Os recursos previstos para os quilombolas foram reduzidos em quase 80% e a lentidão dos processos de regularização dos territórios é uma deficiência Estado
Por Eduardo Sá, no Carta Maior
Num momento de crise e cortes orçamentários no país, diversos setores minoritários que sempre tiveram muitas dificuldades em nossa sociedade acabam saindo ainda mais prejudicados. Há mais de 400 anos lutando pela terra, os quilombolas sofrem com os ajustes do governo e ofensivas no Congresso Nacional contra seus direitos previstos na Constituição Brasileira. Assim como os indígenas, segundo o último relatório da FAO, órgão das Nações Unidas para alimentação e agricultura, são os povos mais vulneráveis em relação à fome no Brasil.
Para falar sobre suas lutas atuais, conversamos com Denildo Biko Rodrigues, da direção da Coordenação Nacional dos Movimentos Quilombolas (Conaq). Segundo ele, os recursos previstos para os quilombolas foram reduzidos em quase 80% e a lentidão dos processos relacionados à regularização dos territórios é uma deficiência estrutural do Estado brasileiro. Na entrevista, ele traça um panorama nacional da questão quilombola, e aponta os benefícios ao meio ambiente na relação dos seus povos com a natureza.
Vivemos um momento de crise no país com um ajuste e vários cortes orçamentários. Como a questão quilombola se insere neste contexto, e quais são as expectativas?
Para a temática quilombola foi um corte muito alto. Na regularização dos territórios quilombolas foi cortado 78% do pouco recurso que tinha. Isso é muito ruim, porque já não era suficiente para indenizar as áreas decretadas pela presidenta desde 2010. E você imagina com apenas 22% do que sobrou, não dá para fazer tudo. Há uma grande demanda e expectativa de o governo rever essa questão dos cortes. Porque a nossa infraestrutura, tanto a nível nacional como estadual, é muito precária para que os próprios funcionários do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) possam fazer o trabalho dos RTID (Relatório Técnico de Identidificação e Delimitação) e acompanhar os laudos antropológicos.
Temos cinco mil comunidades quilombolas, e dessas não chega a 200 tituladas. É um número bastante expressivo após 27 anos de Constituição Brasileira: o governo não deu conta. Então a gente está com muito medo, e a morosidade no processo de regularização dos territórios quilombolas é muito grande: desde o processo no Incra e Fundação Palmares gira em torno de 15 a 25 anos até chegar a titulação. Se o governo não trabalhar para acelerar esse processo, criar mecanismos para encurtá-lo, a realidade no campo e territórios quilombolas vai ficar muito difícil. Porque a cada dia os conflitos vêm aumentando, a insegurança alimentar das famílias quilombolas é muito grande porque o território não tem nenhum instrumento jurídico que garanta a terra e estimule o desenvolvimento local. Muitas só têm a casa e em volta são plantações de eucalipto ou outra monocultura.
Na perspectiva ambiental, as comunidades quilombolas preservam seus territórios desde sempre. Tanto é que muitas existem em sobreposição de áreas de conservação. Temos vários conflitos, como no Tocantins e São Roque, no Paraná. São reservas criadas em cima deles, porque são as pessoas que mais preservam e trabalham em consórcio com o meio ambiente. Por conta do seu modo de ocupação tradicional, seu meio de produzir e ver a terra, sua relação com a natureza. Parques são instituídos em cima dos territórios quilombolas, o ICMBio está criando Unidades de Conservação e é muito ruim porque não se leva em conta quem preservou aquela riqueza natural. Porque o parque é intocável, e se não fosse aquele pessoal morando ali já teria sido devastado.
Em relação à composição nacional dos quilombolas, você pode nos falar sobre a expressão dessa diversidade nas regiões inclusive diferenciando a questão rural da urbana?
