Por Vinicius Torres Freire, na Folha de São Paulo
A Vale declarou ao mundo que é “mera acionista” da Samarco, dona das barragens que ruíram. A ruína largou uma torrente de lama suja que matou provavelmente 27 pessoas, destruiu vilas e desgraça vidas e comunidades no caminho de Minas ao mar.
Não se sabe a causa da ruína. Mas ficou evidente que, na prática, ninguém ligava para os horrores que escorreriam com a lama mortífera. Não havia plano de avisar do desastre, de atenuá-lo. A destruição prossegue, sem limite.
A Vale partilha a Samarco com a BHP. Chamou-se de “mera acionista” para o “Wall Street Journal”. Não diferiu muito da BHP. Mas se esmerou. “A Vale é apenas uma mera acionista da Samarco, sem nenhuma interferência operacional na administração dessa companhia, de modo direto ou indireto, próximo ou distante”, afirmou a empresa.
Sim, BHP e Vale têm “responsabilidade limitada” por lambanças ou até crimes da Samarco. Quão limitada, na letra da lei, é controverso.
Fora da lei, a Vale pode acreditar nessa burrice burocrática que disse ao jornal americano. Mas, a se comportar assim, pelo menos sua reputação e a conversa de “responsabilidade social e ambiental” estarão na lama suja.
O que pensam os “meros acionistas” da Vale? A Vale é controlada pela Valepar, empresa criada para a compra da então Vale do Rio Doce, na privatização. A Valepar é controlada por fundos de pensão, pelo Bradesco e por acionistas do banco, pela megatransnacional japonesa Mitsui, pelo BNDES e sócios menores (isso quanto a ação com direito de voto. Dois terços do capital total são de acionistas em tese dispersos).
Os fundos são os de BB, CEF e Petrobras; a Previ, do BB, lidera. Seu comando é definido por acordão entre governo, sindicalistas e funcionários. Quem manda na Valepar, enfim, é um combinado de Bradesco e fundos-governo.
Diretores de fundos ou banco devem ser responsáveis pela desgraça de Mariana? Não. Os da Vale ou da BHP? Não faz sentido. E as empresas Vale e BHP? Hum. Enfim, quem responde pela nomeação do comando da Samarco?
Suponha-se que a Samarco seja culpada. Que, em vez de multa ambiental boazinha, a empresa deva indenizar vidas, cidades etc. Caso não tenha fundos, Vale e BHP dirão o quê? Que estavam apenas de visita na Samarco, onde eventualmente pegam uns trocados?
Em geral, seria em certos casos injusto e muita vez inviável, jurídica e economicamente, que responsabilidades legais e financeiras diretas não fossem limitadas a uma empresa de um grupo e ao capital investido na companhia (na “responsabilidade limitada” original, as perdas de um empreendedor em uma empresa limitam-se ao capital investido).
Em geral, ressalte-se.
Há responsabilidades que não são diretas; mesmo as leis sobre limites de responsabilização são reinterpretadas a depender de contextos e tamanho do estrago.
A “responsabilidade limitada” é um privilégio conveniente (para a criação de novos negócios), mas embute um incentivo perverso, se considerada em sentido amplo. O “mero acionista” pode se esconder sob uma estrutura societária enrolada, sem rosto ou ônus. Para todos os fins que não sejam os bônus, pode dizer que o negócio do qual é dono é “independente”. É um incentivo ao dane-se.