Rituais dessa etnia indígena são essenciais para a reconstrução de uma sociedade desequilibrada pela morte e aniquilada pela ocupação branca
Por Lucíola Zvarick, em RBA
A frase do título é resultado de uma longa amizade entre o marechal Cândido Rondon e o chefe Bororo Oarine Okuneu, o Cadete. Em muitas ocasiões, Cadete aconselhou o antológico indigenista a morrer entre “os seus”. Sim, os Bororo, ou Boe, como se autodenominam, sabem chorar os seus mortos. O sol ardia no cerrado descampado e não tinha vento, apenas um bafo quente, quando o carro da reportagem deixava a rodovia BR-070 e adentrava o território em que ouviria essas e outras histórias da etnia.
A Terra Indígena Meruri ocupa 82 mil hectares de área no município de General Carneiro (MT), a 460 quilômetros de Cuiabá. Nesta área homologada em 1987 vivem pouco mais de 400 índios, distribuídos entre as aldeias Meruri e Garças.
A reportagem documentaria parte dos ritos funerários em homenagem ao líder José Carlos Meruri Ekureo, morto em 19 de junho passado, aos 80 anos. Era o último grande chefe de ritual Bororo da aldeia Garças. Em setembro, seu corpo ainda descansava no centro da aldeia, em uma cova rasa, sob um manto de terra e folhas de palmeiras. Em breve sua alma estaria livre para percorrer o caminho até a aldeia dos que morrem.
Porém, a comunidade ainda teria de aguardar. Diariamente, a cova é regada para acelerar o processo de decomposição do corpo, cujos ossos, ao final, deverão receber um ornamento especial e ser enterrados ou depositados numa lagoa. No caso do velho José Carlos, o ritual seria finalizado com uma bênção católica e os ossos sepultados no cemitério da aldeia vizinha, Meruri, onde se instalou uma missão salesiana em 1902. Nesses 112 anos de contato, o grupo sofreu transformações. Aprenderam a falar e a rezar com os não-índios, enfraqueceram sua língua, seus rituais foram proibidos total ou parcialmente, e suas conexões com outros povos vizinhos foram alteradas para sempre.
Há algum tempo, um processo de autocrítica dos missionários, depois de constatar o aniquilamento cultural dos Bororo, culminou com a retomada da língua indígena a partir do ensino bilíngue na aldeia Meruri. Uma esperança de resgate de estruturas fragilizadas e relegadas às sombras da identidade de cada Bororo.
Funeral
Entre os episódios que marcam o ciclo de vida da etnia, a morte é um dos mais importantes. Durante aproximadamente três meses de ritos funerais, os jovens são familiarizados com os valores dessa sociedade dualista. São lembradas regras de reciprocidade e de iniciação à vida adulta. Os rituais são essenciais para a reconstrução da sociedade desequilibrada pela morte. A cada funeral, todos os mortos são lembrados por seus parentes vivos e por seus representantes rituais por meio de um par de cabacinhas tocadas pelo condutor do cerimonial.
É quando se dá o encontro entre o mundo dos vivos e o universo dos mortos. Os ritos reafirmam a oposição e complementaridade entre as duas metades em que se dividem a aldeia e a própria sociedade Bororo: os Eceráe e os Tugarégue. Cada uma dessas metades é subdividida em clãs com deveres bem definidos: do fornecimento de tintas para as pinturas corporais e as penas para os adornos plumários às representações rituais, que caberão ao clã da metade oposta à da família do morto.
Terezinha, a filha, e Jacira, neta do ancião recém-falecido, tinham marcas de escarificação nos braços. O cacique da aldeia Garças, Emílio Cugoxereu, é marido de Jacira. É parte do ritual funerário os parentes próximos, especialmente as mulheres, se arranharem. No caso das duas, como houve perda da tradição, elas o fizeram com cacos de vidro. Também assim expressam a profunda tristeza pela morte de um ente querido. A reportagem acompanhou desde a confecção de duas grandes rodas com talos de folhas de buriti – uma simbolizando o homem e a outra, a mulher – até a sua utilização durante os rituais.
