O sertão carioca

‘A gente do mato, quando vai para a cidade, se sente muito pacato. Dá até dor de cabeça. Acho bonito, tem praia, aquela coisa toda, mas a gente tem medo do mar, medo de ser assaltado. Vai que a gente morre. Não gosto nem de falar. Desculpe o meu dizer, sou matuto mesmo. Tem coisa que não é do nosso mundo’. (Bichinho, 55 anos)

Por Caio Barreto Briso, O Globo

No alto de uma montanha em Campo Grande, a caminho do Pico da Pedra Branca, o mais alto do Rio com seus 1.024 metros, vivem agricultores isolados do resto da cidade. Cerca de dez famílias habitam casas de pau a pique, sem energia, onde a luz vem de velas e lampiões, como no século XIX. As notícias do mundo chegam pelo rádio de pilha. Burros fazem escoar toda a produção de banana prata e caqui da região, metade dela orgânica. São os resquícios do sertão carioca, como era chamada a Zona Oeste, antiga área rural, até os anos 1950. Para chegar às casas mais distantes, caminha-se até 4 horas em uma trilha pela mata fechada (depois de duas horas de carro, para quem sai do Centro). Dos sussurros da floresta nascem histórias de “visagens”, assombrações da meia-noite que muitos juram existir. Durante seis dias, uma equipe do GLOBO conviveu com os agricultores, compartilhando refeições, acompanhando o trabalho na roça, desbravando o sertão carioca.

Sítio do Tinho, o Elton de Oliveira Rosa, de 58 anos, no ponto habitado mais alto da Serra da Virgem Maria - Daniel Marenco / Agência O Globo
Sítio do Tinho, o Elton de Oliveira Rosa, de 58 anos, no ponto habitado mais alto da Serra da Virgem Maria – Daniel Marenco / Agência O Globo

A serra

Bananeiras dançam quando o vento sopra no alto da montanha onde ninguém tem pressa, porque o tempo, esse inimigo, lá em cima é companheiro. Ao encontrar árvores no caminho, a rajada de ar vira sussurro triste, sinfonia de troncos, galhos e folhas se debatendo na escuridão. É hora do jantar. Sobre a mesa, um prato de batata doce, uma travessa de alface, uma moringa d’água. Tudo daquela serra: a batata, a alface, a nascente. O fogão a lenha é lareira improvisada em dias frios. A luz vem de uma vela e uma lamparina que iluminam o rosto de Arnaldo Avelino da Costa, talhado na roça, enquanto ele envolve o acordeon no peito nu. O ar tem cheiro de querosene. Seu Arnaldo fecha os olhos, as mãos de pegar enxada amolecem. Da sanfona sai um lamento sertanejo. Dá vontade de chorar.

É o fim do primeiro dia em uma pequena comunidade de agricultores isolados, distantes até entre si, que vivem em casas de pau a pique escondidas sob o manto verde do Maciço da Pedra Branca. Alguns não têm energia elétrica até hoje, como no início do século passado. São cariocas, embora nunca tenham ido ao Cristo Redentor, nem pulado sete ondas no réveillon de Copacabana. O sotaque, o jeito de falar, tudo difere do que está ao redor. Vivem dentro da cidade e ao mesmo tempo fora dela, suspensos no espaço e no tempo. Para chegar às casas mais distantes, no alto da Serra da Virgem Maria, são quase quatro horas de trilha a pé, subindo em direção ao Pico da Pedra Branca, o ponto mais alto do Rio com 1.024 metros. Uma viagem a outro mundo sem sair da cidade.

Seu Dino, de 82 anos, junto a sua casa de pau a pique, no alto da Serra da Virgem MariaFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Seu Dino, de 82 anos, junto a sua casa de pau a pique, no alto da Serra da Virgem MariaFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo

VIDA SIMPLES DOS MORADORES DO MACIÇO DA PEDRA BRANCA

A subida começa na Estrada da Batalha, nos confins de Campo Grande, Zona Oeste, onde encontramos o filho de seu Arnaldo. Quando estava grávida, sua mãe sonhou com o pai. Disse o velho que o primeiro neto deveria herdar seu nome e apelido. E assim, a montanha pariu outro Claudino Avelino da Costa, conhecido como Bichinho, como queria o avô. Com 1,93m de gentileza, ele avança sobre a trilha num pinote só, sem derramar suor. Percorre desde que nasceu, há 55 anos, o caminho que separa a Serra da Virgem da Maria da cidade grande. Depois de três quilômetros morro acima, Bichinho aponta para o chão:

– Aqui era uma nascente muito querida por nós. Secou há uns três meses. Só se chover muito volta a cair água, e mesmo assim meio acanhada. A fonte está rareando.

