2009: demarcação zero! E continua o processo genocida em Mato Grosso do Sul

Roberto Antonio Liebgott *

Adital –

O ano de 2009 vai terminando e os povos indígenas no Brasil não têm motivos para comemorações. A rigor, o único acontecimento significativo foi a conclusão do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da ação que pedia a revogação do decreto de homologação da terra Raposa Serra do Sol em área contínua. No entanto, mesmo a decisão da Suprema Corte, que julgou pela manutenção da homologação, não deve ser euforicamente comemorada, uma vez que, os ministros estabeleceram condicionantes às futuras demarcações de terras. Ao julgar este caso em particular, o STF introduziu condições a serem observadas nos procedimentos demarcatório, estabelecendo, assim, novos obstáculos às garantias constitucionais dos povos indígenas.

Não bastassem as referidas condicionantes, a União deixou de cumprir com suas responsabilidades concernentes à execução de ações e de serviços destinados aos povos indígenas. Vale ressaltar que é competência da União demarcar as terras, fiscalizá-las e protegê-las, bem como executar políticas adequadas de assistência em saúde, educação e atividades produtivas. Para esses serviços a União dispõe de estruturas administrativas como a Funai, vinculada ao Ministério da Justiça; a Funasa, ligada ao Ministério da Saúde e setores dos ministérios da Educação e Desenvolvimento Agrário. Contudo, pela falta de planejamento, de interação entre os diferentes setores da administração pública federal e por haver ainda uma estrutura física obsoleta, a política em curso é inadequada e incompatível com a realidade dos povos e comunidades indígenas. Agrava-se ainda mais esta situação quando o governo federal passa a tratar a questão indígena como um entrave ao seu programa de desenvolvimento.

No âmbito do Congresso Nacional coabitam as principais forças políticas e econômicas do país articuladas contra as demarcações de terras. Nele são gerados projetos de emendas à Constituição Federal com o intento de modificar o Art. 231 e, com isso, impedir que os povos indígenas tenham amparo constitucional nas lutas pela demarcação de suas terras. Os parlamentares apresentam, também, propostas legislativas para viabilizar a exploração das terras e de seus recursos ambientais e minerais, além de projetos para que sejam expedidos decretos legislativos suspendendo os efeitos de portarias do Ministério da Justiça, como uma estratégia para impedir ou retardar procedimentos demarcatórios. Estas iniciativas são, na maioria dos casos, inconstitucionais, no entanto elas acabam por tumultuar os debates em torno dos interesses indígenas e geram uma predisposição contrária ao tema.

As pressões geradas no Congresso Nacional influenciam o Poder Executivo, impedindo que sejam tomadas providências no sentido de resguardar os direitos indígenas. Influenciam ainda o Poder Judiciário, que deveria se distanciar destas disputas, mas acaba assimilando as pressões e, na maioria das vezes, tomando partido dos segmentos econômicos e privados. Conforme destaca Boaventura de Souza Santos, em recente artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, o Judiciário, que deveria “zelar pela sua independência”, em muitos casos passa a respaldar “demandas das elites político-econômicas e judiciais”. Longe de ser um fato isolado, ele observa que está em curso em vários países latino-americanos “um ativismo judiciário conservador que consiste em neutralizar, por via judicial, muito dos avanços democráticos que foram conquistados ao longo das duas últimas décadas pela via política, quase sempre a partir de novas Constituições”.

Portanto, no balanço deste final de 2009, a análise aponta para os obstáculos impostos pelas três mais importantes estruturas do Estado: o Poder Executivo que cede às pressões oriundas de poderosos grupos econômicos (empreiteiras, mineradoras, fazendeiros, madeireiros, transnacionais das energias), bem como de parlamentares e de militares inviabilizando com isso, a efetiva aplicação dos direitos indígenas; o Poder Legislativo, que se tornou (não a casa do povo como deveria ser) o espaço prioritário para articulação de ações anti-indígenas e, por fim, o Poder Judiciário que tem sido contagiado pelas disputas econômicas, políticas e passa a interpretar a Constituição Federal com a intenção de agradar e/ou acomodar interesses privados, percorrendo com isso um caminho perigoso, porque quase extrapola os limites de suas funções.

A conjunção das forças contrárias aos índios impõe as barreiras e delimita até onde o governo federal pode seguir com sua política indigenista. E, ao que tudo indica o presidente Lula, fiel aos limites impostos, estabeleceu uma meta para o ano que finda: 2009: demarcação zero! De fato, o ano termina sem que nenhuma terra tenha sido homologada ou registrada. Ao contrário daqueles que alegam que os procedimentos demarcatórios das terras indígenas estão quase concluídos, o Cimi insiste em afirmar que, das 988 terras indígenas, apenas 366 foram totalmente regularizadas, ou seja, estão registradas no Serviço de Patrimônio da União (SPU). As demais, 620, não tiveram seus procedimentos demarcatórios finalizados e, destas, 323 ainda estão sem qualquer tipo de providência administrativa.

