Quem sabe a próxima oportunidade para vampiros de desastres ecológicos será em Parauapebas, centro do projeto Carajás
Tragédias ecológicas de proporções catastróficas, logo quando ocorrem, rompem o silêncio da mídia sobre situações de riscos que estavam marginalizadas e dão grande atenção aos espetáculos — sensacionalizando os aspectos macabros.
No caso da cobertura da catástrofe em Mariana, essa atenção da mídia tem sido parcial, baseada em informações prestadas pela Samarco, que se tornou inclusive a “sede” do governo de Minas para uma coletiva de imprensa.
A culpa da catástrofe, um crime socioecológico, tem sido naturalizada, transferida para a natureza, enquanto as responsabilidades de empresas e governos são diluídas em meio ao caos e desespero.
A urgência nas respostas para salvar vidas — humanas e não humanas — logo transforma-se em um emergencialismo. Planos preventivos que deveriam ter sido realizados e não foram passam a ser cobrados, como agora em Mariana, com decisão judicial para que um plano seja apresentado em cinco dias, ou que seja pago um salário mínimo para as famílias atingidas. Tudo curto e rápido, como panos quentes para aliviar.
Respostas rápidas são necessárias para aliviar o sofrimento imediato, no entanto podem servir apenas para dar conta de uma pressão inicial do espetáculo do desastre, e deixar para aqueles que são mais atingidos um longo e perene sofrimento.
O desastre industrial que aconteceu em Bhopal, na Índia, em 1984, e Chernobyl, em 1986, não ficaram no passado, produzindo efeitos terríveis da contaminação ao longo do tempo para milhares de pessoas e para o ambiente.
O desastre em Mariana provocado pela mineradora Samarco, da Vale e da australiana BHP, também terá uma longa duração no tempo, seja no ambiente, seja na vida das pessoas. A resiliência, que é a capacidade de reconstrução e recuperação do trauma, pode ser impossível.
Em um relatório de 2011, a ONU afirma: “não pode haver dúvida alguma de que a redução da vulnerabilidade aos riscos é infinitamente preferível à luta contra o sofrimento humano e as consequências econômicas das crises”.
Essa perspectiva tem sido pesquisada com foco na redução dos custos e mensuração técnica e operacional da vulnerabilidade, mais do que em questões de cidadania, qualidade de vida, segurança.
A tragédia em Mariana é social e ambiental, pessoas e ambiente foram expostas a um risco absurdo. E no que se refere a vulnerabilidade, que é a exposição ao risco, a suscetibilidade ao impacto, Mariana, palco de um desastre, pode ser um grande alerta para outras situações.
Enquanto ainda procuram-se os corpos, surge a questão de quem paga por isso e como esse pagamento é feito.
Pela lei brasileira, a priori, as responsabilidades deste crime socioecológico (que deve ser investigado) recaem sobre a Vale e a BHP em razão do princípio do poluidor-pagador instituído pela lei 6.983 de 1981: “é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.
Essa percepção atingiu os investidores dessas duas grandes empresas e as ações da BHP despencaram 7% após a catástrofe. A BHP escreveu em um e-mail ao Wall Street Journal que não tem nada a ver com a catástrofe e que a Samarco é “inteiramente responsável” e lavou suas mãos na lama.
A Vale também empurrou para a Samarco, igualmente como se não tivesse nada a ver com isso, apenas “apoiando” a empresa, disponibilizando recursos para “auxiliar a Samarco“. Um executivo da Votorantim, ex-executivo da Vale, Tito Martins, disse ao Valor que depois de Mariana, “tudo vai ficar mais difícil e mais caro de se fazer no país”.
Nessa visão, podem surgir alguns obstáculos a mais para serem superados (ou destruídos), e um pouco de dinheiro a ser pago – que depois pode vir a ser recuperado, por exemplo, com a redução de “custos” de “direitos” trabalhistas.
