Um dos militares envolvidos em crime, ocorrido em novembro de 2008, também é investigado desde o mês passado sob a suspeita de ajudar sargento da Polícia Militar a torturar um acusado de roubo com choques e com uma faca. Após prisão de sargento, clima de tensão entre policiais civis e militares aumentou no Estado de São Paulo
André Caramante – Ponte
Pela terceira vez em sete anos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tentará promover o julgamento dos seis policiais militares acusados pelo Ministério Público, Corregedoria da PM e Polícia Civil de terem matado um jovem de 18 anos ao obrigá-lo a beber lança-perfume.
O julgamento dos seis PMs, de acordo com a juíza Liza Livingston, está marcado para começar às 12h30 desta terça-feira (3/11), no 4º Tribunal do Júri, no Fórum Criminal da Barra Funda, zona oeste de São Paulo.
Em março de 2012 e em julho deste ano, o julgamento dos PMs Carlos Dias Malheiro, 43 anos, Jorge Pereira dos Santos, 49, Rafael Vieira Júnior, 34, Edmar Luiz da Silva Marte, 33, Rogério Monteiro da Silva, 33, e Cláudio Bonifazi Neto, 36, foi adiado porque testemunhas não compareceram.
Desde a morte do estudante Marcos Paulo Lopes de Souza, na madrugada de 10 de novembro de 2008, na Cohab (Conjunto Habitacional) José Bonifácio, região de Itaquera, zona leste de São Paulo,todos os PMs réus no processo pela morte do jovem foram promovidos de cargo na PM.
Carlos Malheiro subiu do posto de tenente para o de capitão, Jorge Santos foi de 3º para 1º sargento, Rafael Júnior, Edmar Marte, Rogério Silva e Cláudio Neto eram soldados e foram promovidos a cabo. Todos continuam trabalhando normalmente nas ruas de São Paulo.
Em outubro deste ano, o cabo Cláudio Bonifazi Neto também passou a ser investigado pela Polícia Civil e pela Corregedoria da PM sob a suspeita de participar de uma sessão de tortura contra um homem preso por roubo.
O episódio terminou com a prisão em flagrante do sargento Charles Ogata, 41 anos, companheiro de trabalho do cabo Cláudio Neto, e acirrou uma disputa entre integrantes das polícias Civil e Militar no Estado de SP.
Segundo Afonso de Carvalho Oliveira Trudes, 23 anos, o homem preso pela equipe dos dois PMs, o sargento Ogata utilizou uma faca entregue a ele pelo cabo Cláudio Neto para ameaçá-lo de morte. Trudes também afirmou à Polícia Civil que o sargento Ogata lhe deu choques pelo corpo.
Três dias após sua prisão, o sargento Ogata foi libertado do Presídio Militar Romão Gomes por ordem da Justiça.
A morte de Marcos Paulo
O estudante Marcos Paulo e um amigo, J.R.L., à época com 19 anos, cheiravam lança-perfume, por volta das 23h30 de 9 de novembro de 2008, quando foram abordados pelo grupo de policiais militares que patrulhavam a região da Cohab José Bonifácio.
Em seus depoimentos à Corregedoria da PM e à Polícia Civil, J. disse que os PMs questionavam ele e Marcos Paulo para saber se os dois eram traficantes. Marcos e J. negaram envolvimento com o tráfico de drogas, mas admitiram que haviam acabo de cheirar lança-perfume e que tinham uma pequena porção de maconha para fumar.
Depois que J. e Marcos Paulo admitiram o uso do lança-perfume, um dos PMs, narrou J. aos investigadores, obrigou os dois rapazes a comer a porção de maconha que estaria no bolso de Marcos Paulo. Outro militar buscou frascos da droga, todos enrolados em uma meia, os abriu e mandou que ele e Marcos Paulo ingerissem a droga.
Os dois jovens se recusaram a beber o lança-perfume e pediram para serem presos pelos militares, mas um dos PMs teria dito, segundo J.:
“Vocês acham mesmo que queremos levar alguém preso? Se não beber, vão morrer”. Na sequência, um PM bateu com uma arma no peito dos dois jovens. Com a ameaça, J. e Marcos Paulo beberam o lança-perfume.
J. disse ter conseguido cuspir parte do lança-perfume, mas o amigo Marcos Paulo começou a passar mal logo após a ingestão da droga. J. contou aos investigadores que um dos PMs ameaçava seu amigo: “Se vomitar vai ter que ter que lamber”.
