20 Anos do Caso Acari: Não ao Esquecimento, Sim à Justiça!

Jaime Silva

Edméia Eusébio, uma das mães de Acari, assassinada quando fazia investigações sobre o paradeiro de seu filho

Adital –
No dia 26 de Julho de 1990, onze pessoas, sendo três meninas e oito rapazes, em sua maioria, moradores da favela de Acari, ou de suas proximidades, foram levadas à força por homens que se diziam policiais, do sítio em que se encontravam em Magé, região metropolitana do Rio de Janeiro. Eles ou seus corpos jamais foram encontrados.
Foi o primeiro grande crime, envolvendo grande número de vítimas de uma só vez, cometido por policiais, em serviço ou não, contra moradores de favelas e periferias pobres, no Rio e no Brasil. Apesar dos numerosos indícios e informações que apontam a participação de policiais militares e civis no sequestro, até hoje o inquérito não foi concluído e ninguém foi denunciado pela Justiça.
O Caso Acari também marcou, portanto, o início da época da impunidade escandalosa em casos de crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra seus cidadãos, após o encerramento formal do regime ditatorial iniciado em 1964, e o suposto advento da democracia no país.
As consequências da total falta de investigação e empenho dos poderes do Estado não demoraram a aparecer: em janeiro de 1993, Edméia da Silva Euzébio, uma das mães dos jovens sequestrados mais empenhada na luta por justiça, foi assassinada. Em agosto do mesmo ano, policiais militares que faziam parte do mesmo grupo de extermínio conhecido como “Cavalos Corredores”, envolvido no desaparecimento de 1990, cometeram outro crime medonho, matando 21 pessoas na favela de Vigário Geral. Um mês antes, 8 crianças e jovens haviam sido trucidadas em frente à Igreja da Candelária, centro do Rio. A Era das Chacinas havia definitivamente começado no Brasil. O pesadelo continua até hoje, cobrando vidas, aterrorizando populações, destruindo famílias, pisoteando a democracia e os direitos humanos.
Resistência
Mas o Caso Acari também significou o início da longa e difícil luta das vítimas e familiares de vítimas de tantos crimes. As “Mães de Acari” logo se tornaram símbolo da luta por justiça de pessoas comuns do povo, diante de tanta violência, corrupção, conivência e medo. Deram o primeiro exemplo a muitas mães, pais, irmãos e amigos que se seguiram. Mostraram que não se pode esperar por justiça deixando tudo por conta do Estado, esse mesmo Estado que abriga e promove tantos assassinos e torturadores. O mesmo Estado, aliás, que até hoje não resgatou a imensa dívida social devida pelo Brasil aos milhões de pobres e excluídos que sofrem nessa terra há mais de 500 anos.
Um conhecido jornalista brasileiro (Ivan Lessa) disse uma vez que o Brasil esquece a cada 15 anos o que aconteceu nos últimos 15 anos. Vinte anos após o golpe militar de 1964, o país foi convidado a “reconciliar-se” e a “esquecer” o que havia acontecido durante a ditadura. Nenhum dos torturadores e assassinos que agiram naqueles anos dentro do aparelho do Estado foi levado a julgamento, ao contrário do que aconteceu na grande maioria dos países latino-americanos. O resultado desse “esquecimento” vemos hoje quando execuções sumárias, torturas e desaparecimentos forçados continuam a ser praticados, em número muito maior e atingindo muito mais pessoas, por agentes estatais. Nos recusamos a mais um esquecimento nessa nossa triste história!
Lembrar os 20 anos do caso Acari é, portanto, acima de tudo, um ato de continuidade da busca por justiça, dignidade e verdade. A luta das Mães de Acari não se perdeu no caminho, tampouco foi em vão. De tudo fica um pouco, mas um pouco que será suficiente para tecer o fio da memória que serve para alimentar a luta por justiça e contra a violência do Estado. É tempo de lembrar, e fazer da lembrança combustível para a luta que continua.