Em Mato Grosso do Sul foi gerada uma verdadeira guerra contra os povos Guarani-Kaiowá e Terena que lutam pela demarcação de porções de terras dentro de seus territórios tradicionais, hoje ocupados por fazendas e canaviais. Diante de um quadro aterrador de violências e de preconceitos, o governo federal se omite, possibilitando que se estabeleça um processo genocida contra os indígenas. Entre os anos de 2005 e 2008, somente neste estado, 151 indígenas foram assassinados. Dados ainda parciais do Cimi mostram que em 2009 este Estado continuou sendo o mais violento, registrando 27 assassinatos dos 54 ocorridos no território nacional, o que corresponde a 50% das ocorrências. Além disso, nos últimos meses quatro acampamentos indígenas foram atacados e incendiados por milícias armadas. Em cada um dos ataques muitos indígenas acabaram feridos ou mortos.

O Governo Federal não foi capaz de garantir nem mesmo a proteção e segurança dos Grupos de Trabalho (GTs) criados pela Funai em 2008 para proceder estudos de identificação e delimitação de terras dos Guarani-Kaiowá. Somente em dezembro, depois que organismos internacionais e entidades de direitos humanos, tal como a Anistia Internacional, realizaram inúmeras manifestações exigindo providências do governo federal no combate às violências, foi que os GTs retornaram aos trabalhos com a proteção da Força Nacional de Segurança.

No âmbito da política de assistência, o ano de 2009 não foi nada animador. Desde o final de 2008 houve a promessa de que seria criada a Secretaria de Atenção Especial à Saúde Indígena e que os Distritos Sanitários Especiais teriam autonomia administrativa e financeira e, portanto, a proposta de um subsistema seria efetivamente colocada em funcionamento. Nada aconteceu. A Funasa permanece como responsável pela execução dos serviços de saúde, no entanto está desgastada devido às denúncias de desvios de recursos financeiros. Além disso, sofre em função do uso político que dela se faz, uma vez que, nas barganhas e disputas por cargos públicos, a Fundação foi entregue ao PMDB.

No tocante à educação escolar indígena pode-se dizer que o quadro é vexatório. As denúncias de abandono e precariedade das escolas existentes e a falta de empenho da maioria dos estados e municípios em criar estruturas adequadas conduziram a um inevitável processo de reorganização da oferta de educação escolar indígena . Nesta direção, foi articulada uma Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, mas este espaço de discussão e proposição foi convertido em um evento pró-forma. Enormes cifras do dinheiro público foram gastas para referendar uma proposta que estava decidida antes mesmo da realização das Conferências locais e regionais. Prova disto é que o decreto de criação dos “Territórios Etnoeducacionais” foi expedido no mês de maio, antes mesmo de serem realizados todos encontros preparatórios previstos. Os povos indígenas foram obrigados a aceitar a criação de um modelo de educação escolar que não ajudaram a formular e que, na prática, limita sua participação ao controle social, não alterando a lógica do modelo existente.

Por fim, é importante mencionar que, embora fragilizado, o movimento indígena exigiu mudanças na política, através de mobilizações nacionais (Terra Livre), regionais e locais. A CNPI (Comissão Nacional de Política Indigenista), por exemplo, insistiu em colocar na pauta das discussões as grandes demandas indígenas, tal como a aprovação de um novo Estatuto dos Povos Indígenas. No entanto, o governo federal não demonstrou interesse pela proposta dos índios, entregue à Câmara dos Deputados, e esta chegou a ser considerada “muito radical” pela Casa Civil.

O balanço da política indigenista demonstra que o atual governo não considera prioritários os interesses dos povos indígenas. Por esta razão os direitos destes povos acabam sendo negociados e desconsiderados em âmbito nacional. Ainda que alguns mais otimistas considerem as cifras gastas em seminários, fóruns, oficinas, por exemplo, um sinal do compromisso do governo com a causa indígena, objetivamente estes investimentos estão longe de garantir uma política adequada e eficaz.

Concretamente, nada mudou em 2009. Como consequência, as agressões contra as comunidades e lideranças indígenas são cotidianamente estimuladas por representantes do latifúndio, do agronegócio e por políticos. Nas disputas pela “propriedade privada” as práticas de violência acabam sendo naturalizadas. As reações e os discursos proferidos por autoridades e fazendeiros em Mato Grosso do Sul confirmam esta absurda realidade.

Embora integrantes do governo federal (Ministério da Justiça, Funai, Presidência da República) continuem afirmando que cumprirão com suas obrigações constitucionais no tocante aos direitos indígenas, na prática priorizam as articulações para atender a base de sustentação política e para assegurar que o programa de “desenvolvimento” seja fielmente cumprido. Afinal, em 2010, haverá eleições. E nas disputas pelo poder político os povos indígenas representam um estorvo.

Porto Alegre (RS), 07 de dezembro de 2009.

* Vice-Presidente do Cimi.

Publicado originalmente pela Adital em http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=43626

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