Portal do Ibase: Entrevista com Tania Pacheco

Por Flávia Mattar
Colaborou Diego Santos

O II Seminário Brasileiro de Combate ao Racismo Ambiental, realizado no final de março, em Fortaleza, chegou ao fim com saldo positivo. Tania Pacheco, consultora do Projeto Brasil Sustentável Democrático (BSD) da Fase e organizadora do seminário, fala sobre os avanços conquistados com a realização do evento e mostra como o racismo ambiental está relacionado com conflitos urbanos, inclusive a remoção de favelas. (mais…)

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Jeovah Meireles: cearense, Tremembé, geógrafo, Jenipapo-Kanindé, professor, nordestino e doutor, mas, acima de tudo, um digno cidadão brasileiro

“O elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, muito menos, ‘sente’. (…) O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e não um mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo-nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, assim, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente às leis da história, a uma concepção do mundo superior, científica e coerentemente elaborada, que é o ‘saber’. Não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação”.[1]

Tania Pacheco*

Ameaças a lideranças de movimentos sociais, principalmente na área rural, há muito se tornaram coisas corriqueiras. Em um grande número de casos, suas conseqüências vão bem além da mera intimidação, quer física, quer por meios legais. Chico Mendes já era uma personalidade conhecida internacionalmente quando as ameaças contra ele se concretizaram em assassinato, mas, antes e depois de 1988, muitos outros casos se somaram às estatísticas desse tipo de crime. Na maioria, essas pessoas morreram como viveram – anônimos para a maioria da população -, na medida em que os meios de comunicação simplesmente ignoraram esses “incidentes” como se fossem “normais”. Afinal, tratava-se de agricultores familiares, sem terras, ribeirinhos, caiçaras, indígenas, quilombolas…

Se para nós eram lideranças de populações tradicionais lutando pelo que consideravam seus direitos ante o avanço do capital, para a chamada “mídia” e para grande parte (ou a maioria?) das classes média e alta, inoculadas pelo ideário da grande imprensa e do Jornal Nacional, nada mais eram que “desordeiros” se colocando no caminho do desenvolvimento e do progresso.  Tanto que sete anos se passaram desde a morte de Chico Mendes até que, em 2005, o assassinato de Dorothy Stang merecesse novamente a atenção dos meios de comunicação, com destaque nacional e internacional. Agora, a vítima era uma missionária estrangeira, também reconhecida além de nossas fronteiras, fuzilada a queima-roupa por assassinos de aluguel.

Para baixo da Amazônia, o capital tem um pouco mais de cuidado ao agir. Se auto-impõe limites na escolha de seus capangas e sofistica suas armas. Contrata artistas e atletas para defender seus interesses. Mostra, em sites bem paginados, uma pretensa ação social e ambiental para o “bem das comunidades onde atua”, enquanto, no mesmo espaço, nega sequer o direito à existência aos grupos cujo território usurpou. Subvenciona articulistas e editorialistas, que se encarregam de orquestrar verdadeiras campanhas para desacreditar lutas justas. Aposta forte na existência de funcionários corruptos de órgãos dos executivos, nos financiamentos das campanhas de membros dos legislativos e na conivência da banda podre do Judiciário para garantir em todas as instâncias os seus interesses. Como se não bastasse, conta ainda com a omissão de boa parte da intelectualidade, inclusive da própria academia, que raramente transforma seus “objetos de estudo”, nesses casos específicos, em “sujeitos” merecedores de verdadeiro respeito cidadão. Felizmente, essa nem sempre é a regra, assim como a receita utilizada por essas empresas nem sempre dá certo.

Jeovah Meireles, Doutor em Geografia Física pela Universidade de Barcelona e Mestre em Geociências pela Universidade Federal de Pernambuco, dificilmente pode ser encontrado em Fortaleza, nos fins de semana. Depois de cinco dias de aula na Universidade Federal do Ceará, entremeados com reuniões do Fórum em Defesa da Zona Costeira o Ceará e com trocas de e-mails com redes nacionais e internacionais, como a Manglar, é hora de viajar. Sozinho ou com um grupo de alunos, vai ao encontro de seus outros companheiros de luta, sejam eles os Tremembé, os Jenipapo-Kanindé ou, ainda, pescadores e marisqueiras expulsos pela carcinicultura ou pelo turismo predatório.

