Em Taqui Pra TI /
De Biguaçu, SC – Três pesquisadores indígenas defenderam nesta quarta feira (4/2) seus trabalhos de conclusão de curso (TCC). Ronaldo A. Barbosa batizado em guarani como Karai Dju descreveu, com os pés na terra, a agricultura tradicional e, para ilustrar suas hipóteses, trouxe da roça vários tipos de milho, melancia, amendoim, aipim, abóbora e batata doce. Já seus colegas Geraldo Moreira (Karai Okenda) e Wanderley Moreira(Karai Ivyju Miri), com os olhos no céu, enveredaram pela astronomia e trouxeram um mapa do universo que demarca o céu guarani com suas estrelas e constelações.
Alunos do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, eles fazem parte da turma de 120 índios Xokleng Laklãnõ, Guarani e Kaingang, com ingresso em fevereiro de 2011 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Quatro anos depois, as defesas mencionadas – as primeiras da UFSC em terra indígena – aconteceram não no campus, mas numa aldeia com o nome poético de Reflexo das Águas Cristalinas (Yynn Moroti Wherá em guarani), localizada no município de Biguaçu, para onde os membros da banca se deslocaram.
As duas monografias se complementam como se fossem capítulos de um livro, pois os Guarani para verem a terra, olham o céu. Com a leitura do céu, elaboram o calendário cosmológico chamado Apyka Miri, que conta o tempo, marca o clima, a chegada da chuva, a época de extrair o mel e de semear, o tempo da colheita e de fazer artesanato, a duração das marés, a caça e a pesca, tudo em sintonia com Nhanderu Tenonde – o Pai Criador e com Nhamandu – o Pai Sol. A astronomia e a religião é que dão suporte para a agricultura guarani, que tem o pé na terra e o olho no céu.
O pé na terra
Um ritual com apresentação do coral e dança de crianças indígenas precedeu a defesa da monografia sobre agricultura, de 56 páginas, ilustrada com fotos e vídeo feitos por Ronaldo. Paramentado com um cocar de penas coloridas, ele começou sua exposição formulando várias questões: quais as formas tradicionais usadas pelos Guarani para cultivar as plantas e quais delas se mantém na atualidade? Que tipo de ferramentas são usadas? Quais as sementes mais cultivadas? Qual a época de cultivo? O que fazer diante das novas tecnologias e do mercado?
Para buscar as respostas, ele combinou vários procedimentos de pesquisa. Entrevistou velhos sábios e reproduziu as entrevistas em língua guarani. Cruzou essas narrativas orais com pesquisa bibliográfica. Leu documentos do Ministério de Desenvolvimento Agrário, textos de Egon Schaden, de Maria Inês Ladeira, algumas teses e dissertações. Além disso, saiu a campo e registrou suas observações pessoais feitas em roças de três aldeias, de onde trouxe diversos tipos de milho. Desenhou o croqui das áreas cultiváveis e ali identificou variedades de plantas.
Desta forma, as imagens registradas com diferentes técnicas incluíram desde desenhos coloridos feitos manualmente pelo autor, passando por fotos das roças e das pessoas entrevistadas até o mapeamento das aldeias com imagens de satélite do Google Earth. No final, a projeção do vídeo sobre o tema reforçou a relação da agricultura com o mundo espiritual guarani, destacando o ritual do Nhemongaraí, quando se dá o benzimento de sementes e de alimentos junto com o batismo das crianças.
– Nos dias atuais a agricultura tradicional guarani é como se fosse uma agricultura orgânica ou biológica dos não indígenas porque não usa nenhum tipo de adubo químico – escreveu Ronaldo, que chama a atenção para “as armadilhas” do mercado. “De alguma maneira hoje devemos controlar o que vem de fora para não afetar diretamente a nossa produção, a nossa cultura” – ele diz, apontando como lugares de luta a escola indígena e “a Casa de Reza (Opy), que é a nossa primeira escola”.
O olho no céu
– A letra de Nhanderu está escrita no céu e na natureza, mas é preciso aprender a ler essa letra – explicou Alcindo Moreira (Wherá Tupã), 106 anos, presente na defesa ao lado da esposa Rosa Mariani Cavalheiro, 98 anos, ambos entrevistados por Geraldo e Wanderley, seus filhos, a quem ensinaram a ler o céu. O TCC feito pelos dois trata justamente do calendário guarani, da passagem do tempo e das estações, que podem ser registradas através da observação das estrelas e das constelações.
A pesquisa explorou um campo relativamente novo para a academia – a arqueoastronomia – disciplina que estuda os conhecimentos astronômicos dos povos originários da América e que a partir de 1970 começou a ser estudada em universidades europeias e americanas. No Brasil, a Ilha de Santa Catarina é justamente a região mais rica em vestígios arqueológicos sobre o tema – segundo o físico Germano Bruno Afonso, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), cujos trabalhos são citados no TCC, de 48 páginas, com fotos, desenhos e um vídeo feito pelos autores.