Enquanto Marcos Paulo tentava evitar o vômito, ele e o amigo J. foram atingidos por um jato de gás de pimenta no rosto e os militares mandaram que os dois jovens saíssem correndo.
Marcos Paulo ainda deixou seu documento na mão de um dos PMs e, ao ser alertado pelo militar, voltou para buscá-lo. Instantes depois de pegar o documento, o estudante caiu na calçada, convulsionando. Levado para um hospital, Marcos Paulo morreu.
Composto por éter, cloreto de etila, clorofórmio e essência perfumada, o lança-perfume é uma droga usada por jovens que buscam sensação de entorpecimento. Caso ingerido, como Promotoria, Corregedoria da PM e Polícia Civil acreditam que aconteceu com Marcos Paulo, o lança-perfume pode acelerar a frequência cardíaca e, somado a um grande esforço físico, como correr, seus efeitos são potencializados .
A abordagem de Marcos Paulo e J. aconteceu perto do 103º DP (Itaquera/Cohab José Bonifácio), a mesma delegacia que, em 20 de outubro deste ano, foi cercada por PMs quando o sargento Ogata foi preso por tortura e o cabo Cláudio Neto passou a ser investigado sob a suspeita de tê-lo ajudado.
Uma testemunha que deverá ser ouvida no julgamento desta terça-feira viu quando Marcos Paulo e J. foram abordados pelos PMs. Ela viu quando Marcos Paulo corria pela rua, em desespero, e gritava que os militares haviam o obrigado a beber lança-perfume.
Essa mesma testemunha foi ameaçada de morte por um dos PMs envolvidos na abordagem de Marcos Paulo e J. A ameaça aconteceu quando ela era levada pelo militar para ser ouvida no batalhão onde todos os réus pela morte do estudante trabalhavam à época.
Para o promotor Fábio Rodrigues Goulart, foram os militares Rafael Júnior e Edmar Marte os responsáveis por obrigar Marcos Paulo e J. a ingerirem lança-perfume, isso depois de bater com suas armas no peito dos rapazes.
O capitão Malheiro, de acordo com o promotor, foi quem lançou o jato de gás pimenta nos dois jovens, antes que ambos fossem obrigados a correr do local onde haviam sido abordados.
“Os militares Carlos Dias Malheiro, Jorge Pereira dos Santos, Cláudio Bonifazi Neto e Rogério Monteiro da Silva que a tudo assistiam, nada fizeram para impedir a ação criminosa dos autores [Rafael Júnior e Edmar Marte], colegas de corporação, quando deviam e podiam agir para evitar os resultados criminosos acima descritos, sendo esta omissão penalmente relevante”, afirmou o promotor Goulart.
“PMs me deram a mão”
Horas depois da morte de Marcos Paulo, a mãe do rapaz, Leilamar Ribeiro Lopes, 45 anos, encontrou com dois dos seis PMs que deverão ser julgados hoje pela morte de seu filho.
“Eles [o capitão Malheiro e o cabo Edmar Marte] me estenderam a mão e, ao me cumprimentar, se disseram sentidos pela morte do meu filho. Dá para acreditar em uma coisa dessas? Até então eu não sabia que eles estavam envolvidos na morte do meu filho”, disse a mãe de Marcos Paulo.
Após o julgamento dos seis PMs ter sido adiado duas vezes, Leilamar se diz que sofre com a falta de conclusão para a morte do filho. “Eu só quero mesmo que eles sejam julgados. Se for para condenar ou não, que seja logo. Há sete anos, vivo com essa falta de esperança dentro de mim”.
“Sei que as pessoas que participarão do julgamento têm medo porque eles são todos policiais militares, mas é preciso pensar que isso pode acontecer com a família de qualquer um amanhã”, afirmou a mãe.
A reportagem procurou a defesa dos seis PMs réus pela morte de Marcos Paulo nesta segunda-feira (02/11), mas não obteve sucesso.
Em seus depoimentos, os militares Rafael Júnior e Edmar Marte sempre negaram que obrigaram Marcos Paulo e J. a ingerir lança-perfume e a comer maconha. Os companheiros dos militares, Carlos Dias Malheiro, Jorge Pereira dos Santos, Rogério Monteiro da Silva e Cláudio Bonifazi Neto, também negam o crime contra os dois jovens.
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Foto: Marcos Paulo Lopes de Souza tinha 18 anos quando, em novembro de 2008, morreu após ter sido obrigado por PMs a beber lança-perfume, segundo a Promotoria | Arquivo da Família