Mais informações sobre o caso Acari de 1990
Durante os regimes militares latino-americanos o desaparecimento forçado tornou-se instrumento de repressão e dominação política. Quando os militares latino-americanos começaram a utilizar a prática como um método repressivo, acreditavam ter encontrado a chave para um crime perfeito: dentro da sua lógica inumana, não havendo vítimas, não haveria perseguidos, e, portanto, também não haveria crime. Mas o desaparecimento forçado não foi exclusividade dos regimes militares, o chamado “período democrático” também tem produzido seus desaparecidos, cujo caso mais emblemático é o “Caso Acari”.
O drama de Acari começou no dia 26 de julho de 1990, com o desaparecimento de onze pessoas, sendo três meninas e oito rapazes. Desses onze, oito eram menores de idade. Os “Onze de Acari”, como ficaram conhecidos, desapareceram em Magé, num sítio pertencente a avó de um dos desaparecidos. Eram, em sua maioria, pertencentes a favela de Acari, ou de suas proximidades. Aparentemente, o grupo viajou para fugir de policiais que estavam tentando extorquir dinheiro de alguns deles que supostamente teriam algum envolvimento em assaltos e roubos de cargas de caminhão. Bandidos ou não, o fato concreto é que estes jovens foram retirados deste sítio numa noite de julho de 1990 por homens que se diziam policiais e nunca mais foram vistos. Os corpos jamais foram localizados, mas seus nomes, rostos, e histórias, continuam presentes nas lembranças de cada uma das mães, junto com a esperança por justiça:
Rosana Souza Santos, 17 anos – filha de Marilene Lima e Souza;
Cristiane Souza Leite, 17 anos – filha de Vera Lúcia Flores;
Luiz Henrique da Silva Euzébio, 16 anos – filho de Edméia da Silva Euzébio;
Hudson de Oliveira Silva, 16 anos – filho de Ana Maria da Silva;
Edson Souza Costa, 16 anos – filho de Joana Euzilar dos Santos;
Antônio Carlos da Silva, 17 anos – filho de Laudicena Oliveira do Nascimento;
Viviane Rocha da Silva, 13 anos – filha de Márcia da Silva;
Wallace Oliveira do Nascimento, 17 anos – filho de Maria das Graças do Nascimento;
Hédio Oliveira do Nascimento, 30 anos – filho de Denise Vasconcelos;
Moisés Santos Cruz, 26 anos – filho de Ednéia Santos Cruz;
Luiz Carlos Vasconcelos de Deus, 32 anos – filho de Teresa Souza Costa.
O “desaparecimento” dos onze chegou ao conhecimento internacional graças à campanha incansável das mães das vítimas, as “Mães de Acari”. A Anistia Internacional relatou em 1994 que os seqüestradores haviam sido identificados pelo setor de inteligência da Polícia Militar como sendo policiais militares do 9º Batalhão da Polícia Militar em Rocha Miranda, estado do Rio de Janeiro, e como detetives do Departamento de Roubo de Carga, da 39ª Delegacia de Pavuna, Rio de Janeiro. A investigação indicava que os policiais militares envolvidos vinham extorquindo algumas das vítimas antes do seqüestro. Segundo denúncias feitas na época do caso, alguns desses policiais seriam integrantes de um grupo de extermínio denominado “Cavalos Corredores”.
Os corpos dos onze ainda não foram localizados, apesar de várias tentativas fracassadas por parte das mães e das autoridades públicas. De acordo com informações recebidas pela Anistia Internacional, as buscas feitas pelas autoridades em possíveis locais de enterro foram negligentes e destrutivas, possivelmente resultando em danos permanentes aos locais. Como os corpos ainda não foram encontrados, nunca houve nenhum processo judicial. O seqüestro dos onze jovens continua envolto em total impunidade.
