Patrícia Bonilha, Assessoria de Comunicação do Cimi
Uma das preocupações expressas pelas seis relatorias especiais de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) que estiveram reunidas com a liderança indígena Eliseu Lopes Guarani-Kaiowá no último dia 24, em Genebra, na Suíça, é justamente a definição de qual delas poderia receber o caso Guarani-Kaiowá. Isso significa que a situação de violação de direitos deste povo é tão grave e extensa que ela pode ser acompanhada por todas as relatorias com as quais Eliseu se reuniu: direito à alimentação; pessoas internamente deslocadas; violência contra a mulher; defensores dos direitos humanos; movimento ilícito de resíduos tóxicos; e, logicamente, a de povos indígenas. Há ainda a possibilidade do caso Guarani-Kaiowá ser acompanhado mais de perto pela relatoria especial de discriminação racial, com a qual não foi possível Eliseu se reunir.
Essas reuniões fazem parte da programação de incidência internacional que acontece desde a semana passada na Suíça, Alemanha, Bélgica e Itália com o objetivo de denunciar o severo aumento da violência e das violações de direitos contra os povos indígenas no Brasil, especialmente a situação de extrema barbárie que o povo Guarani-Kaiowá enfrenta atualmente no Mato Grosso do Sul. Esta incidência é uma iniciativa do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e das organizações Franciscanos Internacional, Rede de Ação e Informação “Alimentação Primeiro” (Fian-Brasil), Anistia Internacional e Justiça Global, além da agência de cooperação DKA. Exemplares da versão inglesa do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2014, publicado pelo Cimi, foram entregues a todos as relatorias.
Violações do passado e do presente
Ao dar seu testemunho sobre as principais ameaças que afligem o seu povo, Eliseu denunciou tanto os problemas históricos – como, por exemplo, a remoção forçada dos indígenas realizada pelo próprio Estado durante a ditadura militar – como o acirramento dos conflitos no Mato Grosso do Sul, especialmente nos últimos três meses. Ameaçado de morte, como diversas outras lideranças indígenas, ele denunciou o fato de que até mesmo representantes do Estado tiveram participação no recente ataque paramilitar ao tekoha Ñanderú Marangatú, que culminou com o assassinato de Semião Vilhalva, de 24 anos. Ele declarou que a própria imprensa documentou a participação de vereadores, deputados e até de um membro do Senado na reunião que antecedeu ao ataque.
“Alguns chegaram até mesmo a ir à área ocupada pela comunidade. Esta tragédia mostra, mais uma vez, que a vida de um indígena no Brasil vale menos que a de uma vaca. Nós estamos reivindicando menos terra do que temos direito garantido pela Constituição, mas a opção do Estado brasileiro é clara em sua defesa exclusiva dos interesses do agronegócio. Tentam nos empurrar as Mesas de Diálogo, quando sabemos que a única solução para acabar com a violência é a demarcação dos nossos territórios tradicionais”, explicou às equipes das relatorias.
Desnutrição, preconceito, agrotóxicos
Eliseu demonstrou também sua preocupação com o fato de seu povo estar sendo obrigado a viver de cestas básicas, já que não tem terra para plantar. E, por isso, ficarem sujeitos às politicagens dos governos (estadual e federal), que barganham seus interesses com os indígenas. “As comunidades que estão lutando pelas suas terras, por exemplo, passam fome”, denunciou. Resultados preliminares de um diagnóstico nutricional, realizado pelo Cimi, Fian-Brasil e Fian-Internacional, com os Guarani-Kaiowá já demonstram graves situações de desnutrição e insegurança alimentar, especialmente das crianças.
Outros fatos preocupantes levados ao conhecimento dos relatores foram: o aumento da violência, especialmente contra as mulheres, devido ao enorme estresse causado pela situação de confinamento dos indígenas em reservas; os severos impactos culturais, sociais e espirituais causados por estas remoções forçadas; os violentos ataques paramilitares às comunidades e a criminalização de lideranças inclusas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), da secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; o envenenamento dos rios e o fato de algumas comunidades indígenas estarem sitiadas por monoculturas que utilizam agrotóxicos ilegais e proibidos em diversos países do mundo; o crescente volume de preconceito e discurso odioso manifestado nas redes sociais, proferidos até mesmo por parlamentares; e as ameaças de despejo de áreas retomadas que podem ser concretizadas a qualquer momento.
Segundo Flávio Machado, missionário do Regional do Cimi em Mato Grosso do Sul, que também acompanha Eliseu nesta agenda de incidência na Europa, a liderança deixou claro aos relatores que, caso não seja feita a demarcação das terras, não é possível ter controle sobre a comunidade. “A autodemarcação é um consenso e uma decisão desesperada de toda a comunidade de lutar pela vida. Eles não conseguem mais sobreviver na beira das rodovias e não suportam mais o sofrimento da fome e o choro de suas crianças”, considera Machado.
Diante desta trágica realidade, Eliseu pediu uma atuação conjunta das relatorias e que elas incidam sobre os acordos comerciais de empresas multinacionais e bancos de investimentos com o agronegócio do Mato Grosso do Sul, de modo que eles sejam condicionados à demarcação e devolução dos territórios tradicionais indígenas.
Realidade insustentável e inaceitável
As equipes das relatorias demonstraram profunda preocupação com o testemunho feito por Eliseu e os dados sistematizados no Relatório e afirmaram que vão estudar formas de contribuir para combater esta situação de extrema violação de direitos humanos do povo Guarani-Kaiowá. As relatorias apresentaram alguns mecanismos de denúncia internacional específicos e também assumiram o compromisso de sensibilizar outros mandatos da ONU sobre esta situação, além de sinalizarem com a possibilidade de questionarem o governo brasileiro e solicitarem mais informações sobre a realidade deste povo que, com cerca de 45 mil pessoas, forma a segunda maior população indígena do país.
De acordo com a avaliação de Flávio Machado, a situação chegou a tal ponto que não há mais condições do Estado brasileiro negar os direitos constitucionais dos Guarani-Kaiowá. “Se o agronegócio só entende a linguagem econômica, que se parta deste princípio para solucionar definitivamente o problema. O Estado deve adotar sanções e punições para quem não cumpre a lei. Por outro lado, o Cimi tem o dever de denunciar um futuro bastante grave no Mato Grosso do Sul caso não se mude urgentemente esta postura omissa do Estado. O Ministério da Justiça tem que cumprir sua obrigação constitucional de demarcar as terras tradicionais, de uma vez por todas”, concluiu.
Ainda no dia 24, à tarde, Eliseu Lopes reuniu-se com o Alto Comissariado das Nações Unidas e, novamente, com a relatoria especial de povos indígenas e compartilhou também com eles seu testemunho sobre a barbárie a que seu povo está sujeito. Em sua fala na abertura da 30ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, realizada há duas semanas em Genebra, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra´ad Al Hussein, declarou “antigas disputas sobre terras indígenas continuam a causar sofrimento e perda de vidas no Brasil. Faço notar, em particular, o assassinato de um líder do povo Guarani-Kaiowá no mês passado, e exorto as autoridades a investigar não somente esta morte, mas também a tomar medidas de grande alcance para travar novos despejos e demarcar corretamente todos os terrenos”.
Que barbárie sobre os povos indigenas.
Demarcação já , para deixar estes povos em paz.