Os dois irmãos trilharam caminho similar ao de seu colega, usando metodologia da “pedagogia da alternância”, que foi bem trabalhada nas 3.420 horas de duração do Curso de Licenciatura, distribuídas em “tempo universidade” e “tempo comunidade”, com a integração dos dois espaços na produção do conhecimento. Entrevistaram os velhos sábios guarani e cruzaram os dados obtidos com os textos míticos recolhidos por Leon Cadogan, com os escritos de Bartomé Meliá – que foi professor no curso – e com a observação do céu.
– Todos os povos antigos faziam a leitura do céu. Se não fizessem, não sobreviveriam. Trabalho muito com índios, com astronomia indígena, principalmente com os conhecimentos dos pajés – diz Germano Bruno Afonso, doutor em Astronomia e Mecânica Celeste pela Universidade de Paris VI, com pós-doutorado no Observatório da Côte d’Azur e Prêmio Jabuti de 2000 com o livro “O Céu dos índios Tembé”. Ele reconhece que muitas de suas afirmações “se baseiam no modo como os pajés me explicaram a fazer a leitura do céu e na sua forma de pensar”.
Como os índios pensam
Foi essa leitura que Geraldo e Wanderlei fizeram trabalhando nos últimos sete anos para reconstituir uma versão do calendário guarani. Orientados por Wherá Tupã, registraram o conhecimento oral antigo, observaram as principais constelações, descreveram seus significados para as atividades cotidianas e construíram uma réplica do relógio guarani, desenvolvendo uma metodologia para ensinar as crianças da aldeia, que desta forma aprendem mais facilmente. Germano Bruno confirma:
– Para o ensino da Astronomia às crianças, o céu guarani é um auxiliar precioso. Quando elas aprendem as constelações indígenas – da Anta, do Veado, da Ema, da Cobra, da Canoa, do Homem Velho, etc – a versão ocidental fica mais fácil de ensinar. Não precisa forçar a imaginação, você olha e enxerga. Por quê? Porque os índios não apenas juntam as estrelas brilhantes, mas formam as figuras com as manchas claras e escuras da Via Láctea. Assim, eles veem mesmo determinado animal no céu. Como aquela brincadeira que se faz com as crianças de enxergar desenhos nas nuvens.
Os dois concludentes esclarecem que “o pensamento guarani não é estático, nem imutável. As constelações sazonais oferecem uma enorme diversidade de interpretação. Para acessar essa cosmologia é preciso considerar a localização física e geográfica de cada grupo indígena, com os que habitam o litoral e o interior ou diferentes latitudes”.
Outras defesas de TCC ocorrerão até final de fevereiro. As monografias estão comprovando que os índios são capazes de se apropriar dos métodos da academia para produzir conhecimento, mas sobretudo que eles trazem relevante contribuição para que a universidade aprenda como pensam os índios. Ronaldo, que antes se formou como técnico em agropecuária no Colégio Agrícola de Araquari (SC), diz que ele tem hoje a visão de dois mundos e pode transitar por ambos: “Dessa forma está sendo plantada uma semente onde vamos poder colher bons frutos”.
Ah, ia me esquecendo. Por falar em bons frutos, entre uma defesa de manhã e a outra de tarde, os integrantes da banca almoçaram os anexos da monografia: milho, melancia, cará, batata doce. Estavam deliciosos. Nota dez.
P.S.1 As bancas examinadoras foram compostas por Helena Alpini (orientadora), Maria Dorothea Post Darella, Aldo Litaiff e este locutor que vos fala, todos professores do curso. Mas de outra espécie de “banca informal, fizeram parte os sábios guarani Alcindo Moreira, Rosa Mariani Cavalheiro e Nadir Amorim, que aprovaram o trabalho dos três alunos.
P.S. 2 – A UFSC apresentou em 2009 proposta do Curso de Licenciatura ao PROLIND – um programa de apoio à formação superior de professores que atuam em escolas indígenas. Agora, negocia com o MEC para que a Licenciatura Intercultural Indígena se transforme num curso regular a partir de agosto de 2015. A equipe esteve formada, entre outros professores, por Maria Dorothea Post Darella, Ana Lúcia Notzold, Clóvis Brighenti, Lucas Bueno – coordenador geral e Rivelino Barreto Tukano, coordenador pedagógico.
José,
posso te adiantar que há reivindicações quanto à origem do próprio jogo de bola por parte de alguns povos originários. Já publicamos algumas poucas coisas a repeito no blog. Por acaso, acabo de ver uma reportagem sobre um campo maia de 25 séculos, que não publicamos. O título é México: Hallan en Yucatán campo de pelota maya de hace 25 siglos, e ela está em http://servindi.org/actualidad/247.
Tania.
Excelente trabalho dos concludentes e narradores indígenas e do corpo docente. Alguma das monografias futuras abordará os esportes indígenas? Tenho muito interesse em associar as contribuições dos jogos indígenas sulamericanos para modalidades olímpicas modernas. Temos algumas informações sobre os precursores do handebol e do futebol entre os Guarany do Uruguay e do Paraguay, respectivamente. Procede?