Por Nilda Franchi (1)
O tema sobre a Utopia sempre traz à nossa frente um desafio: concentrar nossos esforços em dois movimentos: um movimento constitucional, voltado ao deslumbramento sobre as mudanças de algumas ações afirmativas; e outro, pautado em uma visão comprometida com as possibilidades de transformação das dimensões sociopolíticas, econômicas e culturais de um povo. Estes movimentos abrem precedentes e escapam “à sede, precisão e verdade de cientistas e filósofos […] O papel das utopias no desenrolar dos séculos vai muito além do território do humor e da ficção…”.(2)
Assim, este desafio de conceituar o termo “Utopia” perpassa por alguns pensadores, dentre eles, o inglês Thomas Morus (1478-1535) que, no século XVI, em sua obra A Utopia(3), fundamenta uma análise crítica ao regime burguês e à decadência do feudalismo. Neste escrito, imaginou um lugar onde todos vivessem em eterna harmonia, coletividade e solidariedade; pensamento que, desde então, associou este termo ao princípio da posse comum, da troca, da partilha; elementos que, em sua época, antagonizaram a sociedade feudal, individual e absolutista, e concebeu, teoricamente, um Estado perfeito, livre e harmônico, contra uma sociedade profundamente desorganizada e injusta.
Estes preceitos, pensados sob um mundo renascentista, logo essencialmente imaginário e utópico para Morus, acenaram questões primárias de uma tentativa teórica da edificação de uma sociedade baseada no bem comum. Bem como, remetem-nos aos momentos atuais, vivenciados pelas sociedades Latino-Americanas, entre outras, como se refletidas nesse espelho secular.
Longe das palavras proferidas por Morus, desde a sua época, as sociedades têm assistido a guerras, conflitos e busca pelo poder hegemônico, superador e totalizante, que assinala anseios e desejos de um bem estar subjetivo, de cada sujeito ou nação.
No entanto, sob este imenso plano de caminhos e descaminhos edificados ao longo dos séculos, sob diversos regimes nefários, os movimentos utópicos se entrelaçam a eles, fazendo emergir manifestações de esperanças, vislumbrando promissores projetos que se voltam para uma mudança social, concreta e transformadora. Neste novo caminho, apresentam um novo sujeito, para o qual, sua utopia não se resume somente em um sonho metafísico, mas em um sonho tomado de consciência crítica diante das adversidades políticas e sociais.
Não desnudo do intento de criar novos mundos reais, ou imaginários, que o possibilite sobreviver e seguir em direção a uma humanidade que explore novas possibilidades, este sujeito aspira transformar sua História. Como diria nosso inesquecível personagem Dom Quixote, uma humanidade que seja capaz de levantar suas espadas diante do poder dos gigantes, que vivem disfarçados de inofensivos moinhos, para impor contra nós uma realidade decadente, implacável e desigual.
Quando pensamos neste novo sujeito, que traz um esperar positivo; que não prediz uma utopia cômoda, mas revolucionária, que incita um chegar, uma realização concreta e que se recusa ao trivial abstrato, partindo para as revestidas de utopias possíveis, nos remetemos ao olhar do escritor Eduardo Galeano.
Como muitos latinos americanos possuidores de leituras que apontam indicações de possibilidades de construirmos sociedades mais democráticas e emancipatórias, Galeano comunga de ideários que desenham possíveis agentes sociais de transformação. Sociedades onde possamos caminhar, dormir e olhar o próximo, despossuídos do medo e das condenações que geram sentimentos de ameaça. Outro motivo para olhar para Galeano, neste discurso, se deve a sua postura crítica em relação aos símbolos do poder (Estado imperial, corporações, capitalismo), que nos convida a extinguir o desânimo, a professar a esperança e a manter o entusiasmo. Este último convite, para o pensador, seria o não à separação entre os jovens, às novas gerações e ao sistema político vigentes na America Latina. Seria um não ao
mundo de valores capitalistas que nos coloca, ao mesmo tempo, no topo do sucesso e, por outro lado, nos condena pelo fracasso.