No seu jeito simples, na sua fala tranqüila, na sua aparência despojada e quase tímida, ele bem poderia ser confundido com um funcionário da secretaria de algum órgão público ou, mesmo, da própria universidade onde leciona. Mas tudo isso desaparece quando Jeovah começa a falar das injustiças praticadas contra esses povos, contra os mega-empreendimentos turísticos que querem privatizar a terra dos Tremembé, contra a destruição da Lagoa Encantada, contra os efeitos da carcinicultura. Aí, embora a fala se mantenha sob controle, nos olhos e no tom da voz a indignação brota e prevalece.

Foi assim no I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, realizado no final de novembro de 2005, no Rio de Janeiro, quando ele denunciou, entre outras, a empresa Ypióca pelo uso ininterrupto da água da Lagoa Encantada (sagrada para os Jenipapo-Kanindé), para alimentar seus 4.000 hectares de monocultura de cana e produzir cachaça, e pela poluição por vinhoto do lençol freático da reserva.

Sua exposição mobilizou a plenária a tal ponto, que uma das relatoras do evento, Márcia Gomes, levou suas denúncias para o marido, o jornalista alemão Norbert Suchanek. E Norbert transformou-as numa reportagem, publicada já em dezembro no site ambiental alemão Bio100 (http://www.bio100.de). Sob o título “Hipocrisia na Bio-Qualidade”, ele divulgava as informações de Jeovah e questionava o fato de a empresa poluidora ostentar o selo de bio-certificaçação criado pelo Instituto von Demeter. Era o início de uma guerra. A primeira.

A cachaça bio-certificada com as águas dos índios

A Ypióca reagiu em seguida. Ameaçou os responsáveis pelo site, conseguindo que o artigo fosse retirado da internet. Em carta escrita em alemão, atacava o jornalista, afirmando que ele nunca estivera no Ceará, e buscava descredenciar seu trabalho, além de ameaçá-lo com processo por calúnia e difamação. Norbert não desistiu, entretanto. Manteve-se em contato com Jeovah e, no dia 12 de janeiro de 2007, publicou nova denúncia, agora no semanário berlinense Freitag. Sob o títuloRacismo ambiental em selos orgânicos – Cachaça Ypióca ameaça lagoa de Indígenas”, ele noticiava ainda a retirada, em dezembro de 2006, do selo de certificação concedido à empresa pelo Instituto Biodinâmico, de São Paulo, o braço brasileiro do Instituto Von Demeter.

Em Fortaleza, a notícia ganhou novo formato, em reportagem do jornalista Daniel Fonsêca. Recusada pelos jornais locais, ela foi divulgada exclusivamente em listas na internet. Mesmo assim, conseguiu seus efeitos; e a reação não se fez esperar. A Ypióca contratou advogado, que em junho deu entrada em processo contra Jeovah e Daniel, alegando que “Inexiste qualquer registro histórico da presença de índios naquela área do litoral cearense (Lagoa da Encantada, Aquiraz), sendo oportuno assinalar que o nome “Jenipapo-Kanindé” foi criado por interessados no ressurgimento de índios no litoral cearense, em contraposição aos conceitos e regras dos arts.231, da Constituição Federal, e do Estatuto do Índio (Lei n. 60001/73, arts 3, I e II, 17 e 23)”. E ainda: “Não há, em toda costa cearense, qualquer comunidade que tenha ou mantenha usos, costumes e tradições tribais. (…) Pessoas interessadas, sem qualquer autoridade científica, vêm encetando movimento resurgicionista (sic) de índios no litoral nordestino, de alta valorização turística, convencendo humildes pescadores das vantagens de assumirem postura de silvícolas. ONGs internacionais, ludibriadas por essas encenações, se dispõem a remeter recursos financeiros para ajudar o que pensam ser índios de verdade.”

A tentativa de criminalização de Jeovah e Daniel teve forte resposta, entretanto. Uma nota de denúncia e repúdio – “Ypióca tenta intimidar para calar os movimentos sociais” – às ações da Ypióca e da Nova Atlântida (da qual tratarei a seguir) foi escrita e apoiada, até o momento, por cerca de 115 entidades nacionais, sete internacionais, além de mais de 220 pessoas físicas, dentre as quais muitas da entidades do GT contra o Racismo e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Mais que isso, teve o poder de provocar a ira do presidente da Ypióca, em carta postada dia 8 de agosto, no site CMI Brasil (http://www.midiaindependente.org/eo/blue/2007/08/390270.shtml?comment=on).