A Conaq está em todo o território nacional, aonde teve o processo da escravidão houve resistência e luta. Os quilombolas estão hoje espalhados em 24 Estados brasileiros, só tirando o Acre e Roraima, onde ainda não existe nenhum processo aberto no Incra e Fundação Palmares. São mais de cinco mil comunidades quilombolas, aproximadamente 16 milhões de brasileiros, e nessas comunidades há distintas realidades. Os quilombolas do sul têm uma forma totalmente diferente de organização em relação aos do norte e nordeste, são formas de organicidade históricas de acordo com a realidade local e geográfica de cada território. Cada comunidade teve de se virar como pôde para permanecer no seu território, e hoje temos uma unidade nacional e coordenações estaduais que fazem parte da CONAQ.
Em relação às comunidades urbanas, as cidades cresceram ao ponto de cercá-las. É uma realidade de nosso país, como o quilombo Silva no Rio Grande do Sul. São comunidades que viviam ali, mas a cidade cresceu e trombou nesse território. A realidade deles também não é diferente, porque a especulação imobiliária e a força para retirá-los também é forte. Veja o caso do quilombo Sacopã, no Rio de Janeiro, a cidade cresceu e ele ficou no meio de grandes prédios de alto padrão de luxo. Então há certa especulação de não fazer o processo de certificação para que esses territórios não andem para frente, porque o capital quer tirá-los dali. Não aceita conviver com uma comuna diferente baseada na resistência ao território e seu jeito próprio de fazer. Para o capital deixa a cidade feia, e porque preto também não pode estar ali naquele local.
Além da reivindicação da terra, como o movimento vê o preconceito racial no país?
Cabe ao Estado brasileiro tomar um posicionamento concreto em relação à questão negra no país. Vivemos um momento de extermínio da juventude negra, ela está sendo assassinada, estão matando seus sonhos. Falta o Estado criar uma estrutura e políticas públicas para amparar esses jovens. Por outro lado, sabemos que existe todo um processo histórico de exclusão, não aceitação e racismo institucional: as políticas vinculadas a esse povo são as que menos têm recurso do governo e menos avançam. Esses povos não estão aqui porque quiseram, foram trazidos da África para ajudar a construir esse país. E aqui estando, o Estado tem que dar as mesmas condições que deu para qualquer outro imigrante. Os negros não tiveram terra e educação, só de muito pouco tempo para cá essas coisas estão se tornando realidade. A primeira reforma agrária do Brasil não foi feita pelo governo, foi feita pelos negros na marra. É aonde estão as comunidades quilombolas hoje. Mesmo passados 400 anos o Estado brasileiro não reconhece esses territórios e o direito à terra dessas pessoas. A primeira distribuição de terra foi graças aos negros, que forçaram ao sair das senzalas se refugiando e ocupando as terras.
Quais as demais demandas do movimento quilombola?
Vivemos um momento muito complicado no Congresso, de perda de direitos. Tem a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 que transfere do executivo para o legislativo a demarcação de terras quilombolas, indígenas e áreas de conservação. Temos uma grande ofensiva aos direitos quilombolas com o PDC 0044, de 2007, do deputado Valdir Colatto, que foi reaberto neste mês com o intuito de acabar com o decreto 4887 que regulamenta e dá terra aos quilombolas reconhecendo o direito desse povo. Então, há uma ofensiva muito grande também forçada pelo Congresso no Supremo Tribunal Federal (STF). E uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 3239, que está no Supremo graças a esse mesmo deputado desde 2004. Para se ter uma ideia, o decreto 4887 saiu em 2003 e já no ano seguinte o antigo PFL, hoje DEM, através desse deputado, entrou com essa ação de inconstitucionalidade contra o decreto.
O que há por trás de tudo isso? O racismo mascarado que a gente conhece no Brasil, não só na questão quilombola. O mesmo Democratas entrou com uma ação contra as cotas e o Prouni no STF, tudo que se diz respeito à questão das minorias são eles que estão afetando. Então há essa ofensiva no Congresso de retirada de direitos. Nos resta permanecer firme e forte, para nós quilombolas as coisas nunca foram fáceis. Não vai ser hoje que vai facilitar, temos 500 anos de história e nunca veio nada de mão beijada. É mais uma luta, mas a gente continua firme e forte porque fazemos parte da história do Brasil que também é quilombola. Nossa história é nossa riqueza e tudo aquilo que nós temos.
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Destaque: foto EBC