Perder é o único pecado que no mundo de hoje não tem redenção. Estamos condenados a ganhar ou ganhar. E, bem, ao longo da história muitas pessoas melhores perderam, e isso não lhes tira nem um pouco a razão. Os dois homens mais justos na história da humanidade, Sócrates e Jesus, morreram condenados pela justiça. Os mais justos foram condenados pela justiça. E não deixam de ser justos.(4)
O autor assevera que não apenas somos condenados a sempre ganhar, neste jogo cominado pelo sistema. Querem, também, e entre outras coisas, nos impedir do direito de sonhar, de sermos utópicos, enfim, de estarmos vivos e de proliferar uma geração de sonhantes. Uma geração que, segundo ele, já nasceu especializada em perder desde a imposição da divisão internacional do trabalho, quando a América Latina, nos remotos tempos em que os europeus do Renascimento se alargaram sobre estas terras e as fez humilhadas e subserviente seu solo, a preparou para atender as demandas de um mercado externo dominante.
Ahora América es, para el mundo, nada más que los Estados Unidos: nosotros habitamos, a lo sumo, una sub América, una América de segunda clase, de nebulosa identificación. Es América Latina, la región de las venas abiertas. Desde el descubrimiento hasta nuestros días, todo se ha trasmutado siempre en capital europeo o, más tarde, norteamericano, y como tal se ha acumulado y se acumula en los lejanos centros de poder. Todo: la tierra, sus frutos y sus profundidades ricas en minerales, los hombres y su capacidad de trabajo y de consumo, los recursos naturales y los recursos humanos. El modo de producción y la estructura de clases de cada lugar han sido sucesivamente determinados, desde fuera, por su incorporación al engranaje universal del capitalismo. A cada cual se le ha asignado una función, siempre en beneficio del desarrollo de la metrópoli extranjera de turno, y se ha hecho infinita la cadena de las dependencias sucesivas, que tiene mucho más de dos eslabones, y que por cierto también comprende, dentro de América Latina, la opresión de los países pequeños por sus vecinos mayores y, fronteras adentro de cada país, la explotación que las grandes ciudades y los puertos ejercen sobre sus fuentes internas de víveres y mano de obra. (Hace cuatro siglos, ya habían nacido dieciséis de las veinte ciudades latinoamericanas más pobladas de la actualidad).(5)
Galeano aponta que o capitalismo periférico hipotecou nossa soberania onde “no hay outro camino”. A partir dos anos 1960, com a expansão do capitalismo norte-americano, que designou sua função sempre em benefício do desenvolvimento do Outro, as custas de sucessivas dependências e sob todas as formas: “perdimos; otros ganaron”:
Nuestra derrota estuvo siempre implícita en la victoria ajena; nuestra riqueza ha generado siempre nuestra pobreza para alimentar la prosperidad de otros: los imperios y sus caporales nativos. En la alquimia colonial y neocolonial, el oro se transfigura en chatarra, y los alimentos se convierten en veneno.(6)
No centro desta tormenta, a América Latina presenciou, no meio daquele século, uma população avassalada pela fome, miséria, analfabetismo e o desemprego que, mesmo com a industrialização tardia, não resolveu o problema da desocupação, pois “se extiende la pobreza y se concentra la riqueza em eseta región que cuenta com inmensas legiones de brazos caídos que se multiplican sin descanso”.(7)
Contra a expansão destes males na América Latina, la Alianza para El Progresso, generosamente tentou resolvê-los com a promoção de controles de natalidade, sob formas perversas de esterilização de mulheres: “em América Latina resulta más higiênico y eficaz matar a los guerrilleros em los úteros que em lãs sierras e em lãs calles”.(8)
Diante destas práticas de “justiça social”, a América Latina não poderia mais ser vista ou concebida com um vasto império a ser explorado e despido de suas riquezas pelos seus dominadores. Desde o Caribe, passando pelo México e seguindo até as terras virgens argentinas, por onde o poder dos europeus propagou primeiramente pelo tratado de Tordesilhas (1494), seguido de outros contra os indígenas e nativos, os homens de cara branca como cal e cabelos amarelos trouxeram, também, consigo “como plagas bíblicas, la virela y El tétano, várias enfermedades pulmonares, intetinales y venéreas, El tracoma, el tifuz, la lepra, la fiebre amarilla, lãs caries que pudrían lãs bocas […] los índios morían como moscas…”(9). Não só o ouro e a prata lhes foram arrancados, mas toda a dignidade de um povo, cujos impérios que se seguiram os dominaram e perpetuaram sua extinção, a serviço do chamado, contemporaneamente, capitalismo.
