Acusada de responsável pela tragédia, empresa da Vale cuida da cena do crime, exclui imprensa e deixa o povo de fora. Tá certo isso?
Por Laura Capriglione, enviada especial dos Jornalistas Livres, com fotos de Gustavo Ferreira, em Mariana (MG)
Arrancados de suas casas pelo tsunami gerado pelo rompimento das barragens Fundão e Santarém, repletas de lama tóxica, os moradores de Bento Rodrigues, arraial rural a 35 km do centro de Mariana, sofrem com outro tsunami: o de dúvidas, de mentiras e de dissimulação.
As barragens sinistradas pertencem à mineradora Samarco, fundada em 1977, controlada pela toda-poderosa Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton. Décima maior exportadora do país, a empresa faturou R$ 7,6 bilhões em 2014 e apresentou um lucro líquido de R$ 2,8 bilhões. Apesar dessa contabilidade vistosa e de dizer em seu site na internet que preza pela vida “acima de quaisquer resultados e bens materiais”, os moradores de Bento Rodrigues reclamam que não havia nem mesmo uma simples sirene instalada e funcionando para alertar o lugarejo da ruptura das barragens. Poderia ter salvo vidas.
Agora, no rescaldo da tragédia, os habitantes de Bento Rodrigues suspeitam que a empresa esteja priorizando o salvamento de sua imagem institucional em detrimento das vidas humanas e dos animais, atropelados pelo avanço medonho da lama.
“Por que é que estão nos impedindo de entrar em Bento Rodrigues? A gente poderia ajudar na localização e no resgate dos desaparecidos e dos animais, porque conhecemos como ninguém a região, sabemos lidar com o mato. O que é que eles estão querendo esconder?”, perguntava um grupo de moradores indignados com o fato de serem mantidos à força longe de seu bairro.
“Por que não permitem que pelo menos alguns de nós entrem, para ver o que está acontecendo?”
Neste sábado, o prefeito de Mariana, Duarte Júnior (PPS), confirmou que 28 pessoas encontram-se “desaparecidas” após o rompimento das barragens. Dessas, 13 são funcionários da Samarco e trabalhadores de prestadoras de serviço. Outros 15 desaparecidos são moradores de Bento Rodrigues, dos quais cinco são crianças.
O prefeito também reconheceu oficialmente uma segunda morte na tragédia. O corpo de um homem, ainda não identificado, foi encontrado no município de Rio Doce, a 100 km de Mariana, à beira de um rio, na lama. A primeira vítima reconhecida oficialmente foi um morador de Bento Rodrigues, que sofreu uma parada cardíaca ao ver o desastre.
Todas as vias de acesso ao subdistrito de Bento Rodrigues encontram-se fechadas. Só entra e sai quem tem carta de autorização. Dezenas de soldados da PM mineira guardam a estrada principal. A estradinha alternativa está intransitável, cenário caótico de argila, rochas, tocos de árvores e restos de vegetação espalhados. Ninguém passa por lá.
“A Samarco é acusada de um crime ambiental seríssimo, que pode ter causado dezenas de mortes, e é ela que ainda tem moral para cuidar da cena do crime? Que loucura é essa?”, reclama uma ativista ligada ao Movimento dos Atingidos por Barragens, quando um caminhão com gerador e luzes da Samarco ultrapassa tranquilamente a barreira policial que veda o ingresso dos moradores. (detalhe: na porta do caminhão, o logotipo da Samarco está tampado por um papel colado). Também camionetes e funcionários a serviço da empresa e devidamente autorizados por ela têm livre acesso ao local.
A Samarco emitiu uma nota oficial aos investidores internacionais apresentando suas supostas razões para proibir o acesso ao terreno sinistrado:
“Por razões de segurança, a Samarco reafirma a importância de não haver deslocamentos de pessoas no local do incidente, exceto das pessoas e equipes envolvidas no atendimento de emergência.”
Apenas a título de memória e, é claro, considerando a diferença de escala, durante as operações de busca e salvamento que se sucederam ao tsunami que varreu a Tailândia, em 2005, o trabalho corajoso e sem tréguas de centenas de voluntários, inclusive fazendo o resgate de corpos humanos e de animais e, foi imprescindível para que a desgraça não fosse ainda pior. Não se alegaram questões de segurança para impedir o trabalho da solidariedade.
“Como é possível que as vítimas sejam mantidas afastadas e o acusado entre e saia à vontade?”, pergunta Ângela, de 57 anos, que nasceu em Bento Rodrigues e agora vive em Catas Altas, vizinho, apontando para lugar nenhum, no vale entupido de lama. “Ali era a casa dos meus pais.” Só ela sabe onde.