Acontece que os danos socioecológicos poucas vezes podem ser reduzidos a seu valor monetário. Quanto “Vale” um rio Doce? Quanto “Vale” as vidas do menino Thiago, da menina Emanuelly, de Valdemir que deixou esposa e três filhos, das dezenas de pessoas mortas? E quanto “Vale” as vidas abruptamente transformadas, sem a possibilidade de alternativa em decorrência da violência do desastre?
A catástrofe provocada pelas mineradoras Vale e BHP vai gerar muitos conflitos socioecológicos, longos no tempo e no espaço, e como coloca o economista ecológico Joan Martinez Alier, conflitos em torno dos “valores”.
Estas empresas e o Estado — seja o governo de Minas ou o federal, ou o Judiciário — vão tentar impor valores de dinheiro para aquelas pessoas cujas perdas, de vidas ou de possibilidades de existência por suas relações com o ambiente, são sentidas muito além do que o dinheiro pode comprar.
E em torno dos valores monetários, o desastre ambiental, para alguns, como o capital da grande mineração, é uma grande oportunidade de acumular. Já para muitos, para os pobres, representam longos anos de muito sofrimento e violência.
Na forma como é feito hoje — e pelos novos projetos do governo federal, a tendência é piorar — os estudos de impacto ambiental tentam reduzir tudo a algum valor que o dinheiro pode pagar. Isso significa uma violência tremenda para os mais pobres de dinheiro, e uma vantagem descomunal para o capital na Vale, na BHP, ou mesmo em Belo Monte…
Como essas empresas ricas têm mais dinheiro, podem comprar mais barato a vida e o ambiente dos pobres, protegidas pela violência colonial do Estado. Não há nenhuma outra solução possível para romper esse ciclo, além da básica consulta direta: aqueles afetados devem ser ouvidos, e ao serem consultados de forma informada, devem ter o direito de, livremente, decidir sobre o futuro de suas vidas e sobre o projeto em si.
Ainda assim, essa consulta, elemento fundamental da cidadania que não consta nos relatórios de impacto até agora, apenas poderia garantir o direito de algumas pessoas, já que as futuras gerações e a natureza só podem ser “consultadas”, em tese, por via de algum tipo de representação.
Mineração, agronegócio, barramentos de rios, e outros, são projetos de “desenvolvimento” autoritário, chamados por autores latino-americanos, como Maristela Svampa, Alberto Acosto, Eduardo Gudynas, de “extrativismos” (ou “neoextrativismo” dentro do quadro populista): algo como uma síndrome de extrair massivamente e mandar para longe e receber um pouco por isso, que fica concentrado em poucas mãos.
Extraem massivamente recursos naturais para exportação, deixando para trás um buraco e um rastro de saque, um ambiente destruído junto de vidas humanas e não humanas.
Essa destruição é motivo para ganho e acumulação, uma oportunidade para expansão e circulação do capital. É difícil imaginar que a Vale ou a BHP vão pagar o que deveriam se os cálculos fossem realmente feitos numa perspectiva ampla de diálogo com todos aqueles e aquelas que foram atingidos e atingidas.
Se os custos não fossem externalizados, colocados para fora, empurrados para os mais fracos ou para o ambiente comum, como o rio. Ambiente comum, ou bem comum, dizem respeito a todos e todas, e não podem ser cercados, privatizados, como tentam as mineradoras.
O ar, as comunidades, os rios, as florestas, são comuns, e não podem tornar-se propriedades cercadas pelas mineradoras para transferir para o comum os custos dos desastres provocados por suas atividades.
Empresas de seguro, advogados, bancos, empresas de serviços ambientais, há uma série de pessoas que planejam formas de ganhar dinheiro sobre o desastre alheio que recai sobre o comum: “É o capitalismo, estúpido”. E não só: é o capitalismo operando em seu tipo mais fundamental, o extrativista, aquele da acumulação primitiva, da acumulação por despossessão, por expropriação, por violência.