Essa análise de Galeano sobre a condição latino-americana, trazida pela subordinação hegemônica capitalista, embora específica para cada identidade regional do Continente, nos aponta as origens das desigualdades e das injustiças sociais. Evidenciam fatos que colocaram nossos povos na condição de subalternos que, independentes de seus padrões políticos, necessitaram articular saídas para suas inquietações, mesmo que de forma utópicas e socialistas, primariamente.
Embandeiramos as ruas de poemas, iluminamos com lâmpadas verbais os seus caminhos, cingimos os seus muros com trepadeiras de versos: que eles, alçados como gritos, vivam a momentânea eternidade de todas as coisas, i que a sua beleza dadivosa i transitória seja comparável à de um jardim vislumbrando a música esparramada por uma janela aberta i que enche toda a paisagem.(10)
Hoje, suplantados alguns processos ideológicos procedentes, que persistiram e resistiram nas suas limitações aos processos e confluências dos citados fatores externos e internos, as articulações assinalam horizontes de novas utopias, que vão além das despontadas nas décadas de 1980 e 1990. O pensamento revolucionário que sempre acompanhou a formação e o imaginário da América Latina partiu não só de uma concepção messiânica da realidade, mas, também, de um programa de transformação econômico e social, e fundamentalmente humano, expresso sobre várias formas:
Embora que, um tanto ingênuas ou improváveis, ou carregadas de deficiências organizativas, foram a partir dessas utopias que militantes, ativistas e sonhantes, contribuíram para que as primeiras transformações sociais ocorressem: a luta contra o racismo, preconceitos sexuais, meio ambiente e os primeiros passos em busca dos direitos das mulheres e a trajetória histórica pela defesa dos Direitos Humanos. São essas utopias que movem a América Latina. São elas que nos dão o direito que ainda temos de sonhar.
Sobre este direito, o direito as novas utopias, Galeano relembra as palavras proferidas por seu amigo Fernando Birri, diretor de cinema, durante uma palestra em Cartagena das Índias, quando indagado por um estudante: para que serve a utopia?
Eu sei muito bem que nunca a alcançarei, que se eu caminhar dez passos, ela ficará dez passos mais longe. Quanto mais eu buscar, menos a encontrarei, porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo. Boa pergunta, não? Para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso: caminhar.(11)
Para tanto, essa nova caminhada requer um passo a passo direcionado ao possível e ao presumível que, segundo Birri, vão sendo constituídos à medida que traçamos como nosso caráter utópico, um alvo real e material.
No século XX, a justiça foi sacrificada em nome da liberdade, e a liberdade foi sacrificada em nome da justiça. Já o nosso tempo é o século XXI, e a melhor coisa que ele tem é o desafio que ele contém: ele nos convida a lutar para ajudar no reencontro da justiça e da liberdade. Elas querem viver bem coladinhas, uma de costas para a outra.(12)
Para Galeano, não estamos fadados a repetir as mesmas atrocidades de nosso passado colonizador, mas, o destino nos desafia a mudá-lo, e que esta mudança não seja também tardia. Para isso, é preciso andar, caminhar. É preciso acreditar na possibilidade de uma libertação humana.
Na ardidura da realidade, por pior que seja, novos tecidos estão nascendo e esses tecidos são feitos de uma mistura de muitas e diversas cores […] Brotam de baixo para cima e de dentro para fora. Sem estardalhaço, estão contribuindo expressivamente para a retomada da democracia, nutrida pela participação popular, e estão recuperando as maltratadas tradições da tolerância, ajuda mútua e comunhão com a natureza […](13)
E, ironicamente, o autor continua…
Na América Latina, são uma perigosa espécie em expansão: as organizações dos sem-terra e dos sem-teto, os sem-trabalho, os sem-tudo; os grupos que trabalham pelos direitos humanos, os lenços brancos das mães e avós inimigas da impunidade do poder; os movimentos que congregam vizinhos de bairro; as frentes de cidadãos que lutam por preços justos e produtos saudáveis, os que lutam contra a discriminação racial e sexual, contra o machismo e contra a exploração das crianças […] Com frequência, estas energias da sociedade civil são acossadas pelo poder, que às vezes chega ao ponto de enfrentá-las a tiros. Alguns militantes tombam pelo caminho, crivados de balas […] Está ocorrendo em muitos lugares no mapa latino-americano; contra os gases paralisantes do medo, as pessoas se unem e, unidas, aprendem a não se acovardar. (14)
Ao assumir este pensamento, Galeano se aproxima de Paulo Freire, o andarilho da utopia. Educador e batalhante incansável contra as várias formas de injustiças sociais e econômicas, Freire refletiu em vários momentos de sua extensa obra, sobre as lutas sociais. Para ele, essas lutas são movidas pela utopia, sustentada pela visão crítica de mundo, onde a denúncia de como estamos vivendo se dá como forma de anunciação de como podemos viver.(15) E que elas tragam ao mundo, um homem novo, sustentado pelo inédito-viável, encerrado na crença no “sonho e na possibilidade de utopia, na transformação das pessoas e do mundo”.(16)
Uma das coisas mais significativas de que nos tornamos capazes mulheres e homens ao longo da história que, feita por nós a nós nos faz e refaz, é a possibilidade que temos de reinventar o mundo e não apenas de repeti-lo ou reproduzi-lo.(17)
Compreender a História não como acontecimento ou causa, mas como possibilidade de fazer diferente algo que está dado, sem fatalismo ou determinismo, é o que torna provável nossa intervenção no mundo. Como esperança de que a história não acabou, “pois, para isso, é preciso que homens e mulheres morramos, para que a história morra […] é por isso que eu insisto tanto na utopia”.(18) As utopias animam o mundo e fazem a história acontecer.