Caminha-se pela mata quase fechada, numa trilha sem placas e sem guardas que vai se estreitando, e onde o clarão do sol entra de vez em quando no desencontro da folhagem. Emergem sobre a floresta as torres de energia instaladas por Furnas no início dos anos 1970. Elas cortam os 12.500 hectares (125 km2) – nada menos que 10% de toda a capital – que formam o Parque Estadual da Pedra Branca. É a maior floresta em área urbana do mundo, faz fronteira com 17 bairros da cidade. Aquelas torres imensas abastecem de luz boa parte da cidade, mas não os vizinhos da montanha.

– Meu pai lutou para ter luz lá em cima. Vieram engenheiros, chegaram a ir ao nosso sítio, mas nunca voltaram – conta Bichinho.

O parque foi criado em 1974, mas famílias como a de Arnaldo e Bichinho vivem na região há pelo menos 100 anos. Habitam o mesmo espaço que mais de 300 espécies de aves, répteis, anfíbios e mamíferos. Convivem com caçadores, que entram escondidos no meio da noite, armados com espingardas e cães. Como o parque tem apenas 51 funcionários, quase não há fiscalização. Com a supervisão de órgãos ambientais, as antigas famílias podem morar, plantar e colher, contanto que mantenham a direção do parque informada sobre qualquer intervenção.

O matuto

Antes do amanhecer, canta solitário o único galo de seu Arnaldo. Havia também uma galinha, mas acabou devorada pelo cachorro há poucos dias. De madrugada, uma neblina espessa carregada de umidade reduziu a temperatura. Era a chuva chegando. O rádio de pilha, janela para o mundo de quem não tem luz, anunciava que lá embaixo seria um dos dias mais quentes do ano. Só lá embaixo.

Seu Arnaldo vai nos guiando até a casa de Eltinho, como é conhecido Elton de Oliveira Rosa, de 58 anos. “Esse é matuto”, avisa. Com agilidade, tira do caminho pedras traiçoeiras capazes de derrubar um burro num passo de má sorte. Ao deparar-se com um córrego cercado por pedras, fica parado, espiando, antes de subir nelas. Remove umas aqui, outras acolá, e a água passa a correr em abundância. Volta a caminhar, para de novo. Empunha um galho, tira o facão da cintura, parte o galho ao meio. Em dez segundos fabricou um cajado:

– Minha bengala – brinca.

Tem 80 anos de idade. Parece Dersu Uzala, personagem do filme homônimo de Akira Kurosawa, um caçador siberiano que vive em profunda comunhão com a natureza. Nada como um homem vivendo no lugar a que pertence.

– Aqui eu nasci – diz, pensativo, ao passar por um campo onde só se vê mato. – Vocês estão vendo a Virgem Maria morrendo. Antes tinha festa na roça aos domingos, a gente subia no burro para cortar capim na Pedra Branca. Isso aqui tinha vida. Quase todos desceram por causa dos filhos. Esses moleques de hoje não querem saber de roça. Tenho uns na minha família que… Deixa para lá. A preguiça é tanta que me dá febre.

Eltinho surge na lonjura, numa quebrada do caminho, com uma foice na mão. Está cortando capim para Ruanda, sua única mula. Nunca recebeu a visita de um desconhecido. Muito menos dois jornalistas curiosos pelo seu modo de viver. Ele olha com desconfiança:

– Isso aí não vai prejudicar a gente, seu Arnaldo? – pergunta.

Concorda em trocar umas palavras, mas só depois de cortar o capim. Olha para uma árvore ao lado, arranca os cipós caídos qual franjas. Servem para embalar o mato na cangalha de Ruanda, que leva nas costas seu almoço.

Estamos a 800 metros do nível do mar, segundo o GPS. Acima da casa de Eltinho não vive mais ninguém. Quem mais mora naquela altitude em terras cariocas? Ele está mais alto que o Cristo, no mesmo nível de Nova Friburgo. Do início da trilha até o ponto onde vive, são quase quatro horas de caminhada em bom ritmo, parando quando necessário, porque a subida é árdua. Com as duas horas de carro que separam Centro do Rio e trilha, leva-se o mesmo tempo para chegar lá no alto do que percorrer 436 km de automóvel até São Paulo.