A tragédia, oportunidade de acumulação para alguns, pode também ser uma oportunidade de união, de solidariedade, de resistência, de aprendizado e de luta para muitos e muitas. O que a trajetória da mineração fez com Minas Gerais ao longo dos últimos séculos é um desastre. E aqueles mesmos que ganharam com isso hoje já miram novos espaços para ganharem mais, como o Pará.
É para o Pará que a Vale está migrando e em breve vai ganhar mais dinheiro na Amazônia do que em Minas. É para o Pará que migrou a siderurgia de ferro gusa que estava estabelecida em Minas Gerais, depois que esburacou a terra e transformou em carvão a Mata Atlântica e o Cerrado — e nas últimas décadas transformou também em carvão milhares de hectares da Amazônia, além de ter exportado o sangue de milhares de trabalhadores e trabalhadoras escravizados e escravizadas.
Quem sabe a próxima oportunidade de vampiros de desastre ecológicos, que já sobrevoam Mariana, ganharem dinheiro, será em Parauapebas, centro do projeto Carajás, da Vale. Recentemente, Haroldo Souza, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), fez uma visita à Barragem Gelado, em Carajás.
Essa é uma das três barragens centrais do Complexo Minerário de Carajás, que inclui também a barragem do Projeto Salobo, que contém ainda mais contaminação, e a Barragem do Sossego, em Canaã dos Carajás, próxima à nascente do rio Parauapebas.
A água, como em Mariana, é lama, rejeitos de ferro decorrente da lavagem do minério. Em Parauapebas vivem quase 200 mil pessoas (189 mil pelo IBGE em 2015). Se a barragem do Gelado romper, como em Mariana, será uma catástrofe. É difícil de imaginar, muito mais ainda de calcular.
Após o que aconteceu em Mariana, o risco de catástrofe não pode ser minimizado. No caos destas barragens de mineração que atingem diferentes cidades no sudeste do Pará, todo o plano de controle é feito por agências e órgãos municipais e estaduais sediados em Parauapebas (Prefeitura, Bombeiros, Defesa Civil). A justificativa dessa localização é a logística e o acesso à mina, e não necessariamente a prevenção de uma possível catástrofe.
Acontece que Haroldo Souza, professor curioso, pensou no pior, e perguntou para um engenheiro da Vale durante essa visita o que aconteceria se a barragem rompesse. Teve uma resposta certeira: “Não vai romper”. Souza insistiu: “Mas e se romper?” Ao que o engenheiro retrucou: “Mas não vai romper, foi feita para não romper”. Ignorante do poder da engenharia, mas imaginativo, o professor da UNIFESSPA insistiu: “Mesmo assim, se romper, o que é que acontece?”
Sem nenhuma planilha na mão, o engenheiro da Vale respondeu: “Não pensemos nisso, é melhor que não aconteça… seria algo muito desastroso pra todos em Parauapebas”.
Para a Vale, a BHP, para o governo federal, para os deputados financiados pelas grandes mineradoras que querem mudar o Código da Mineração, tem coisas que é melhor não pensar — pois pensar demais pode atrapalhar os lucros.
Para aqueles que pensam e que sofrem, como a população de Mariana, como os Munduruku que vivem no rio Tapajós e querem evitar seu barramento, para os camponeses e camponesas que vivem no sudeste do Pará e são atingidos pela Vale, não há como atribuir um valor de dinheiro para o desastre. Esse valor monetário só é aceito mediante violência.
Como me disse Katia Tonkuré Jonpti, liderança do povo Gavião Akrikatejê, também atingido pela grande mineração de ferro em Carajás: “A Vale deixou conflito. A Vale trouxe o impacto de separação, desunião e desigualdade. É um bicho papão. Um demolidor da natureza, máquina de acabar com tudo”.
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Imagem: Quanto vale as vidas abruptamente transformadas, sem a possibilidade de alternativa em decorrência da violência do desastre? (Antonio Cruz/Agência Brasil)