Ao perseverar na ideia de que é possível mudar a ordem das coisas, intervir no mundo, Freire conseguiu convencer e despertar nos sujeitos que o rodeavam (através de suas obras ou em seus momentos de homília), que a capacidade de sonhar com uma realidade “mais humana, menos feia e mais justa”, era uma utopia viável.
Nessa comunhão de pensamentos, ambos os autores prenunciam uma ruptura com as situações de opressão e injustiças que, firmadas na busca pela liberdade, gera utopias que movimentam os oprimidos no volver de sua humanidade roubada. A união entre a compreensão crítica dos fatos e a busca por mudanças os possibilita de acreditarem que, embora difícil, podem se engajarem na luta para transformar sua realidade. Essa possibilidade está no entendimento de que a realidade não está posta apenas como algo que realmente existe, que seja uma verdade absoluta a dura realidade criada pela classe dominante, para ser transmitida como legitima. A realidade não pode ser entendida ou pressuposta como algo estático. Assim, a estrutura social, parte de um processo histórico, também não pode ser considerada estática.
Não há nenhuma estrutura que seja exclusivamente estática, como não há uma absolutamente dinâmica. A estrutura social não poderia se somente mutável, se não houvesse o oposto da mudança, sequer a conheceríamos. Em troca, não poderia ser também só estática, pois se assim fosse já não seria humana, histórica, e, ao não ser histórica, não seria estrutura social.(19)
Para o educador, esta dinâmica utópica está presente em diversos apelos políticos, e em contraponto ao fatalismo da realidade futura, posto pelo poder dominante e alienante. Temos o direito e o dever de mudar o mundo, e, isso não se faz sem consciência crítica, sem ética, sonho, utopias, lutas e marchas.(20)
Na América Latina, a tão sonhada vitória sobre os ditadores, que findaria com o capitalismo e ergueria uma sociedade justa e socialmente democrática, se mostra como ações contraditórias de transformação social, e se tornam ideários utópicos de uma minoria popular do Continente. Na concepção de Freire, são utópicos porque estes se recusam a um mundo pré-fabricado e não consciente (a consciência emerge do mundo vivido, objetiva-o, problematiza-o, compreende-o como projeto humano)(21), e ser pretendem à libertação das classes oprimidas e na práxis revolucionária permanente. Uma utopia libertária.
A constante afirmação desta possibilidade de mudança, para o Educador, não é o bastante. Mudar implica saber que fazê-la é possível. E essa transformação não acontece sem os sonhos, sem as utopias ou sem projetos autênticos e éticos. Também não se dá sem a transposição de obstáculos, recuos, avanços ou marchas demoradas. Implica numa luta política, em compreensão a realidade, interesses e grupos e de classes.
Possivelmente, um os saberes fundamentais mais requeridos para o exercício de um tal testemunho é o que se expressa na certeza de que mudar é difícil, mas é possível. É o que nos faz recusar qualquer posição fatalista que empresta a este ou àquele fator condicionante um poder determinante, diante do qual nada se pode fazer.(22)
Esta crença nas possibilidades foi revelada por Freire em toda sua vasta obra, principalmente quando escreveu falando dos e para os povos deste Continente, antes e após de 1964, ao ser convidado a fazer algumas andanças em outros mundos, para além de sua casa. Nestes escritos, é perceptível a intensidade de seu olhar de indignação e, ao mesmo tempo, sereno e pleno, seu pensamento sobre as possibilidades de mudanças, para as várias realidades de nossa América, preenchida em todos os seus espaços, por variantes formatos de dominação socioeducacional, política e econômica.