Mas o que perturba mesmo os sobreviventes e faz aumentar a tensão na entrada de Bento Rodrigues é a movimentação de helicópteros da polícia, subindo e descendo da “zona quente”, como denominam os bombeiros a área central e mais perigosa da catástrofe.
Sem informações, proibidos de ver o que acontece no arraial, os moradores suspeitam que cadáveres humanos estejam sendo recolhidos do local e levados nas aeronaves para local ignorado. Duas testemunhas em Santa Rita Durão, localidade de Mariana que é passagem obrigatória para quem quer chegar a Bento Rodrigues, dizem ter visto viaturas do Instituto Médico Legal passando diante da delegacia em direção ao bairro sinistrado.
“Foram fazer o quê? A Defesa Civil não diz que um dos mortos oficiais foi encontrado longe e o outro já foi retirado no primeiro dia? Então, por que os carros funerários?”, indaga-se Maria do Rosário, funcionária em um comércio de alimentos.
Bombeiros civis, convocados para ajudar a impedir o acesso dos moradores ao arraial, confirmam a existência de muitos animais ainda vivos no local… Mas já registram a presença pesada da morte, que se anuncia pelo cheiro adocicado e repulsivo da carne em putrefação.
Eles saem extenuados do local, depois de ajudar a deter uma moradora que, embrenhada no mato, tentava romper o cerco policial para achar a avó, desaparecida desde a quinta-feira. Segundo os bombeiros, a moça estava com o rosto e braços lanhados pela vegetação fechada, e com lama quase até o pescoço, tentando chegar à casa da parente. Ela resistiu fortemente aos que tentavam impedi-la de fazer sua busca. “Mas conseguimos retirá-la”, disse Paulo César, bombeiro civil de Nova Lima. A reportagem perguntou a ele: “E a avó dela?” O socorrista respondeu: “Infelizmente, está morta. Não tem como. Ali, é só desolação.”
Mas a gente de Bento Rodrigues acha um crime deixar morrer no desespero do atolamento bois, vacas, cachorros, cavalos e galinhas –até passarinhos em gaiolas — que ainda sobrevivem no atoleiro.
E eles existem.
O passar monótono do tempo, sob sol forte e calor de 42ºC, sobe e desce de helicópteros, caminhões e camionetes entrando e saindo, nenhuma notícia, só é interrompido quando se ouve o grito: “Imprensa! Vem correndo! Aqui!”
Descendo uma pirambeira, logo se vê um grupo de moradores trazendo machucada, mas viva, uma cadela grandalhona, pelo marrom, vira-lata, deitada em um catre feito com dois paus e um lençol marrom que já foi branco. “Ela estava enfiada metade do corpo na lama”. Os homens que a carregavam conheciam o bicho. Era do açougueiro Agnaldo, que havia passado a manhã tentando entrar em Bento Rodrigues para reaver o animal. Proibiram-lhe.
“Tinha essa cachorra viva, podendo ser resgatada. Já vimos uma égua, que também está viva, enfiada até o pescoço na lama. Pode ter gente sofrendo, ainda viva, que foi arrastada pela lama pra longe”, angustia-se um dos salvadores da cadela.
“Avisamos os bombeiros sobre a égua, mas eles nos disseram que não poderiam salvá-la, porque não dispunham de corda para puxá-la. É preciso correr com a ajuda, agora que o barro começou a secar. No entanto, não se viu uma só vez aquelas gaiolas penduradas nos helicópteros, ajudando nas buscas”.
Foi à tarde que os heróis anônimos conseguiram burlar a segurança e esgueirar-se pela margens do mar de lama, onde encontraram a cadela machucada. Também encontraram um crucifixo de ouro de um metro de altura, que adornava o altar da igreja de São Bento, a igreja de Bento Rodrigues
Entregue pelos homens humildes (Neimar, Leléu, Lilico, Jerry, pedreiros e mecânicos) à polícia, o crucifixo foi levado de camburão para o quartel da polícia militar de Ouro Preto. “Ficará lá à disposição das autoridades eclesiásticas”, disse o tenente Welby. Da igreja branquinha não se vê mais nem sinal. As mangueiras em torno dela estão lá ainda.
O tenente Welby passava instruções ao soldado no posto de Santa Rita Durão: para este domingo, a zona quente seria ampliada e a barreira policial seria implantada bem antes, como forma de impedir os moradores de fazer seus resgates e salvamentos. E de ver o que se quer manter invisível.
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Foto: Gustavo Ferreira / Jornalistas Livres