Por O Indigenista
A Terra Indígena Guarani Mato Preto, nos municípios de Erechim, Erebango e Getúlio Vargas, no Rio Grande do Sul, com 4.230 ha, já com Portaria Declaratória desde 2012, foi ameaçada na Justiça Federal por decisão em 1a instância por Ação Popular 5004427-72.2012.4.04.7117 pediu a suspensão da demarcação da TI pela Funai.
A decisão apreciou os autos que vão desde acusações de que a Antropóloga responsável pelo Relatório de Identificação “seria amiga de uma das indígenas”, e que também teria usado “alucinógenos para identificar a terra”, entre outros absurdos. Estas acusações foram rechaçadas pelo juiz que as considerou irrelevantes, e se atentou aos pontos referentes às definições do que seja “terra indígena tradicional” e o “marco temporal” para se reconhecer a presença indígena.
Na mediação dos conflitos advindos da demarcação das terras indígenas, e exercendo a jurisdição constitucional que lhe compete, o STF estabeleceu importantes balizamentos para a solução desses litígios, a saber:
a) o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto, conforme o enunciado da Súmula 650/STF que dispõe “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”, o que constitui importante vetor interpretativo, ainda que a referida Súmula tenha sido editada no contexto de análise do interesse jurídico na União em ações de usucapião de terras em aldeamentos extintos (RE 219.983).
b) o marco temporal para a definição de “terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas” é 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal de 1988,consoante decidido no julgamento da Petição n° 3.388/RR (caso “Raposa Serra do Sol”), de forma que deve ser considerada a ocupação tradicional da terra nesta data para a configuração ou não de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, restando, porém, expressamente ressalvado na ementa do acórdão de que “A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”.
A situação da Terra Indígena Mato Preto é completamente diferente das demais já julgadas pelo STF, cujos embasamentos foram usados para decisão do juiz.
Mato Preto foi declarada como área indígena pelo estado do Rio Grande do Sul com 223,635 hectares na década de 1920, área esta originada da discriminação da Floresta Protetora de Mato Preto que se encontrava ocupada por posseiros. Nomeada como Floresta de Mato Preto, a área foi dividida em 3 (três) polígonos, os “A” e “B” destinados à colonização (venda de lotes) e o polígono “B” destinados aos Guarani, conforme se infere do Ofício n° 133, datado de 20/08/1928, da Comissão de Terras e Colonização.
Na sequência, o governo do Rio Grande do Sul emitiu títulos para os colonos ocuparem os lotes afugentando os Guarani que ali estavam. Os Guarani são conhecidos pela peculiaridade de recusarem o conflito com não-indígenas, pois sua história já estava marcada pela Guerra Guaranítica (1750-1756), em que milhares deles foram assassinados pelos exércitos português e espanhol, e os sobreviventes se esconderam nas florestas, como é o caso da Floresta Mato Preto.
O estado do RS não concluiu a demarcação da área reservada na época, mas as famílias Guarani decidiram retornar em 2003 para retomar sua Terra Indígena. Esta situação é questionada pelos advogados ruralistas que acompanham o caso, contra os procuradores do MPF e da AGU.
Porém, o juízo questiona também a falta de “esbulho renitente”. O que isto quer dizer?
“Esbulho” é quando alguém que está em sua terra é impedida de ocupá-la, como é o caso de muitos indígenas ao longo da história da Améria.
“Renitente” é quando o fato é insistente, que não se conforma.
Assim, o STF define:
Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.
O que se pode concluir é que o judiciário, para dar causa à demarcação de qualquer Terras Indígenas após as posições do STF, deve ser uma área em que os indígenas ao serem expulsos de sua terra antes de 1988, tenham ido a um advogado na região e solicitado abertura de processo de reintegração de posse, mesmo que a área não tenha sido demarcada.
Esta situação exigida pelo STF simplesmente não existe!
Vemos o que ocorre hoje no caso da TI Ñanderu Marangatu, em Antônio João, MS, que após serem atacados pelos ruralistas que habitam a TI já homologada, os Guarani Kaiowá estão isolados, não conseguem nem ir na cidade comprar alimentos, e os pedidos de investigação dos assassinos do líder indígena ainda não foram feitos.
No caso Mato Preto o MPF de Erechim lançou nota sobre a decisão judicial.
“Em nota, o procurador da República em Erechim, Carlos Eduardo Raddatz Cruz, se manifesta sobre a decisão da 1ª Vara Federal de Erechim referente a demarcação da Terra Indígena de Mato Preto. Nas ponderações, o procurador destaca que o Ministério Público Federal em Erechim (MPF/RS) recorrerá da decisão.
Para saber mais sobre o entendimento do MPF em relação a demarcação de Mato Preto veja a íntegra do parecer emitido.
Leia abaixo a íntegra da nota divulgada nesta quinta-feira, 10 de setembro.
A íntegra da nota:
– A Procuradoria da República em Erechim, analisando o teor da sentença exarada nos autos da Ação Popular 5004427-72.2012.4.04.7117, que discute a demarcação da chamada Terra Indígena de Mato Preto, considera que foi ela lançada de forma bastante técnica e com argumentos bastante aprofundados sobre os fatos e sobre o direito constitucional vigente, tal como foi técnico o parecer lançado pelo Ministério Público Federal nos mesmos autos, embora tenha concluído em sentido contrário à decisão judicial.
– É importante consignar que o ponto de divergência do Ministério Público Federal em relação ao entendimento até então foi prevalente no âmbito do Poder Judiciário se resume à aplicabilidade ou não do chamado “marco temporal de 1988” e do que seja “esbulho renitente”, sendo que é posição do Ministério Público Federal que esses conceitos, se aplicáveis, devem ser sempre fixados tomando em conta o entendimento do grupo indígena, de modo que se faz necessária perícia antropológica para essas definições;
– Vale consignar, ainda, que a sentença, a qual repita-se, consideramos extremamente técnica e demonstra uma preocupação e sensibilidade do magistrado prolator com a questão, reconheceu em seus fundamentos a tradicionalidade da área, embora o grupo indígena não detivesse a sua posse em 1988, o que aliás, é incontroverso, como consignado na sentença.
– Em assim sendo, o Ministério Público Federal, na condição de fiscal da lei, e tendo em conta, ainda, que a conclusão da sentença divergiu do parecer lançado, manejará recurso discutindo esses pontos da sentença, discussão esta que envolve complexa questão jurídica.
– Também é válido destacar que enquanto não transitada em julgado a sentença, a portaria demarcatória resta hígida, muito embora a sentença tenha, em antecipação dos seus efeitos, sobrestado todo e qualquer ato tendente à ultimação dos atos de demarcação.
– Ademais, tal como tem acontecido e não foi diferente neste caso, o Ministério Público Federal confia que o Poder Judiciário continuará analisando a questão sempre sob o prisma técnico e com a seriedade e sensibilidade que o tema merece e exige.
– Por fim, impende registar que o Ministério Público Federal entende e é sensível à situação vivenciada pelas partes neste conflito – pequenos agricultores e indígenas –, ambos os grupos, em maior ou menor medida, em situação de vulnerabilidade social, de modo que seja qual for o resultado final da contenda, há que se encontrar solução que garanta o direito patrimonial dos não indígenas e o direito à terra aos índios, única forma de garantir o pleno exercício de seu direito fundamental a viver conforme seus usos, costumes e tradições.Carlos Eduardo Raddatz Cruz
Procurador da República em Erechim”