Parte da algaravia produzida pelo rábula está ali reproduzida, mas o senhor Everardo Ferreira Telles vai bem mais longe, a meu ver se arriscando – ele, agora – a dois processos: por calúnia e racismo. Sem citar nomes, refere-se à Nota de protesto classificando as pessoas que a subscrevem e o professor e os jornalistas por elas defendidos como “sacripantas” e “xiitas ideológicos, que fingem abraçar causas sociais para (sic) o fim de obterem vantagens econômicas por debaixo dos panos, servindo à sua vaidade e a seus interesses espúrios”. Na sua visão, os Jenipapo-Kanindé são seres “hiposuficientes”, que vêm sendo manipulados e submetidos “a uma lavagem cerebral, visando a assimilar práticas, cultos, danças, costumes de comunidades indígenas da época da colonização”. O objetivo dos “sacripantas”, segundo ele, é “a expropriação branca, sem indenização, de amplas áreas de terras produtivas, tituladas no registro de imóveis muito antes da Constituição Federal de 1934. Trata-se de uma técnica de expropriação imobiliária baseada em fraude, usando a bandeira do indigenato”.

Um parênteses necessário e quiçá elucidativo: enquanto escrevia este texto, tive a curiosidade de entrar no site do Instituto Biodinâmico e pesquisar a situação da Ypióca. Para minha surpresa, recebi como resposta o selo de certificação do grupo. Mandei imediatamente uma reclamação, indagando se ele não havia sido retirado. Menos de meia-hora depois, recebi uma resposta informando que “A Ypioca realmente não deveria estar em nosso site, foi um equívoco, já reparamos o cadastro e atualizamos o site. Estaremos agora averiguando o que ocasionou o retorno do referido Projeto para o site para evitar que isto volte acontecer com este ou qualquer outro Projeto que não deva ali ser mencionado. Desculpe pelo contratempo. Alida Câmara”. Fecho o parênteses.

A virulência do senhor Everardo Ferreira Telles, o poder da Ypióca, a importância que o selo tem para as vendas da cachaça no mercado internacional e, ainda, os primeiros comentários feitos no site, misturando o apoio irrestrito à empresa a acusações a populações tradicionais e, até, à defesa dos PMs envolvidos no massacre de Eldorado de Carajás fazem crer, entretanto, que essa luta está bem longe de terminar.

O feitiço contra o feiticeiro: qual a origem do dinheiro da Nova Atlântida?

A segunda empresa que está processando Jeovah Meireles tem objetivo grandioso: construir a Cidade Nova Atlântida, uma Cancún cearense que comportaria 42 hotéis e resorts cinco estrelas, seis condomínios residenciais, oito campos de golfe de tamanho oficial e cinco marinas com ancoradouros, num complexo turístico de alto luxo voltado sobretudo para estrangeiros.

Um investimento de 15 bilhões de dólares a ser implantado onde? Na Terra Indígena Tremembé de São José e Buriti. Como afirmou Jeovah, já em novembro de 2005, “os estudos para a implantação dessa estrutura faraônica não levaram em conta a presença indígena, a existência de sítios arqueológicos, os impactos cumulativos, nem muito menos os custos sociais, ecológicos e culturais”. Não seriam só as dunas, os riachos, as lagoas, a mata do tabuleiro litorâneo e sua fauna ou o manguezal do rio Mundaú que seriam afetados, mas a própria sobrevivência dos Tremembé.

Jeovah comprou a briga. Realizou um estudo sobre os impactos socioambientais que o empreendimento traria, e a denúncia de irregularidades no processo de licenciamento ambiental fez com que a Justiça Federal concedesse liminar solicitada pelo Ministério Público, suspendendo as obras. A Nova Atlântida se viu obrigada, temporariamente, a limitar sua ação à construção de dois viveiros, em Itapipoca, onde diz já estar cultivando cerca de 20 mil mudas de palmeiras e coqueiros, que serão replantadas no complexo. Paralelamente, vem buscando dividir os Tremembé, oferecendo-lhes pseudo-vantagens em troca de suas terras, cujo direito de posse é reconhecido pela própria Funai. Como se isso não bastasse, seguindo os passos da Ypióca, decidiu apelar para a intimidação do autor das denúncias, através de ações na Justiça.

