“Se pela lei de proteção aos animais o boi tem o direito de ser defendido contra maus tratos, não seria demais esperar-se da bancada representativa da economia nele sustentada no Congresso Nacional – já que o seu poder se mostra tão superior ao do Estado – dedicasse às/aos trabalhadoras/es mantidas/os em regime de escravidão, senão superior, o mesmo cuidado com que se dedica aos seus animais”, escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Se ainda pudesse sobreviver alguma dúvida sobre o poder da bancada congressual do boi frente ao Poder Executivo da União, ela se dissipa totalmente, com uma notícia recente da Agência Globo, publicada no dia 28 deste agosto:
“O Palácio do Planalto determinou a derrubada de um ato editado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que, entre outras medidas, estabelece regras para a desapropriação de terras nas quais autoridades flagrarem trabalhadores em condições análogas às de escravos, para que sejam transformadas em assentamentos rurais. Depois de ser pressionado pela bancada ruralista, o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, determinou à Advocacia-Geral da União (AGU) que conteste a Instrução Normativa 83/2015, publicada no início deste mês no Diário Oficial da União. A AGU deve se manifestar nos próximos dias. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) promete reagir caso o ato seja anulado.”
Quem acompanhou os trabalhos do Congresso Nacional para discutir e votar o projeto de emenda da nossa Constituição, prevendo punir a exploração do trabalho escravo, teve oportunidade de avaliar o poder da bancada do boi para tergiversar, explorar firulas de ordem regimental, atrapalhar e obstruir a sua votação. Mesmo incluída na Constituição, na forma atual do artigo 243, toda a discussão em torno de tema tão importante resultou em vitória dessa bancada, pois ela foi aprovada sem qualquer efeito prático. A redação da emenda deixou o trabalho escravo dependente de definição a ser feita por lei posterior.
A escravidão e a multidão de escravos que fiquem sofrendo das crueldades inerentes a um estado desumano e perverso, até que o Congresso defina isso, se um dia alcançar fazê-lo. É o que “normalmente” (?) acontece com toda a tentativa de se oferecer garantias de respeito à dignidade humana e a direitos humanos fundamentais sociais, quando se pretende sustenta-las em lei: é indispensável prorrogar qualquer proposta que, mesmo remotamente, coloque em risco quem tira proveito econômico dessa iniquidade.
Abolida a escravidão em 1888, ainda no tempo do império (!), dia 13 de maio de 2015 vão se completar 127 anos da chamada “lei áurea”. Pelo pelo menos no entendimento das/os parlamentares da bancada do boi, bem mais de um século ainda não foi tempo suficiente para se saber exatamente o que seja ausência de liberdade, subordinação de alguém à condição de escravo.
O Incra, uma autarquia praticamente abandonada pelo governo da União há anos, ousou dar sentido ao apelido dado à lei de libertação dos escravos. “Aurea”, é a cor do ouro, identificando a liberdade conquistada pelo povo negro como excelente, brilhante. A instrução normativa 83/2015, cumprindo o disposto na Constituição Federal e no Estatuto da Terra, tratou de sustentar a legalidade da fiscalização de onde, como e quando o trabalho escravo ainda existe aqui no Brasil, para poder, quem sabe, dar alguma sustentação jurídica ao referido artigo 243 da Constituição.
Quem seria capaz de imaginar como inconstitucional, ilegal, injusta, uma atividade administrativa como essa, projetada na dita Instrução? Alguém pode-se dizer a favor do trabalho escravo? – A bancada do boi parece achar que sim e, de acordo com a notícia, o próprio Ministro Mercadante também. Que o ouro da lei libertária fique apenas figurado como de liberdade. A bancada do boi acha mais conveniente ficar com o da pecúnia, o dinheiro do seu lucro, por sinal uma palavra que vem do latim: pecus, cuja tradução literal é gado.
Se algum latifundiário for flagrado explorando trabalho escravo, recomende-se às/aos escravas/os terem paciência com a manutenção desse regime, ele deve assim prosseguir pois a lei não definiu ainda o que até os bois sabem o que seja, pois são tratados por ele em muitas fazendas do país.
Para algumas conclusões a pressão da bancada do boi serviu: assim como já fez com quase todo o capítulo da Constituição Federal, relacionado com a reforma agrária, com quase todo o Estatuto da Terra, vai manter quem ela representa e estiver explorando trabalho escravo, continuar auferindo o nefando lucro extraído do trabalho servil, em prefeita tranquilidade e segurança; depois vai provar a cumplicidade – outra palavra não cabe – do governo da União com essa barbárie, se esse continuar tão submisso às suas reivindicações e, finalmente, vai matar as esperanças de quem ainda acreditava haver no Poder Executivo da União algum interesse, mesmo remoto, de implementar a política pública de reforma agrária no país, apoiando o Incra em tudo o que a dita autarquia sempre necessita e nunca recebe.
Isso não acontece com as reivindicações da bancada do boi. Mesmo assim, se pela lei de proteção aos animais o boi tem o direito de ser defendido contra maus tratos, não seria demais esperar-se da bancada representativa da economia nele sustentada no Congresso Nacional – já que o seu poder se mostra tão superior ao do Estado – dedicasse às/aos trabalhadoras/es mantidas/os em regime de escravidão, senão superior, o mesmo cuidado com que se dedica aos seus animais.