quilombos, de acordo com estudo da Fundação Cultural Palmares (FCP). Destas, 21 se reconheceram como tal. Atualmente 19 comunidades encontram-se com ação em tramitação no Incra/RN com processo de reconhecimento, demarcação e regularização de áreas quilombolas.

Além de Acauã, Jatobá e Boa Vista dos Negros, outras seis comunidades quilombolas estão com os processos de regularização de seus territórios em estágios avançados: Capoeiras (em Macaíba), Aroeiras (Pedro Avelino), Nova Descoberta (Ielmo Marinho), Pavilhão e Sítio Grossos (Bom Jesus) e Macambira (Lagoa Nova).

As comunidades quilombolas são grupos étnicos predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana, que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais.

Para terem seus territórios regularizados, as comunidades devem encaminhar uma declaração se identificando como quilombolas à Fundação Cultural Palmares – que expedirá uma Certidão de Autorreconhecimento – e encaminhar ao Incra uma solicitação de abertura do processo de regularização.

Imagem: Reprodução do Incra

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