E é exatamente esta vontade de ser nós mesmos e este desejo forte, alentados pelo sonho possível, pela UTOPIA tão necessária quanto viável, que marchamos os progressistas e as progressistas destas Terras de América para a concretude, a realização dos sonhos dos Vascos, de Quiroga y Tupac, dos Bolívares, dos San Martins, dos Sandinos, dos Tiradentes, dos Ches, dos Romeros. O futuro é dos Povos e não dos Impérios. (grifo original) (23)
Instigado pelo desejo de ver as marchas em profusão, e pela possibilidade concreta de reverter este contexto de dominação, Freire buscou apontar-nos caminhos, os quais já foram antes percorridos por outros homens e mulheres que, há seu tempo, marcharam sobre ideais comuns de liberdade. Homens e mulheres que não aceitaram o fatalismo e se colocaram frente a frente ao poder dominante que disseminou sobre nossa América, vassalando seu povo, oprimindo-o e arrebatando-o não só de seus sonhos, mas da possibilidade de sonhá-los. Homens e mulheres que, desvestidos do medo (que, segundo Galeano, é uma arma poderosa do Poder), lutaram em busca da constituição de um mundo possível.
Em um tal mundo a grande tarefa do poder político é garantir as liberdades, os direitos e os deveres, a justiça, e não respaldar o arbítrio de uns poucos contra a debilidade das maiorias. Assim como não podemos aceitar o que venho chamando “fatalismo libertador”, que implica o futuro desproblematizado, o futuro inexorável, não podemos igualmente aceitar a dominação como fatalidade. Ninguém me pode afirmar categoricamente que um mundo assim, feito de utopias, jamais será construído. Este é, afinal, o sonho substantivamente democrático a que aspiramos, se coerentemente progressistas. Sonhar com este mundo, porém, não basta para que ele se concretize. Precisamos de lutar incessantemente para construí-lo.(24)
Comungando deste intento que abraçou Freire por toda sua existência, e que continua vivo em cada um e cada uma que traz consigo este sonho, esta utopia e esta luta pautada na concretude de suas possibilidades, as marchas latino-americanas seguem seu compasso. Passo a passo.
Este Continente, marcado pela colonização histórica de opressão e exploração, que dizimou nossas populações nativas e inseriu perpetuamente nas sociedades latino-americanas as desigualdades socioeconômicas e culturais, ainda hoje resiste na sua luta progressista. A gênese social desta terra ainda carrega em seus ombros, além das desigualdades, as crises sociais e econômicas, as guerras e guerrilhas, e a amarrada dependência dos mercados internacionais. O desafio de romper com essas formas de submissão se iniciou com os movimentos de libertação, pautados nas utopias revolucionárias: a Revolução Mexicana (1910-1919)25 e a Revolução Cubana (1961)26, entre outras que aconteceram nesta perspectiva.
Essas Utopias não morreram com seus idealizadores, nas suas revoluções, mas, sob diferentes performances, ainda prosseguem vivas na história, revelando que não há caminhos que sejam inalteráveis. Isto porque, o desejo de homens e mulheres em mudar a atual conjuntura socioeconômica e cultural deste contexto, ainda continua afirmando que algo está errado nesta trajetória, e que um novo mundo é possível.
Freire e Galeano trazem reflexões que nos levam a olhar o passado deste Continente não de forma diabólica, mas como forma e pensar um futuro concreto, passível de transformação. E, para tanto, as revoluções devem acontecer partindo das classes historicamente oprimidas, pois, são elas que promoverão as mudanças intentadas nesta terra. Nossa terra não nasceu amaldiçoada, mas convertida à maldição. Assim, cabe a nós, latino-americanos, inverter este quadro.
