‘O Rio Grande do Sul vive um Estado de Exceção’

Fechamento de escolas, áreas restritas de manifestações, cancelamento de títulos eleitorais, monitoramento ilegal e classificação de “terroristas” para os movimentos sociais. Em entrevista ao jornalista Miguel Enrique Stedile, publicada pela Caros Amigos – janeiro 2010, o advogado Leandro Scalabrin afirma que as violações do governo gaúcho retomam métodos das ditaduras militares brasileira e chilena.

Integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renaap) e da Comissão de Direitos Humanos da OAB em Passo Fundo (RS), Scalabrin foi a primeira pessoa a denunciar a existência da ata do Ministério Público Estadual pedindo a extinção do MST e as normas da Brigada Militar para despejos, no ano passado.

Eis a entrevista:

Como definir a situação dos movimentos sociais e dos direitos humanos no Rio Grande do Sul?

O Rio Grande do Sul pode ser considerado um Estado de Exceção porque restringe o direito de reunião, de ir e vir, de livre manifestação e de liberdade de imprensa; mantém banco de dados com informações referentes às convicções ideológicas de cidadãos; viola o sigilo das comunicações telefônicas; realiza prisões ilegais em massa, tortura, desaparecimentos temporários  e usa arbitrariamente a força contra protestos. A Constituição Federal dispõe que só o Presidente da República poderia restringir os direitos de reunião e sigilo de comunicações, após decretar o Estado de Defesa e depois de ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional.

A Constituição Estadual gaúcha proíbe registros e bancos de dados com informações referentes à convicção política, filosófica ou religiosa. O Estado de Exceção vigora no RS desde a promulgação da Instrução Operacional nº 006.1 (IO-6) de outubro de 2007 pelo Estado Maior da Brigada Militar. Esta “instrução” promulgada e aplicada pela Brigada Militar restringe o direito de manifestação, reunião, ir e vir e de liberdade de imprensa, cria um aparato militar para monitoramento e manutenção de banco de dados com convicções ideológicas de opositores do governo e movimentos sociais; e estabelece o uso da violência contra manifestações. O governo do RS se coloca acima da Constituição e das convenções internacionais de direitos humanos ao se auto-atribuir o poder soberano e imperial de definir novas regras excepcionais para a sociedade gaúcha, arbitradas por ele mesmo.

Há paralelos na história brasileira com esta situação no RS hoje?

O paralelo mais recente para a situação do Rio Grande do Sul, onde um general comanda a Segurança Pública e os coronéis estão nas ruas dizendo o que o povo pode fazer ou não, é a ditadura  civil-militar brasileira implantada com o golpe de 1º de abril de 1964 e que rompeu uma estabilidade democrática de 19 anos. Desde a redemocratização em 1985 os militares não detinham tamanho poder em suas mãos.

De que forma esta situação articula diversas instituições do Estado?

De duas formas, sendo a primeira através da aceitação do que vem ocorrendo pelo Ministério Público Estadual (MPE), que deveria exercer o controle externo sobre a polícia e não o exerce. O CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) recomendou ao MPE que ingressasse com ação judicial para revogar a IO-6, mas a recomendação não foi acatada, ou seja, não se trata de mera omissão, mas de aceitação do Estado de Exceção. Isto não é gratuito: o governo estadual possui vários integrantes do Ministério Público em seu primeiro escalão e não se submeteu ao resultado  da eleição para o cargo de Procurador Geral de Justiça nomeando a segunda mais votada.

A segunda forma de articulação decorre da criação de uma “força especial” dentro do Ministério Público Estadual, que atua de forma integrada com a Brigada Militar, Poder Judiciário e o Serviço de Inteligência. Esta “força especial” foi criada a partir da elaboração de um relatório e da aprovação do voto do Procurador Gilberto Thums pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), onde o caráter do maior movimento social do Estado, o dos trabalhadores sem terra, é considerado “paramilitar”. Somando-se a isto uma procuradora do Ministério Público Federal ingressou com ação alegando que a organização dos trabalhadores é uma organização terrorista.

Quais são as consequências práticas desta decisão?

Ao considerar este movimento social como uma organização paramilitar e terrorista, o MPE e aquela procuradora federal praticamente deram sinal verde para a repressão militar ao movimento, que é atacado como se fosse um “inimigo” interno do Estado. Mas não é só, a partir da deliberação do CSMP, foram propostas quatro ações civis públicas contra os principais acampamentos de sem-terra no Estado que através do deferimento de medidas liminares do Poder Judiciário criaram uma “zona de restrição do direito de manifestação” numa faixa de dois quilômetros ao redor da Fazenda Southal (13.207 hectares) em São Gabriel, Fazenda Guerra em Coqueiros do Sul (8.000 hectares), Granja Nenê em Nova Santa Rita (1.246 hectares) e Fazenda Palma (3.029 hectares) em Pedro Osório. Através de um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta – firmado entre a Secretaria Estadual de Educação e o MPE, foram fechadas as Escolas Itinerantes localizadas nos acampamentos de sem-terra no Estado do RS, a partir do ano letivo deste ano.