Com o peito aberto, forte como um touro, Eltinho mostra as duas casinhas feitas com aquelas mãos calejadas. Uma delas tem as telhas desniveladas: na chuva, goteja. É um homem sem luz, sem celular, sem televisão. Não tem estudo. Aprendeu na montanha tudo o que sabe: roçar, capinar, plantar, colher, esperar. Acorda às 5h e dorme às 19h diariamente. Uma vida de passarinho. Desce à cidade uma vez por semana porque é preciso. Só conhece Campo Grande e é bem capaz de perder-se nas ruas do bairro. Fica sempre por ali, nas cercanias do parque, vendendo bananas de sua roça. Mora com a mulher, com quem é casado há 28 anos. Diz que não quiseram ter filhos, sem dar detalhes. Soube da derrota do Brasil para a Alemanha? Ele responde sem nenhuma certeza:

– Ouvi dizer.

Dias depois, enquanto descíamos a trilha de volta para a civilização, esbarramos com Eltinho no caminho. Ele estava indo “comprar uma carninha”. Mais solto, respondeu a outra estranha pergunta que, no teto do Rio, ninguém se faz: o que é a felicidade?

– Meu filho, a pessoa ‘vévi’ mais lá em cima do que embaixo. O cara ‘panha’ um arzinho ‘bão’, toma um suspiro, tem sombra, tem nascente. Quem bebe água da nascente não adoece. Adoro limpar uma soca de banana, plantar um caqui. Felicidade é isso.

Gostaria de ter luz em casa, Eltinho?

— Não tem precisão. No escuro o pernilongo não acha os caminhos.

Bichinho, como é conhecido Claudino Avelino da Costa, de 55 anos, em um dia de trabalho no bananal. O corte das bananas é a fonte principal de renda da família - Daniel Marenco / Agência O Globo
Bichinho, como é conhecido Claudino Avelino da Costa, de 55 anos, em um dia de trabalho no bananal. O corte das bananas é a fonte principal de renda da família – Daniel Marenco / Agência O Globo

A banana

“Sertão carioca” é como era chamada a Zona Oeste do Rio até os anos 1950. Foi esse o título de um livro publicado em 1936 pelo ilustrador Magalhães Corrêa, um retrato geográfico da antiga zona rural carioca, onde se vivia em casas de pau a pique feitas com bambu e barro em sua estrutura, e uma madeira mais sólida no esteio, a base da casa. Inúmeras ilustrações do autor – que se encantou com a região de tal maneira que, mais tarde, mudou-se para um sítio escondido por lá – são muito atuais. Não à toa a noção de tempo é tão vaga, tão imprecisa quando se está na Serra da Virgem Maria. Passado e presente se confundem. Dezenas de casas são exatamente como antes. Um conhecimento secular passado de pai para filho. Tiago dos Santos, 78 anos, português de humor incerto, tira o boné para ensinar como se faz “uma casa para durar 100 anos”, embora ele próprio já tenha se mudado para uma de alvenaria, no pé da serra.

– Tem que ser bambu maduro. Mas não basta. Precisa tirar na lua minguante, época em que o bambu não dá bicho. Se tirar na lua nova, apodrece em um ano. Esteio precisa ser de ipê ou massaranduba – afirma, com essa característica típica dos homens de lá: a de só abrir a boca quando se tem certeza do que diz.

Nem tudo se manteve. Não há mais terreiros de umbanda desde que morreram Tonhozinho e Neco. Mudou também o que se planta naquela terra. Antes, reinavam cafezais. Depois veio a época da laranja. Hoje cada um planta o que quer, mas o forte, o que dá o ano todo, o ganha pão semanal de aproximadamente 50 agricultores, é a banana prata. Todo mês, pouco mais de 10 toneladas descem a serra. Não é tanto, mas é constante. Com um detalhe: são bananas orgânicas, vendidas a R$ 7 o quilo no circuito especializado de feiras na Zona Sul, Tijuca e Barra.

– A gente era orgânico e nem sabia. Nunca tinha ouvido essa palavra – afirma Bichinho, com a foice na mão e quatro pencas de fruta nas costas, coisa de 40 quilos. – Há cinco anos, quando as feiras orgânicas começaram, tinha gente aqui em cima que me chamava de maluco. Atravessar a cidade para fazer feira, onde já se viu? Em Ipanema, a gente dava bom dia e as pessoas não respondiam. A gente era bronco mesmo, até deprimia.