Esta reflexão certamente é inacabada. Nosso desafio posto seria o da compreensão da Utopia, como esperança que nos possibilita continuar sonhando e transformando as realidades da América Latina. Nessa luta em busca de sociedades democráticas e justas, a utopia é essencial. É tarefa da educação, pensar de modo crítico, utopias capazes de contemplar a diversidade humana sem esquecer nossa pertença comum à humanidade. Mas, para que este novo mundo se efetive, é urgente lutar contra o sistema econômico e radicalizar nossa democracia. Um novo mundo só é possível a partir da superação das estruturas autoritárias e antidemocráticas. Precisamos criar uma cultura alicerçada na solidariedade, na democracia, no respeito às diversidades, mas, acima de tudo, na ética e na justiça, que são condições sem as quais é impossível pensar a humanização do humano. Nossa utopia é um mundo plural, capaz de conviver com todas as culturas humanizadoras, em estruturas democráticas e justas.
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Notas:
1 Educadora, mestre em Ciências Sociais. O esboço original do texto foi escrito em 2012, para uma revista da PUC RS.
2 BORIM, Dário. Crepúsculos de utopias: Brasil e América Latina em Fernando Gabeira. Disponível em: http://www.ellipsis-apsa.com/Volume_4-Borim_files/Borim_ellipsis_4_2006%20copy.pdf. Acesso em 23 fev 2012.
3 Thomas Morus, forma alatinada, porque é literariamente conhecido como Thomas Moore/More. MORUS, Thomas. A utopia. São Paulo: L&PM, 1997.
4 GALEANO, Eduardo. Entrevista. Concedida ao Programa Singulars. Tv3 Espanhola. (Transcrição e tradução de Cainã Vidor, na Revista Fórum).
5 GALEANO, Eduardo. La venas abiertas de América Latina. 76. Ed. Argetina: Siglo Veintiuno Editores, 2004. p. 11.
6 GALEANO, Eduardo. La venas abiertas de América Latina. 76. Ed. Argetina: Siglo Veintiuno Editores, 2004. p. 12.
7 Ibid., p. 14.
8 Ibid., p. 16.
9 Ibid., p. 29.
10 Liderados por Borges, um pequeno grupo de literatos afixa nos muros de Buenos Aires dois manifestos iniciais (versões de 1921 e 1922 da folha mural Prisma), no intento histórico de realizar literariamente a ideia de utopia em forma de manifestos murais. BORGES, Jorge, Luis. El Martín Fierro. Buenos Aires: Emecé. 1995.
11 GALEANO, Eduardo. Entrevista. Concedida ao Programa Singulars. Tv3 Espanhola. (Transcrição e tradução de Cainã Vidor, na Revista Fórum).
12 GALEANO, Eduardo. Inquisições sobre o paradigma. Entrevista. Concedida a Jorge Majfud. In: Portuguese on 11 abril, 2011.
13 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9. Ed. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 329-332.
14 Ibid., p. 330.
15 FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000. p. 105.
16 ARAUJO FREIRE. Inédito viável. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime J. (Org.). Dicionário Paulo Freire Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 231-234.
17 FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. p.121.
18 FREIRE, Paulo. Discurso. Cinquentenário da PUC/SP, 1990.
19 FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 10.
20 FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. p. 25.
21 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. p. 17.
22 Ibid., p. 26.
23 FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. p. 35.
24 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. p. 65.
25 Revolução Mexicana – O acontecimento mexicano é descrito como a primeira grande mobilização social da América Latina no século XX. O processo começou como uma autêntica revolução, isto é, com o objetivo de promover uma transformação estrutural na sociedade, para depois normalizar-se e garantir algumas mudanças que não representam um processo completo de modificação […] A guerrilha no Estado de Chiapas, ao mesmo tempo em que protesta contra o imperialismo norte-americano e contra a pobreza da região, luta por uma reforma agrária justa e pela memória de Emiliano Zapata, líder da revolução do começo do século que ecoa no México até hoje. Disponível em: http://www.klepsidra.net/klepsidra5/america.html. Acesso em 23 fev 2012.
26 Revolução Cubana – O processo liderado por Fidel Castro é descrito até hoje como a mais radical mudança política no cenário latino-americano. Afinal, Cuba tornou-se, a partir de 1959, o primeiro país socialista do mundo ocidental e o único em que tal regime sobreviveu, quebrando a hegemonia norte-americana no continente e o “anti-comunismo” que esse domínio pregava e combatia – o golpe militar de 1954 contra o presidente Jacobo Arbenz, de tendências socialistas, na Guatemala, expressa bem isso. Disponível em: http://www.klepsidra.net/klepsidra5/ america.html. Acesso em 23 fev 2012.
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Destaque: montagem deste blog, a partir de fotos da internet.