Entre eles, o Aije (espírito misterioso). Numa noite de sábado, a celebração ao redor do corpo e diante das duas grandes rodas é longa. O chefe de cabacinha e condutor da cerimônia puxa os que contavam a história de heróis Bororo e exaltavam a vida do falecido. Em dado momento, os homens se revezavam com as rodas alçadas à altura da cabeça, e com elas dançavam e saltavam freneticamente. Em algumas etapas, não é permitida a presença de mulheres e crianças, sob a crença de que teriam a morte próxima. Elas ficam dentro das malocas, um tanto nervosas diante da suposta presença dos espíritos em rituais de que apenas os homens participam.
Na tarde do dia seguinte, já com o sol batendo lateralmente, chega-se ao ponto. Homens, mulheres, jovens e crianças estão pintados com o negro do jenipapo e o vermelho do urucum. A simetria e a perfeição dos desenhos realçam a beleza exótica dos rostos. As mulheres pintam filhos e netos. No centro da aldeia, homens maduros e jovens índios, vestidos com parikos (cocares) majestosos de penas de arara azul e mantos com pele de jaguatirica, entoam novos cantos de evocação dos espíritos ancestrais e dançam, por cerca de quase três horas, ao redor do corpo do ancião.
Aquele foi um fim de semana de esforço coletivo entre os moradores da aldeia Garças e de Meruri. Representantes de outras aldeias Bororo também compareceram. A realização de um funeral ritualista sempre é um ato de coragem e respeito, exige empenho e determinação. A tristeza é, de certa forma, neutralizada pela riqueza do aprendizado e pela vontade de celebrar a magnitude da vida.
Comer, pescar, viver
Na aldeia Garças moram 30 pessoas. A casa do cacique Emílio e sua família é feita de palha de buriti e coberta com telhas de amianto. Não há plantação de nenhum tipo de grão ou tubérculo em toda a aldeia. “O trator que nos ajudava a arar a terra quebrou, e a Funai não colocou outro. Já plantamos muito arroz nestas terras, mas agora parou tudo”, lamenta o cacique. “Vocês vieram num momento em que estamos de luto, e as atividades – até a escolinha das crianças – estão paradas.”
A comunidade deixou de plantar há alguns anos. A pesca e a caça também ficaram escassas no local. Praticamente tudo o que comem é comprado na cidade: do arroz e feijão preparados no almoço e jantar, aos salgadinhos e guloseimas industrializados que as crianças consomem esporadicamente. Percorrem de bicicleta ou de carona os 15 quilômetros entre a aldeia e a BR-070, que os levará às cidades mais próximas, General Carneiro e Barra do Garças. Para pagar o supermercado, usam recursos provenientes do Bolsa Família e do INSS, especialmente por meio das aposentadorias por invalidez.
Os Bororo ocupavam uma extensa área calculada em 400 mil quilômetros quadrados, no estado de Mato Grosso, quando se deram os primeiros contatos com a civilização branca, com a chegada dos bandeirantes paulistas, no começo do século 18. A população era estimada em cerca de 10 mil. Pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, a língua Bororo é falada por quase toda a população, estimada em 1.700 pessoas espalhadas em dez aldeias em áreas descontínuas do estado.
A classificação é feita a partir dos dois grandes clãs Eceráe e Tugarégue, em que moradores de uma metade só podem se casar com os da outra. Ao nascer, uma criança receberá um nome ligado ao clã de sua mãe. A sociedade Bororo também é matrilocal, ou seja, os filhos pertencem ao clã da mãe, a mulher é chefe da casa e o homem, seu hóspede.
A demora para a finalização do funeral do velho José Carlos criou uma certa angústia na aldeia Garças. Já se passaram os três meses de praxe e o corpo ainda não havia se decomposto. O motivo? Houve um erro, e em vez de colocarem preparados que acelerariam o processo de decomposição, passaram resina, o que acabou por impermeabilizar a pele. O engano aconteceu porque morrera justamente aquele que detinha tais conhecimentos. Mais um sinal de que a comunidade teria de reaprender esse e outros processos do fascinante ciclo de vida da etnia. Um pouco nos livros, um pouco com os anciãos de outras aldeias.
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Foto: Em alguns momentos, mulheres e crianças ficam de fora do cerimonial. Os Bororo acreditam que teriam a morte próxima. Foto de Renato Soares