Em entrevista ao Brasil de Fato, Daiara Tukano fala sobre a miséria e as ameaças sofridas dentro dos territórios em que os Guarani-Kaiowás vivem e sobre a articulação dos proprietários de terra no Congresso.
Por Camilla Hoshino, De Curitiba (PR), no Brasil de Fato
Um depoimento gravado pela militante indígena Daiara Tukano ganhou repercussão nas redes sociais, na última semana. O vídeo fazia um apelo aos movimentos sociais e ativistas para que se unissem à luta contra o massacre do povo Guarani-Kaiowá, vítima da disputa por terras no município de Antônio João, no Mato Grosso do Sul (MS).
Daiara é indígena do povo Tukano, formada em artes pela Universidade de Brasília, mestranda em direitos humanos, educadora, artista e militante indígena e feminista.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ela fala sobre a miséria e as ameaças sofridas dentro dos territórios em que os Guarani-Kaiowás vivem, sobre a articulação dos proprietários de terra no Congresso e a dificuldade na mediação de conflitos ligados à demarcação de terras indígenas.
“Nós somos as vítimas do maior genocídio da humanidade”, denuncia a militante, relembrando as práticas de ocupação e colonização no continente americano.
Brasil de Fato- Na semana passada, um vídeo publicado por você nas redes sociais denunciando o ataque dos fazendeiros aos Guarani-Kaiowás no Mato Grosso do Sul foi amplamente compartilhado. Ele surtiu efeito?
Daiara Tukano – O vídeo que eu fiz foi um desabafo e acredito que tenha incomodado. Não retiro a minha opinião. Ali eu disse que ‘qualquer pessoa que acha que levanta uma bandeira pedindo democracia e o fim da violência, precisa abraçar a causa indígena. Caso contrário, ela estará marchando em cima do nosso sangue’. E de repende o vídeo viralizou de uma forma muito louca e as respostas estão aparecendo. Temos recebido o apoio de vários coletivos de mulheres, coletivos negros, LGBT, trans e de trabalhadores. Precisamos nos reunir todos, não apenas em favor da causa indígena, mas nos articular muito bem, pois estamos em um momento político onde há ameaças de retrocesso. A movimentação que acontece hoje no Congresso é muito bem articulada, principalmente pela bancada “BBB” [boi, bíblia e bala] que consegue aprovar diversas propostas. A frente parlamentar que ainda defende a democracia neste país está muito reduzida.
Sobre o conflito naquela região, qual é a situação do território reivindicado hoje pelos Guarani-Kaiowás?
Os Guarani-Kaiowás tiveram esta terra homologada em 2005 pelo Presidente da República, na época o Luiz Inácio Lula da Silva. No mesmo ano, uma articulação de proprietários de terra pressionou o Supremo Tribunal Federal para que o então ministro Nelson Jobim retrocedesse na decisão final. Isso gerou um conflito legal, pois segundo a Constituição o único poder que tem autoridade para a demarcação o dos territórios indígenas é o Executivo. O território homologado tinha mais ou menos 9.317 hectares e de repente os indígenas foram colocados em 2 hectares somente, sem água, sem terra fértil e sem possibilidade de plantio. Foi um golpe do Judiciário na decisão presidencial. Vimos a ação do Ministério Público Federal retirar os indígenas da terra que havia sido aprovada no mesmo ano- depois de anos de luta-, e jogá-los abandonados na beira da estrada, em uma situação de miséria.
Ouvimos a todo o momento muitos relatos de que a retirada das terras dos indígenas acaba afetando as tradições, a saúde e a própria vida desses povos. Você pode descrever melhor esta situação de miséria em que vivem?
Miséria é miséria. Isso quer dizer que eles sofrem ameaça física constante, violência psicológica, violência moral e violência patrimonial o tempo inteiro. Os pistoleiros- pagos pelos fazendeiros-, são criminosos convictos. Eles andam pelas terras e matam livremente. Enquanto isso os indígenas são obrigados a morar em barracos de lona de plástico, passando frio, enfrentando geadas e sem água para beber. Os fazendeiros fazem questão de envenenar as fontes de água próximas, jogando detrito tóxico. Ou então passam com os aviões de agrotóxico em cima dos barracos e das crianças.