Hoje é diferente. Astros de novela consomem orgânicos. Bichinho é abraçado pelas senhoras ipanemenses, que sentem sua falta nas terças em que ele não vai à feira. Ele fica sem jeito, mas gosta do carinho. Virou homem ocupado. É um dos diretores da AgroPrata, a associação fundada pelos próprios produtores da região. Pela entidade, Bichinho foi de ônibus para São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Adorou a experiência. Seu sonho de infância estava por vir: voou de avião ano passado, do Rio a Brasília. Sempre devagarinho, já aprendeu a fazer banana passa, licor e vinagre de banana. Está ensinando aos outros da região.

– A gente sem a banana não é nada nessa serra. O segredo é roçar duas vezes por ano, e deixar a terra se alimentar da própria bananeira.

Ir para a cidade fazer feira não é um costume tão antigo para eles. Até os anos 60, poucos deixavam o alto da montanha. A psicóloga Alice Alves Franco, nascida em Campo Grande, conhece bem a história do lugar. Sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal Rural (UFRRJ), na área de psicologia social, foi sobre a memoria e identidade da comunidade agrícola de Rio da Prata. Quando está triste, Alice visita a montanha.

– É o caso singular de um grupo que conseguiu manter suas características, seus costumes, até seu sotaque. A pesquisa mostrou que algumas famílias estão lá há 150 anos. Essa memória precisa ser preservada.

Nos domingos, a feira aos pés da serra, na Estrada da Batalha, oferece café da manhã. Tudo no sítio de Edson Paiva, neto da parteira mais famosa da região, Dona Nonola, que pariu quase todos os marmanjos com mais de 40 – inclusive Bichinho e seus três irmãos, todos bem distantes da roça.

Seu Arnaldo olha para o primogênito com orgulho. O único que o acompanhou. O outro filho homem virou porteiro. “É evangélico”, diz, e abaixa a cabeça. Ele não os julga por isso. Sabe que a vida na roça não é para qualquer um. Seu próprio pai nunca lhe meu moleza, foi enxada na mão a infância toda, e porrada. Ele e Bichinho brigam vez ou outra, mas o filho sempre abaixa a cabeça para o velho homem da roça, respeitado por todos na região. Lado a lado, amolando a foice cada um a seu jeito, parecem irmãos.

– Quando ele morrer, eu vou logo depois – diz, longe do pai.

A distância, Seu Arnaldo o espia, enquanto o homem prepara os animais para a descida. “Como é trabalhador esse meu filho”, diz, emocionado. Para quem aprendiu a medir o valor de um homem pela sua disposição ao serviço, esse é o maior elogio que ele pode fazer.

Bichinho conduz os burros com caixas de bananas na trilha que leva ao pé do morro, onde fica a associação de moradores, que vende o produto deles para feiras orgânicas - Daniel Marenco / Agência O Globo
Bichinho conduz os burros com caixas de bananas na trilha que leva ao pé do morro, onde fica a associação de moradores, que vende o produto deles para feiras orgânicas – Daniel Marenco / Agência O Globo

O burro

Tac, tac. O ferrador martela com força os cravos nas novas ferraduras do burro. Antes, foi preciso aparar cada casco, limpar as quatro solas, um trabalho penoso. Cada agricultor faz isso, no máximo, uma vez por mês, pagando ao ferrador R$ 70 pelo conjunto. O “sertão carioca” é um dos poucos lugares da cidade onde ainda se encontra esse velho ofício. Cuidar bem do animal faz parte da cultura local. É da saúde deles que depende o escoamento de toda a produção da Serra da Virgem Maria, já que não passam carros pela trilha, sinuosa e cheia de pedras.

Embora a banana prata seja o principal produto levado às feiras, na época do caqui os burros são mais exigidos. De março a maio, chegam a fazer duas viagens por dia, subindo e descendo morro com as cangalhas cheias. Todo o caqui do estado vem dessa região: são 750 toneladas por ano, que os burrinhos carregam como podem. É tanto que os produtores perderam, na última safra, cerca de 20 toneladas. Motivo: não há gente o bastante na roça para colher as frutas.

– Posso ficar sem café, mas ele não fica sem a ração dele – afirma o português Tiago dos Santos, que tem um burro e um cavalo.

