O nome dos bois

“Já que os africanos assim falavam,
Isso me compraz!”[2]

Por Tania Pacheco[1]

Uma fazenda de engorda foi a finalidade que a família Breves deu a parte do território da Marambaia, no século XIX. Só que o “gado”, por mais debilitado que estivesse ao chegar, andava sobre dois pés. Um “gado” negro, caçado na África, parcialmente exterminado nos porões infectos dos navios usados na travessia, que precisava ser “forrado” para ser vendido. Alguns permaneceriam, entretanto, trabalhando nas terras da família. É de seus descendentes que falamos, quando tratamos da luta dos remanescentes do Quilombo da Marambaia.

Mas é também deles que falam outros. Outros que têm espaço assegurado na grande imprensa e se dedicam, impiedosamente, a torcer a verdade e a apresentar não só as famílias da Marambaia como outras – de São Francisco de Paraguaçu, de Juína, do Vale do Guaporé e muitas mais – como mentirosos e usurpadores. “Nem a escravidão criou tanto quilombo”, titula um; “A usurpação e a deturpação se tornam a nova regra. A serviço de quem?”, escreve outro, e ainda:O Brasil deve ter consciência de que para crescer, distribuir riquezas e preservar as liberdades é necessário impedir que esse processo de relativização da propriedade privada ganhe a figura de um fantasma que passe a orientar a vida de todos. E ele está se tornando perigosamente concreto!”

Sabemos que os falsos profetas dessa orquestração hipócrita não falam em nome próprio. São novos Pero Vaz de Caminha, defendendo os interesses dos reis da ocasião. Em vez da pena e do pergaminho, empregam pseudo-noticiosos de tevês, páginas de jornais e revistas, modernos sites na internet. Porta-vozes inequívocos do capital, defendem um modelo de desenvolvimento que, para se manter, perdeu há muito humanidade e escrúpulos. Para os que praticam a “ética do mercado”, quilombolas, povos indígenas e outros que estejam em seu caminho na guerra pelo território, não importa que uso queiram dar a ele, têm (bem) menos valor que gado. São sub-raças, cidadãos de segunda classe, ignorantes sem valor no caminho do progresso.

Pior: grande parte da chamada classe média, os neurônios comprimidos entre a novela das sete e a das nove, se deixa levar pela falácia. Se comove com os laboratórios da Aracruz destruídos, os eucaliptos abatidos, as plantações de soja invadidas; se indigna contra as marchas impedindo a construção de mais uma barragem ou exigindo terra para viver e plantar; se revolta contra a “favelização que fatalmente ocorreria” se todos os “maracanãs” da Marambaia fossem entregues aos “usurpadores”.

Os bois a que me referi acima não são absolutamente os que foram (e ainda são, em muitos lugares) tratados como gado. São, sim, bois gordos que se consideram exemplares de raça pura, alimentados com uma ração que mistura ganância e preconceito. Esses são os ingredientes que tornaram e tornam ainda “naturais” práticas como o genocídio de povos indígenas, a espoliação de populações tradicionais, a invisibilização de quilombolas, a marginalização dos negros nas cidades, o tratamento de populações vulnerabilizadas, enfim, como não-cidadãos. E isso tudo tem um nome: Racismo Ambiental.

Para infelicidade deles, a casa grande não engoliu a senzala e, agora, teme ser engolida por ela, na medida em que se vê confrontada com uma reação orgânica a seus privilégios e desmandos. Pela primeira vez, Zumbi não está sozinho, assim como não estão sozinhos os Tremembé, os Jenipapo-Kanindé, os Enawene Nawe, as quebradeiras de coco babaçu, os geraiszeiros, os caiçaras, os ribeirinhos e tantos outros que, Brasil afora, são os verdadeiros defensores do nosso território e da nossa natureza.

O caso da Marambaia não é gratuitamente emblemático. Primeiro, na medida em que, lado a lado com a ARQIMAR e a indiscutível liderança de Vânia Guerra, estão ONGs, acadêmicos, movimentos sociais, defendendo seus direitos em campanhas, em mobilizações e junto ao próprio Poder Judiciário. Um poder, aliás, em conflito consigo mesmo, nas idas e vindas da Justiça, praticada por uns, e da subserviência, aplicada por outros. Segundo, pela situação talvez única em que a proposta é de convivência e apoio mútuo, entre remanescentes do Quilombo e a Marinha, para a preservação da vida e da ilha.

Há uns quatro anos, Roberto Bissio escreveu no Observatório da Cidadania um editorial com título para mim inesquecível: “Vergonha!”. Era um brado contra as discriminações e injustiças que nos cercam e que não podemos continuar a tolerar. A bela revista editada pela Fase sobre a Marambaia tem nome igualmente forte: “Existimos”. Mas, ao contrário do de Bissio, esse é um brado de esperança e de desafio. Esperança de que os direitos e a cidadania sejam reconhecidos pela Justiça e por toda a sociedade, e que possam viver em paz em sua ilha, pescando, plantando, dançando em torno das fogueiras na praia. Desafio pautado nos mais de 100 anos durante os quais, ao mesmo tempo em que preservaram a Marambaia, conseguiram manter acesa dentro de si a chama da luta. Uma luta que não é só deles, mas de todos os que de fato defendem a justiça e a democracia.

[1] Escrito para a revista da Justiça Global, em setembro de 2007.

[2] Trecho de poema de Vânia Guerra, publicado na revista “Existimos”.

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