Índice de mortes
Como não vão existir problemas de saúde em uma situação dessas, onde existe um estado de miséria que é provocado de maneira intencional e criminosa? O número de óbitos de crianças e idosos, por exemplo, causado por intoxicação, é decorrente desse tipo de ataque. Da mesma forma que temos um número de suicídios que é decorrente dos ataques psicológicos, inclusive físicos. Há mulheres da região que foram estupradas e após o estupro se suicidaram. Isto consta nos relatórios do Conselho Indigenista Missionário, está nos relatórios da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do Sendo Federal e também consta nos relatórios que foram parar no STF e na ONU. E mesmo assim o Estado continua sem conseguir mediar o conflito, porque quem comanda o Brasil são os latifundiários.
Você acredita que a saída para este conflito passe por qual tipo de mediação?
É uma incógnita, mas existem algumas tentativas que estão sendo feitas. Tenho muitas ressalvas, mas agora conseguiram aprovar no Senado Federal a PEC 71, que determina o pagamento de indenização aos proprietários de terra. E é claro que não é possível unicamente demonizar estes pioneiros que foram colonizar a terra dos estados de fronteira, pois lá existem famílias e trabalhadores. O problema são as práticas que os acompanham. São gerações que sofrem incessantemente com a violência. E sempre vemos vídeos dos netos de fazendeiros dizendo ‘meu avô chegou aqui há 80 anos’, clamando seu direito a terra. Mas eu conheço avôs indígenas de mais de 100 anos que viram seus pais serem expulsos das terras, que foram expulsos quando crianças, que enterraram seus filhos e netos, que tiveram suas filhas estupradas, que tiveram parte da família que se suicidou e outra que adoeceu devido à violência e que nunca serão indenizados por isso. Essas pessoas resistem orando, fazendo seus cantos sagrados para que seu povo sobreviva. Desse modo, é impossível negar que hoje exista um genocídio indígena.
E sobre o tema do conflito cultural?
O fazendeiro e o indígena têm relações diferentes com a terra. Enquanto que para o fazendeiro a terra é produção, dinheiro e pedaço de chão, para o indígena a terra é espírito, cultura, família, raiz e identidade. Então, é necessário mediar o conflito entre esses dois entendimentos de o que significa a terra. Enquanto um vê a terra apenas como algo a ser explorado, a cultura indígena vê a terra como algo a ser reverenciado, protegido, cultuado e preservado. E é complicado encontrar pontes de diálogo entre duas culturas com valores diferentes. Vale a pena reafirmar que quando há demarcação de um território, ele não se torna propriedade de um povo indígena e sim da União. Ele é propriedade do Brasil, de todos nós. E ali acontece a preservação dos recursos naturais conjugada com a proteção de um patrimônio cultural enorme que são nossos povos indígenas.
Você mencionou a PEC 71, mas também existe nesse momento uma pressão da bancada ruralista para votar a PEC 215. Como esta proposta pode afetar ainda mais os direitos indígenas?
A PEC 215 é totalmente anticonstitucional. Ela quer passar do Executivo para o Legislativo o poder de determinação sobre as terras indígenas. Mas o Legislativo demonstra diariamente não ter conhecimento do quão complexo é o relacionamento indígena com a sua terra de origem, além de subjulgar o jogo de poder dos grandes proprietários, dos grandes industriais, das grandes mídias e das grandes multinacionais. Ou seja, não são pessoas que estão em uma posição de autonomia política para poder se dar o trabalho de estudar a vivência dos envolvidos em uma situação de demarcação de terras. Essas pessoas têm um financiamento declarado e vão trabalhar a favor do interesse de seus partidos e de seus financiadores, justamente aqueles que não querem ver o indígena morando na sua terra e que atualmente estão numa campanha escrachada de ódio contra os povos originários. Tem até gente dizendo que queremos tomar Copacabana de volta. Isto é uma completa alucinação coletiva. Além disso, a PEC 215 está se tornando um amontoado de várias propostas que atravessam questões já garantidas pela Constituição e por tratados internacionais, como o direito à consulta, o direito à autodemarcação e o direito à autoidentificação. Uma PEC adiciona coisas e não anula aquilo que já está garantido.
