Eleonora de Paula, Funai
Os discursos na língua materna mostraram a realidade dos povos indígenas do Vale do Javari, estado do Amazonas, na abertura da Etapa Regional realizada no município de Atalaia do Norte, na última quinta-feira (29). São 101 delegados indígenas, representando os povos Marubo, Matís, Mayoruna, Kulina, Kanamari e Madja, que esperam ser ouvidos e conhecidos, contribuindo para a construção de políticas públicas voltadas para a realidade em que vivem. Além desses povos, vivem na região indígenas em isolamento voluntário, como os Korubo, conhecidos como “caceteiros”.
A preocupação com as ameaças aos direitos conquistados permeou a fala das lideranças, assim como a preocupação com o enfraquecimento do Órgão Indigenista. Mesmo sem o domínio do português, e tendo suas falas traduzidas de imediato por intérpretes, eles mostraram sua insatisfação com a política indigenista das diversas instituições que atuam na região e ressaltaram não admitir a exploração dos recursos de seus territórios: “eles não conhecem a origem da terra, dos rios e dos animais, não foi o governo que fez a terra”, desabafou o cacique Arnaldo Marubo.
Eriverto Vargas Marubo, Coordenador da Frente Etnoambiental Vale do Javari, fez um alerta aos participantes, chamando a atenção para a oportunidade, apresentada pela Conferência para se fazer propostas e tirar dúvidas, ressaltando, ainda, a disposição dele próprio e de outras lideranças do movimento indígena, como Clóvis e Darcy Marubo, em contribuir na elaboração dessas propostas. Ressaltou o desmonte por que passou a Funai e finalizou conclamando a todos para mobilizarem a força que têm de reagir.
A representante do Ministério da Justiça, Teresinha Maglia, fez uma breve retrospectiva sobre a criação da Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI, por meio da qual foi apresentada à Presidenta Dilma Rousseff a demanda dos povos indígenas de que fosse realizada a Conferência e cujos membros fazem parte da Comissão Organizadora Nacional. Para o Coordenador Regional da Funai, Bruno Pereira, a política indigenista precisa melhorar, de forma a refletir o olhar indígena. “A política indigenista passa pelos municípios, estados e governo federal e deve mostrar como ter saúde e educação diferenciada; como ter essa relação é o foco dessa Conferência. Essa é a hora de escutar os povos indígenas”, concluiu.
A servidora Carolina Santana, representante do Presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, leu nota emitida pela Funai sobre o Projeto de Emenda à Constituição – PEC 215, que trata sobre mudanças nos procedimentos de regularização das terras indígenas. Afirmou, ainda, ser o momento de se repudiar as manobras dos parlamentares para retirar os direitos dos povos indígenas garantidos na Constituição de 1988, inclusive considerando o direito à consulta estabelecido pela Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, da qual o Brasil é signatário.
A preocupação com a proteção dos povos indígenas isolados da região do Vale do Javari foi uma das propostas aprovadas no documento final da Etapa Regional, para que o Estado respeite a territorialidade e garanta a demarcação e a proteção das terras dos povos indígenas isolados, com objetivo de manter a vida tradicional desses povos.
O pedido de inclusão de áreas onde há indígenas isolados, criação e estruturação de bases de vigilância para frear a entrada de garimpeiros e madeireiros é a extensão da inquietação da plenária formada por diferentes povos, que há poucas décadas estavam na mesma situação dos isolados de hoje.
A linha do tempo, metodologia utilizada na Conferência, mostra a história dos Matsé, Kulina, Kanamari, Mayuruna, Marubo, Deni e Madjha, contadas por eles, e que não constam nos livros didáticos. São expulsões de terras tradicionais, exploração e escravidão por “patrões”, ataques de madeireiros, chegada do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, de missionários, da FUNAI e de organizações indigenistas, além de vários conflitos interétnicos, responsáveis por deslocamentos para o Peru, que faz fronteira com o Brasil nessa região.
A organização do movimento indígena é assinalada com a criação da Civaja – Coordenação Indígena do Vale do Javari, e com ela o surgimento de jovens lideranças, algumas delas assumindo cargos na saúde, e organizações indígenas regionais como a Coiab – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Essa militância teve papel importante na demarcação das Terras Indígenas da Amazônia, e as propostas dessa Etapa Regional refletem a importância de assegurar os Direitos Indígenas conquistados na Constituição de 1988, sobretudo, os direitos territoriais.
“Que a União reconheça o direito de posse da terra dos indígenas e seu usufruto, impedindo o acesso às riquezas do subsolo tanto pelos indígenas quanto pela União, tornando-as intocáveis.” Os delegados propõem ainda o fortalecimento do órgão indigenista, o poder de polícia, o cumprimento da Convenção 169 e respeito às decisões de veto ou aceitação de implantação de projetos desenvolvimentistas dentro de seus territórios.
No eixo sobre autodeterminação, aprovaram a proposta para que Estado não reconheça aqueles indivíduos que se autodeclaram indígenas sem a anuência dos povos indígenas a quem se dizem pertencer, reforçando com essa outra proposta: “Que o governo e os órgãos governamentais não reconheçam e não validem consultas prévias feitas a indígenas que se autodenominam representantes dos povos fora da área, salvo as organizações e que apresente documento e assinaturas dos membros das comunidades tornando-os representantes legais do povo”.
A discussão das propostas foi até a noite de sábado (31), com a eleição dos 101 delegados que, em Brasília, se unirão aos outros delegados indígenas de todo país, mostrando a diversidade de povos e suas realidades.
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Imagem: Eleonora de Paula/Funai.