A história de Tiago, dono de fôlego de cabrito na hora de subir o morro, ajuda a entender como o lugar se formou. Antigo refúgio de índios picinguabas, a região passou a receber imigrantes europeus, a maior parte agricultores, que vieram ao Rio em busca de uma vida melhor, quando a República ainda usava fraldas na então capital. Seu pai migrou da Ilha da Madeira e deixou mulher e cinco filhos. Dez anos depois, veio a família toda, 14 dias balançando a bordo da embarcação inglesa North King. Seu pai tinha amigos em Santíssimo, portugueses agricultores que trouxeram caqui para o Rio. Foi o primeiro a plantar a fruta na Serra da Virgem Maria. Hoje, todos fazem o mesmo.

– Meu pai começou a plantar, mas eu distribuí as mudas. Ele não fez isso, não. Dei mais de 5 mil mudas, não dá nem para contar.

Além de descer a produção morro abaixo, os burros também são úteis para levar o que quer que seja para o alto, como compras de supermercado. Um burro vive, em média, 30 anos. Quando um morre, a tristeza na roça é grande, mas logo entra outro no lugar, mais jovem e forte.

Retrato do paraibano José de Araújo, de 50 anos, com uma lamparina, sentado na porta da casa onde mora - Daniel Marenco / Agência O Globo
Retrato do paraibano José de Araújo, de 50 anos, com uma lamparina, sentado na porta da casa onde mora – Daniel Marenco / Agência O Globo

O mistério

À noite, no meio da roça, é hora de contar “visagens”, “causos da meia-noite”, mistérios sem fim. O mais antigo naquelas bandas, Enedino Dias de Souza, de 82 anos, mora numa casa de pau a pique que está começando a ruir. Ele fala de seres fantásticos que surgem no meio do nada.

– Aqui tinha lobisomem, sabia, moço? De vez em quando também aparecia uma mulher sentada numa pedra, no meio da trilha. Tinha que pensar forte em Deus para ela desaparecer. Mas acho que até eles foram embora da serra.

Ao lado, seu irmão, Edgar, de 77 anos, diz que nada disso é verdade.

– É lenda. Mas que tem coisa estranha aí nessa floresta, isso tem. Já ouvi um berro no meio da noite e garanto: não era grito de gente, nem de bicho.

Uma das poucas mulheres que continuam na região, Sebastiana, filha de Dino, trabalha com a força de um homem. Sobe no caquizal, roça bananeira, corta capim, planta, colhe. Por onde anda, Negão, seu cachorro, vai atrás. Um dia, estavam os dois voltando para casa quando surgiu no matagal um homem vestido de branco. Ele estava abaixado, de cócoras, e levantou-se quando Sebastiana passou.

– Não sou mulher de ter medo, nem de acreditar nessas visagens, mas só fiz correr.

Outro dia, Bichinho teve um sonho. Era como se o seu corpo estivesse morto, imóvel, mas os olhos viam tudo. Aconteceu um troço na sua mente, de repente ele foi parar num aparelho de vidro com duas pessoas dentro, um homem e uma mulher. A máquina girava em alta velocidade. Ele fecha os olhos e volta a sonhar.

– Eu não tinha noção de como era o mundo. E eu vi o mundo. Eu vi a vida, as pessoas iam me explicando tudo. Vi um mundo branco, de neve. Outro todo vermelho e deserto. Chegamos a um lugar onde não havia sol, nem montanhas, nem bananal. Só barro. A nave pousou e eu vi uns toquinhos de gente, tudo baixinho e cabeludo, que zumbiam como abelhas. Tinha uma luz ao meu redor. Eu flutuava – recorda. – Vou morrer um dia, mas sei que ainda vamos descobrir outros mundos.

Ele tem razão. Há mundos completamente diferentes do nosso. Estão mais perto do que a gente imagina.

Imagem destacada: Retrato do Seu Arnaldo, com seu acordeon de oito baixos, no quarto onde dorme ouvindo radio de pilha, no alto da Serra da Virgem MariaDaniel Marenco / Agência O Globo

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ulysses Levi.

Comments (1)

  1. Excelente reportagem! O único reparo é sobre Magalhães Correa. Ele não foi apenas um ilustrador! E nem ficou conhecido somente por isso. Teve destaque em diversas áreas intelectuais, além de ser considerado um pioneiro na defesa dos meios naturais. O maciço da Pedra Branca realmente é único.

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