Marco temporal
Outro ponto é que estão tentando incluir o marco temporal nessa proposta de texto final que foi apresentada na semana passada. O marco temporal foi uma artimanha criada pela AGU [Advocacia-Geral da União] para fazer de conta que não existe genocídio e que os únicos territórios a ser demarcados são aquele que têm ocupação permanente desde, pelo menos, 1988. Mas as práticas de genocídio são constantes desde a descoberta do Brasil e, obviamente, existe um êxodo indígena, que é o êxodo pela sobrevivência. Se você está em sua casa e chega alguém que arromba a sua porta, mata seu pai, estupra a sua mãe e diz que também vai te matar, o que você faz? Você corre. E isso é a realidade da maioria das populações indígenas do Brasil, principalmente daquelas que ainda não estão em território demarcado. É o caso dos povos do sul, do sudeste e do centro-oeste, que são justamente os povos que estão fora do território considerado Amazônia Legal.
Como você avalia as ações por parte do Estado? Ainda existe a perspectiva da tutela?
Nossa constituição democrática derrubou isso em 1988. O índio não é mais considerado incapaz. Temos direito a votar, a casar, à cidadania, entre outras coisas. O que temos hoje são atendimentos adequados às especificidades da diversidade cultural dos povos originários. O indígena tem como língua materna sua língua originária. Para preservar a sua cultura ele precisa de uma educação diferenciada e para ter um atendimento médico de qualidade ele vai precisar de atendimento diferenciado. Ele fala outra língua, mas não é um estrangeiro, pois está em sua terra. Permitir que essa cultura morra é um crime enorme. Não podemos achar que os povos originários devam adotar a cultura do colonizador para sobreviver.
Além dos Guarani-Kaiowás, quais outras etnias estão ameaçadas no Brasil?
O genocídio indígena é generalizado. No Mato Grosso do Sul também há os Terena que sofrem o mesmo tipo de perseguição e violência. No Brasil também é muito simbólica a luta dos Mundurukus, que estão resistindo a Belo Monte. Os Kariri Xocós no nordeste enfrentam um dos genocídios mais violentos que existem e eles resistem até hoje. Tem os Maxakali que, apenas no ano passado, foram vítimas de 100 assassinatos. A gente está dando apoio nesse momento à luta Guarani-Kaiowá, porque consideramos que ela é extremamente simbólica. Nos consideramos todos uma família, por isso é importante que essa luta seja vencida para que todas as outras também possam ser. Nós fazemos parte da construção do país, da identidade nacional, do patrimônio cultural, do patrimônio humano vivo e se quiserem nos matar, nós iremos enfrentá-los. Se retomarmos a história do nosso continente veremos que nós somos as vítimas do maior genocídio da humanidade. E essas práticas são incessantes, institucionais, categóricas e cotidianas.
E o que pode ser feito pela sociedade civil e movimentos solidários à causa indígena para ajudar essas lutas?
Nosso grande desafio há dezenas de anos continua sendo a questão da visibilidade. Os movimentos sociais são oprimidos quando são invisibilizados. As pessoas se comovem com as situações fora do território nacional- e, realmente, não é uma coisa pequena, porque os conflitos no Oriente Médio são realmente desastrosos e horríveis-, mas não podemos fechar os olhos para situações semelhantes que acontecem no Brasil. O que pode ser feito é dar visibilidade aos nossos problemas internos, pois ainda existem coisas que estão ao alcance de nossas mãos e outras que não estão. Nós devemos conhecer melhor a história da formação do nosso país, revisar a nossa própria história e identidade para podermos nos orgulhar da nossa raiz indígena.