Por Cris Faustino
Porque compartilhar é preciso, necessário e ajuda a sobreviver.
Hoje, 24 de setembro/2015, desembarquei por volta de 8:30 (voo 4764 da TAM. Noite inteira de viagem) no Aeroporto Internacional Pinto Martins em Fortaleza. Retornava de Manaus, de um encontro com algumas das minhas companheiras da Articulação de Mulheres Brasileiras. O desembarque doméstico estava interditado e os passageiros seguiram pelo desembarque internacional. Eu não havia embarcado bagagem, pois como era viagem rápida, levei poucas coisas e sinto muita satisfação em não ter que ficar esperando malas na esteira. Que fácil estava a vida naquele momento de cansaço.
Porém fui retida na porta de saída pela Polícia Federal: um policial me fez uma série de perguntas, de onde eu vinha, o que fui fazer lá, e para onde eu ia agora. Respondi todas, numa boa. Ele me pediu documento e solicitou que eu aguardasse ao lado. Perguntei o que estava havendo, ele, relutante, disse que era uma operação da Polícia Federal. Perguntei se podia ir ao banheiro, ele e outro, ao que parece, subalterno, não permitiram. Tudo bem. E com aquela sensação desconfiada de racismo, imaginei mais ou menos: ‘de rotina’. Ok. Segura a onda.
O meu voo estava lotado. No entanto notei que em meio a muitas outras pessoas, somente eu havia ficado retida. Eles perguntavam qualquer coisa para as outras e as liberavam. Sou feminista militante com cara misturada de negra e índia, luto todos os dias e muito veementemente contra o racismo. Conheço essa chaga, essa desgraça humana, não só na minha vida, mas na de todas as pessoas iguais a mim, com quem convivo, ou não. Minha consciência negra, então não pôde se conter, e perguntei para um dos policiais (o subalterno, que estava mais próximo): por que somente eu estou retida? Ele disse que eu deveria perguntar ao outro, o que havia me abordado primeiro, que era o chefe da operação, ou sei lá que diabo de patente racista esse senhor representa.
O fato é que perguntei ao tal sujeito, por que só eu estava retida. Ele então me respondeu o seguinte: que eu tinha que estudar muito, fazer um concurso para polícia, pra eu saber porque estava retida! Eu fiquei em choque, e o que pude dizer pra ele, já bastante nervosa e irônica, foi o seguinte: é muita cidadania que eu mereço de sua parte! Ele fingiu que não ouviu. Mas ouviu, eu sei que ouviu porque eu disse exatamente para ele ouvir e olhando em sua cara. E sei que ele sabe o que eu estava dizendo.
Fiquei aturdida, liguei pra uma companheira de trabalho e relatei o fato, falando em voz alta e emitindo meu ponto de vista, para que, de alguma forma, eles soubessem, que eu sabia exatamente o que se passava: entre todas as aquelas pessoas, ‘brancas, lindas e arrumadas’, eu era a única suspeita, com minhas roupas coloridas, meu cabelo preso num penacho indígena, minha pele preta e meu jeito, certamente de ‘pobre’, não dona de drogas, mas ‘avião’ ou ‘mula’! Porque eles sabem exatamente a quem de fato pertencem as drogas ilícitas. Fiquei ligando para algumas pessoas, enquanto o tal chefe, ou sei lá o que, racista da polícia me rodeava, falando ao telefone. Eu queria que eles soubessem que eu não estava com medo deles! Que eu sabia que o fundamento do procedimento deles é racista, racista, muito racista, racista até a última ponta! Aquelas pessoas não têm nada pessoal contra mim, na verdade é provável que eles nem me considerem pessoa, e aí é que está o ponto.
Depois de me ‘amornar’, eu pensava que seria liberada, mas não. Eles me levaram numa sala e fizeram a revista vexatória, aquela a qual as mulheres negras são subtidas nas unidades prisionais. Posso dizer que já passei por centenas de situações racistas manifestas, mas nunca havia experimentado tamanho constrangimento e humilhação! Tudo era quase inacreditável, não fosse eu quem sou, e eles que são, nos lugares que ocupamos! Gritei muito, dizendo todas as coisas que vinham na minha cabeça dominada pela indignação: instituição racista! Polícia racista! Por que não revistam brancos, arrumadinhos e ricos? Que eu sou militante de direitos humanos, que sei da realidade da população negra e indígena. Que eles não têm vergonha de serem racistas e tudo o mais… na tensão do momento, nem me lembro quantas palavras e frases consegui elaborar! Imagino que toda raiva histórica, da escravização aos presídios, tomou conta de mim! Descontrolei. Não estava disposta a ser razoável, nem com todos os riscos que corria. Os policiais subalternos estavam entre constrangidos e robóticos! A policial que me fez a revista, em sua imensa branquitude, acho que nunca tinha visto uma preta com raiva. No fim da revista, perguntei entre ódio, ironia e voz alta, olhando bem para ela: cadê o flagrante?
Ela e nenhum deles não tinham sequer a decência de me olhar na cara!
Um quarto policial revistou, sem muita segurança, notei, minhas bolsas! Nesse ínterim eu disse pra ele, quase numa boa, que pessoas brancas também traficam e são donas das drogas. Ele, que é branco, disse que não era racismo, que eles revistavam até alemães e que ele mesmo tinha sangue negro. Inocente? Perverso? Ridículo? Ou simples mal informado? Não sei, mas disse que ele poderia até ter sangue negro, mas eu tinha a pele preta e sabia exatamente o que tudo isso significava.
Saí chorando e sofrendo muito, não só por mim, mas por todas as pessoas negras que diuturnamente são humilhadas e destratadas: pelas mulheres, pelos homens, adolescentes e crianças, que diferente de mim, sequer têm forças para gritar a violência praticada pela instituição policial, uma personificação do racismo brasileiro. Nessas horas de racismo manifesto, que é uma representação também da vida cotidiana e das estruturas de desigualdades e discriminações, é como se toda essa gente estivesse representada em cada um de nós que sofremos. Isso não é indiferente na composição de nosso ser e das nossas vontades profundas, e talvez nem precisem ser politizadas para dar o troco.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Janete Melo.
Fico indignada com racismo. Na minha vida de professora universitária convivi com várias pessoas negras e conheci histórias constrangedoras. Estou com um projeto de filme documentário que vai tratar sobre este tema, mas preciso do apoio para realizá-lo.
Segundo uma militante do movimento de direitos humanos aqui no Ceará, o fato de não ser negra e pretender fazer um filme sobre preconceito racial, poderá não ser bem aceito pelo movimento negro. Sei que ela está equivocada, pois mantive contatos com algumas pessoas negras e elas estão receptivas para participar do documentário As cores de todos nós.