E por fim, uma ação civil pública dissolveu o MST na Comarca de Sarandi, onde ele surgiu 25 anos atrás, onde a decisão liminar proibiu ocupação “por integrantes do MST, de qualquer outra área localizada há menos do que 5 km de rodovia, seja a via federal, estadual ou municipal. Todas estas ações são encaminhamento da política do MPE. Anteriormente a aprovação da política institucional pelo CSMP, já haviam sido encaminhadas ações na Comarca de Carazinho para cancelar a transferência dos títulos eleitorais de 60 sem-terra acampados em Coqueiros do Sul e impedir as marchas de sem-terra de ingressarem na comarca de Carazinho, jurisdição que abrange os Municípios de Carazinho, Almirante Tamandaré do Sul, Coqueiros do Sul e Santo Antônio do Planalto (uma área de 2.108 km2).

Trata-se, então, de uma articulação entre o Poder Executivo e o Ministério Público?

A articulação é mais ampla: envolve os grandes proprietários rurais representados pela FARSUL, empresas multinacionais, a bancada ruralista na Assembleia Legislativa e os grandes meios de comunicação do Estado, todos unindo forças para manter a absurda concentração de terras no RS que coloca a maioria das terras na mão de muito poucos. Este é o objetivo da articulação: manter a disparidade na distribuição de terras e os privilégios dos proprietários que através delas conseguem acessar fundos públicos.

E como tem sido o comportamento da Brigada Militar no RS?

A Brigada Militar possui bancos de dados com informações ideológicas de partidos políticos, deputados, diretórios acadêmicos, sindicatos e movimentos sociais. Monitora as sedes de entidades, lideranças e locais de possíveis manifestações; apreende equipamentos e carros de som de sindicatos nas portas de fábrica. Quando identificam pessoas que irão participar de protestos, as pessoas são impedidas de ir e vir, com a detenção dos veículos onde estão (ônibus). Se a Brigada não consegue impedir os protestos, os reprime com uso imoderado de violência, cavalaria, cães e bombas, contra protestos e manifestações de bancários, professores, metalúrgicos, comerciários, estudantes, movimentos sociais. Nestes casos a Brigada já quebrou a perna de uma professora, causou hemorragia interna num pequeno agricultor, atirou pelas costas contra dois trabalhadores sem-terra tendo matado um deles, além de causar inúmeros ferimentos em cerca de trezentos manifestantes nos últimos dois anos. Além da violência, usa algemas arbitrariamente e existem casos de desaparecimento temporário de manifestantes, casos de prisão temporária em massa de duzentas, trezentas pessoas, da mesma forma como ocorria no Chile de Pinochet.

Durante os despejos a liberdade de imprensa e as prerrogativas de advogados são desrespeitadas. Além de tudo existem dois casos comprovados de tortura em caráter coletivo contra manifestantes. O ex-ouvidor da Secretária de Segurança Pública denunciou o uso de grampos ilegais com finalidade política e existe um fato novo vinculado ao uso de armas de choque como forma de torturar manifestantes. Outro fato digno de nota foi a dissolução do Encontro Estadual do MST, com cerca de mil pessoas, na Fazenda Annoni, em 2008, exatamente 40 anos depois das forças armadas terem feito o mesmo com o congresso da UNE em Ibiúna, São Paulo.

O Governo gaúcho pode alegar que estas ações são legais?

As prisões em massa violam a presunção de inocência prevista na Constituição. A dissolução do congresso do MST, apreensão de carros de som de sindicatos, ameaças públicas, violência contra passeatas, violam o direito constitucional de livre manifestação e reunião. O “aparato militar” criado pela Brigada, com atuação na investigação de sindicatos e partidos, na repressão e na articulação via imprensa e ministério público, viola o princípio constitucional da separação de esferas de atuação das polícias, colocado na constituição para evitar o surgimento de um novo Dops, como este que surgiu no RS. Os grampos ilegais violam o direito de inviolabilidade das comunicações. A política de “ações rígidas”, ou seja, violentas, em manifestações, viola o Código de conduta para os encarregados da aplicação da lei, adotado pela ONU através da Resolução 34/169 de 17/12/1979; e os Princípios Básicos para utilização da força e armas de fogo, adotado pela ONU em 07/07/1990.  As deliberações do CSMP violam o princípio constitucional e a garantia à sociedade de independência funcional dos Promotores.

O que é possível prever hoje sobre esta situação? A criminalização dos movimentos sociais irá se acentuar?

O aparato militar de repressão política poderá  ser adequado ao Estado de Direito com a mudança do comandante supremo da Brigada Militar , o Governador do Estado. Todavia, a deliberação do CSMP que caracteriza o MST como uma organização terrorista, independente da mudança de governo, continuará sendo executada nas comarcas onde promotores locais, a despeito de sua independência funcional, se submeterem à deliberação superior ilegal e encaminharem as ações ali propostas, como de fato vem ocorrendo em Carazinho, Canoas, Pedro Osório, São Gabriel, onde foram criadas as zonas de restrição de direito (onde não pode haver manifestações), Sarandi (onde o MST foi dissolvido através da proibição de acampar) e Porto Alegre (onde foi firmado o TAC que fechou as escolas).

Transcrita de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=29523, onde você poderá ler outras matérias sobre o assunto.

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