Leitura do parecer semana passada causou confusão e foi interrompida por pedido de vista coletivo. Mudança dá a deixa para que a bancada ruralista use poder de influência nas decisões e votações sobre o tema
por Hylda Cavalcanti, da RBA
Caso as entidades sociais e de defesa dos índios, bem como os parlamentares com atuação vinculada à causa e as frentes progressistas do Congresso Nacional não se mexam nos próximos meses, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215/00) referente à demarcação de terras indígenas pode caminhar para o mesmo desfecho que ameaçava ter em 2014: o de ser votada de forma a representar um retrocesso na discussão sobre o tema no país.
Isso porque o relatório da PEC, lido semana passada, traz como ponto principal os mesmos itens que foram objeto de queixas dessas comunidades: determina que a demarcação passe a ser feita por meio de lei, após aprovação dos deputados e senadores e não mais por decreto. Na prática, repassa do Executivo para o Legislativo a decisão da demarcação dessas áreas. E dá a deixa para que a bancada ruralista use seu poder de influência nas decisões e votações da Câmara dos Deputados e do Senado sobre o tema.
O relatório, que foi apresentado pelo deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) – relator da PEC – só não foi submetido a votação na comissão especial que avalia o tema na última quarta-feira (23) diante de um pedido de vista coletivo por parte dos deputados. O parecer de Serraglio, além de exigir a votação do Congresso também proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas.
Cláusula pétrea
Para a deputada Erika Kokay (PT-DF), uma das autoras do pedido de vista, a proposta da forma como apresentada pelo relator é inconstitucional, por violar cláusulas pétreas da Constituição. “Fere a separação dos poderes, enquanto cláusula pétrea da nossa Constituição e fere direitos e garantias individuais. Significa um retrocesso no que este país já conquistou. A Constituição brasileira assegurou o direito às terras indígenas pelos próprios indígenas. Os povos indígenas têm que ter direito às terras indígenas para a gente romper com esse etnocídio que existe”, afirmou a parlamentar.
Diante da contestação ao parecer, o presidente da comissão, deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), propôs que o colegiado discuta durante o período de vista a proposta com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski –, o que ajudará a dar maior esclarecimento sobre o teor da matéria e sua constitucionalidade.
O relatório do deputado também prevê a indenização em dinheiro aos proprietários ou possuidores de boa-fé, ainda que na faixa de fronteira, das áreas inseridas em território indígena em decorrência das demarcações posteriores ao marco temporal. E, em um dos trechos tidos como mais polêmicos, estabelece que em caso de conflito fundiário, passa a ser possível a troca de áreas demarcadas, assegurada a participação de todos os entes federados no procedimento administrativo.
Nova área
O novo texto da PEC ainda autoriza a comunidade indígena a optar por outra área que não seja a originalmente demarcada e determina ainda que a União adote políticas especiais de educação, saúde e previdência social para os índios.
Atualmente, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. A PEC 215 retira esse caráter exclusivo e estabelece algumas exceções para permitir o que é chamado no texto de “ocupações de relevante interesse público da União” – como casos de instalação e intervenção de forças militares e policiais; e instalação de redes de comunicação, logística e edificações (vedada a cobrança de tarifas de qualquer natureza), entre outros.
A proposta reconhece como definitiva a propriedade dos remanescentes das comunidades dos quilombos que ocupavam suas terras na data da promulgação da Constituição, tornando obrigatória a emissão dos seus títulos pelo governo. Mas prevê que as demarcações em curso, independentemente da fase em que estiverem, devam obedecer às novas regras previstas na matéria.
‘Sem violações’
De acordo com Serraglio, o objetivo da comissão é manter o diálogo com todos os interessados e dar mais segurança jurídica à questão. Para o deputado e relator, a PEC está longe de ser inconstitucional. Segundo ele, “a emenda constitucional não trará nenhum prejuízo aos direitos dos indígenas, que estão garantidos na Constituição Federal, assim como não importará em violação ao pacto federativo e à separação de poderes”.
Na prática, a Fundação Nacional do Índio (Funai) passará a encaminhar para o Congresso todas as propostas de demarcação feitas a partir de estudos da entidade. E o Ministério da Justiça perderá a autonomia que possui atualmente para editar decretos de demarcação baseados nestes estudos.
“Os setores mais conservadores da sociedade querem nos matar por meio da caneta, como nos mataram no passado com suas armas de fogo. Têm o espírito dos bandeirantes aqueles que usam de seu poder para enriquecer e concentrar terras, enquanto nós povos originários continuamos nas beiras de estrada, espoliados e excluídos seguimos sem ter onde dormir, sem ter onde morar, sem ter onde plantar”, destaca um documento da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Em junho passado, manifesto assinado por 70 entidades que reúnem vários setores da sociedade civil foi lido, na Câmara dos Deputados, por Erika Kokay. O texto pediu que a PEC deixasse de tramitar e voltasse a ser arquivada. Na época, a índia Pierlangela Wapichana, uma dos muitos indígenas presentes, enfatizou que a iniciativa consistiu “numa prova de que há muita gente no país interessada em defender a vida dos índios”.
Agora, é grande a expectativa das reuniões a serem marcadas para consulta a Janot e ao presidente do STF sobre a proposta. Movimentos sociais já se articulam para pedir maior conscientização aos deputados nessa discussão e os parlamentares que defendem a causa prometem concentrar esforços para combater o parecer recentemente divulgado.
“Nossa luta é contra mais uma violência direcionada aos povos indígenas, que vêm sendo secularmente agredidos, violentados”, afirmou o deputado Edmilson Rodrigues (Psol-PA), um dos que contestam os termos do relatório de Serraglio.
—
Foto: Elizabeth Bitencourt