O caso tomaria novo rumo a partir do final de julho, entretanto. No dia 29, o Estado de Minas e o CorreioBrasiliense abririam manchetes para uma reportagem de Lucas Figueiredo, enviado pelo jornal mineiro ao Ceará. Segundo ele, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda, decidira investigar o empreendimento e seu idealizador, o empresário espanhol Juan Ripoll Mari. De acordo com a matéria, um Relatório de Inteligência do Coaf, de janeiro deste ano, “aponta movimentações financeiras milionárias do presidente da Nova Atlântida, Juan Ripoll Mari, espanhol com residência no Rio de Janeiro. O documento cita também uma investigação conjunta das polícias da Suíça, França e Itália, de 1991, na qual um investigador suíço acusou Ripoll Mari pela suposta reciclagem de dinheiro sujo do narcotráfico, da máfia italiana e do terrorismo”.

Ainda apoiado no Relatório, Lucas escreve que “só numa conta no Bradesco, Ripoll Mari movimentou R$ 30 milhões em onze meses (novembro de 2005 a outubro de 2006). Parte do dinheiro foi enviada da Espanha. O valor elevado contrasta com as declarações de renda do empresário. Ao trocar informações com a Receita Federal, o Coaf descobriu que Ripoll Mari declarou não ter tido rendimentos entre 2002 e 2005, apesar de possuir 26 empresas em seu nome”. As descobertas envolvem a mulher (que teria dois CPFs) e o filho do empresário, ambos também acusados de “movimentação financeira incompatível”, e incluem denúncias de ligações dos três com uma quadrilha internacional especializada em tráfico de cocaína. Finalmente, no dia 3 de agosto, a Polícia Federal anunciaria, em seu site, a abertura de inquérito para investigar as fontes de recursos do grupo e suas atividades, no Brasil e no exterior.

Encerrando…

A bela nota elaborada pelas entidades de Fortaleza contém uma frase que venho utilizando e que plagiei, no título deste texto: “em defesa dos povos, somos todos e todas Jenipapo-Kanindé e Tremembé de São José e Buriti! Somos todos e todas Jeovah Meireles, Nobert Suchanek e Daniel Fonsêca”.

Sabemos bem que as Aracruz celuloses, as Ypiócas, as Nova Atlântidas e tantas outras não têm o direito e não podem continuar a se apossar de nossos territórios e a transformá-los em mercado livre do capital. Mas sabemos também que a elas se juntarão outras e mais outras. E que para que esse e outros processos criminosos – como a campanha racista e preconceituosa que vem sendo feita contra os remanescentes de quilombos – não sejam vitoriosos, é fundamental que a nossa indignação se faça ouvir de forma contundente. É necessário que artigos e reportagens como as que vêm sendo veiculadas por jornais como O Globo e O Estado de São Paulo (sobre os quilombolas, principalmente), ou notas como a do presidente do Grupo Ypióca tenham respostas.

De nada adianta trocarmos mensagens indignadas entre nós, enquanto os meios de comunicação convencem a chamada opinião pública de que índios, quilombolas e outras populações tradicionais estão impedindo o progresso e querendo se apossar de imensos territórios, para atrasar o País.

Nossas lutas urbanas são indiscutivelmente justas. Mas existe um outro Brasil que só “ressoa” quando um Chico Mendes ou uma Dorothy Stang são assassinados. Ou quando um Jeovah Meireles, um Daniel Fonsêca, um Norbert Suchanek – um alemão! – ou um Lucas Figueiredo decidem ousar e exercer suas cidadanias de forma plena e ativa. Quando decidem não só garantir, mas fazer também suas as vozes daqueles a quem ela é usurpada.

A criminalização dos movimentos sociais em curso tem que ser parada. Ou nos unimos, sem esquecer nossos problemas e interesses específicos, para lutar coletivamente por esse mundo mais justo do qual tanto falamos e sobre o qual tanto escrevemos, ou é melhor desligar o micro.

[1]Antônio Gramsci, Concepção dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p.139.

*Texto escrito em setembro de 2007, publicado originalmente em http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=1631.

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O nome dos bois

“Já que os africanos assim falavam,
Isso me compraz!”[2]

Por Tania Pacheco[1]

Uma fazenda de engorda foi a finalidade que a família Breves deu a parte do território da Marambaia, no século XIX. Só que o “gado”, por mais debilitado que estivesse ao chegar, andava sobre dois pés. Um “gado” negro, caçado na África, parcialmente exterminado nos porões infectos dos navios usados na travessia, que precisava ser “forrado” para ser vendido. Alguns permaneceriam, entretanto, trabalhando nas terras da família. É de seus descendentes que falamos, quando tratamos da luta dos remanescentes do Quilombo da Marambaia. (mais…)

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