A dor e o sofrimento das “Mães de Acari” não se restringiram ao desaparecimento dos filhos. Estenderam-se na forma desrespeitosa e no descaso com que foram tratadas pelo poder público. A dor e o sofrimento estenderam-se no assassinato de Edméia Euzébio, uma das “Mães de Acari”, assassinada no dia 15 de janeiro de 1993, enquanto saía de um presídio, onde fazia investigações por conta própria em busca de obter informações que levassem a solucionar o caso. A dor e o sofrimento estendem-se até hoje na ausência de justiça, reparação e na impunidade dos culpados. “Não tem corpo não tem crime”, é a resposta que ouviram repetidamente ao longo de vinte anos das autoridades policiais responsáveis pelo caso. A dor e o sofrimento estão inscritos no corpo fatigado e na alma ofendida de cada uma delas. Gravidez psicológica, diabete emocional, dores físicas e emocionais, angústia, depressão, ansiedade, foram alguns dos efeitos do trauma sentidos pelas mães. A dor e o sofrimento estendem-se em cada novo caso, em cada nova chacina, em cada novo desaparecimento, em cada nova “Mãe de Acari” que continua a perder os filhos assassinados e/ou desaparecidos.
No dia 10 de agosto de 2008 morreu Vera Lucia Flores Leite, mais uma das Mães de Acari. “Falta alguém na minha casa”! Essa era uma frase que Vera sempre dizia, referindo-se à ausência da filha. Desde o desaparecimento de sua filha, a vida de Vera Flores, como a das outras mães, tornou-se uma verdadeira peregrinação em busca de informações sobre o paradeiro dos filhos. Juntamente com outras mães, percorreu cemitérios clandestinos, escritórios, instâncias burocráticas, delegacias de polícia, presídios, conversou com juízes, delegados, secretários de segurança, autoridades policiais, ministros, sempre em busca de informações, e nada. Morreu sem localizar o corpo da filha.
O caso, diante da evidente incapacidade e falta de vontade do Estado brasileiro em investigá-lo e responsabilizar os culpados, foi objeto de petição junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para que seja apreciado pela Corte Interamericana da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Propostas iniciais de atividades em lembrança dos 20 anos do Caso Acari
Familiares de vítimas da violência do Estado, a Rede contra Violência, a Justiça Global e outras organizações e movimentos reuniram-se e traçaram um calendário preliminar de atividades em todo o 1o semestre de 2010, que culminará com uma grande manifestação pública no dia 26/07, quando completará 20 anos o desaparecimento forçado dos onze de Acari. A idéia é dar destaque ao caso e à lembrança em várias atividades previstas em comunidades lembrando outros casos de violência estatal no Rio, e em datas importantes de mobilização do movimento social como um todo, como o Dia Internacional da Mulher, o Dia das Mães, o 1o de Maio, a Marcha em Defesa da Infância e da Juventude em 23/07, etc. Também desenvolveremos iniciativas para pressionar por uma manifestação oficial da CIDH/OEA sobre o caso.
Ao mesmo tempo, vítimas e familiares de vítimas de vários estados (RJ, SP, BA, MG, ES) já concordaram em fazer coincidir com a lembrança dos 20 anos do caso Acari a realização do 1º Encontro Nacional de Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência do Estado, a ser realizado nos dias 24 e 25/07 no Rio.
Estamos convidando os movimentos sociais, organizações defensoras dos Direitos Humanos, sindicatos, lutadoras e lutadores do povo, a participarem da organização e realização deste calendário de atividades. A próxima reunião geral será no dia 03/03 (quarta-feira) às 17 horas na sede da Rede contra a Violência (Rua Senador Dantas, 20, sala 1407 – Centro).
[Enviado pela Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência

Adital: “No dia 26 de Julho de 1990, onze pessoas, sendo três meninas e oito rapazes, em sua maioria, moradores da favela de Acari, ou de suas proximidades, foram levadas à força por homens que se diziam policiais, do sítio em que se encontravam em Magé, região metropolitana do Rio de Janeiro. Eles ou seus corpos jamais foram encontrados.

Foi o primeiro grande crime, envolvendo grande número de vítimas de uma só vez, cometido por policiais, em serviço ou não, contra moradores de favelas e periferias pobres, no Rio e no Brasil. Apesar dos numerosos indícios e informações que apontam a participação de policiais militares e civis no sequestro, até hoje o inquérito não foi concluído e ninguém foi denunciado pela Justiça”.

Propostas iniciais de atividades em lembrança dos 20 anos do Caso Acari

Familiares de vítimas da violência do Estado, a Rede contra Violência, a Justiça Global e outras organizações e movimentos reuniram-se e traçaram um calendário preliminar de atividades em todo o 1o semestre de 2010, que culminará com uma grande manifestação pública no dia 26/07, quando completará 20 anos o desaparecimento forçado dos onze de Acari. A idéia é dar destaque ao caso e à lembrança em várias atividades previstas em comunidades lembrando outros casos de violência estatal no Rio, e em datas importantes de mobilização do movimento social como um todo, como o Dia Internacional da Mulher, o Dia das Mães, o 1o de Maio, a Marcha em Defesa da Infância e da Juventude em 23/07, etc. Também desenvolveremos iniciativas para pressionar por uma manifestação oficial da CIDH/OEA sobre o caso.

Ao mesmo tempo, vítimas e familiares de vítimas de vários estados (RJ, SP, BA, MG, ES) já concordaram em fazer coincidir com a lembrança dos 20 anos do caso Acari a realização do 1º Encontro Nacional de Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência do Estado, a ser realizado nos dias 24 e 25/07 no Rio.

Estamos convidando os movimentos sociais, organizações defensoras dos Direitos Humanos, sindicatos, lutadoras e lutadores do povo, a participarem da organização e realização deste calendário de atividades. A próxima reunião geral será no dia 03/03 (quarta-feira) às 17 horas na sede da Rede contra a Violência (Rua Senador Dantas, 20, sala 1407 – Centro). [Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência – [email protected]]. (mais…)

Ler Mais

Deus é negra e sem documentos

Helena Maleno Garzón
Adital –
Tradução: ADITAL
Tánger, 16 de fevereiro de 2010
“Imagina que deste à luz no domingo passado, em um hospital público marroquino. Um menino lindo!
Imagina que te deram alta no dia seguinte, segunda-feira.
Imagina que voltaste para casa cansada, sangrando do pós parto; ainda com dores no útero, que luta para voltar ao seu lugar.
Imagina que em casa te esperam tua filha de dois anos e dois meses e teu esposo.
Imagina que nessa manhã, enquanto banhavas o bebê, começaste a ver que ele tinha dificuldade para respirar.
Imagina que correste para o hospital público marroquino.
Imagina que te disseram que não podiam atender-te.
Imagina que voltaste duas vezes.
Imagina que na terceira vez teu bebê deixou de respirar quase na porta do hospital.
Imagina que pediste que pediste ajuda por teu bebê morto.
Imagina que ele foi levado ao necrotério do hospital.
Imagina que tu, tua filha e teu esposo foram levados à delegacia.
Agora, imagina-te retorcendo-se de dor nas entranhas, a dor amarga da morte de teu filho, a dor de um útero que te recorda que estás recém parida, a dor de um leite que sobre para teus seios duros como pedras. Porém, imagina-te NEGRA; imagina-te AFRICANA; imagina-te POBRE; imagina-te SEM DOCUMENTOS.
Estás sentada, dobrada sobre teu ventre naquele escritório sujo de uma delegacia, com policiais que vão e vêm e te falam em uma língua que não entendes. Lá te vejo e tento traduzir para ti as perguntas que me parecem estúpidas, cruéis e desumanas.
Querem saber o que fazes em seu reino; como entraste e há quanto tempo estás aqui. Querem saber como se chamam, como se chamam seus pais e porque vieram.
Teu esposo grita e pede piedade. Sabem que todas as perguntas vão dirigidas para justificar uma deportação para o deserto. Teu esposo grita e te tranqüiliza, chamando-te “honey”.
Tua filha sorri; brinca com seu gorro e canta “haleluya”.
A polícia busca um intérprete de árabe para inglês, para fazer o processo e levá-los ao Tribunal.
Me dizes que se te deportam para o deserto e lá te violentam não crês que aguentarás a dor, porque estás recém parida.
Um policial se aproxima de mim e pergunta: Por que fazes isto? Por prazer? Esse amável policial designa como “isto” o acompanhamento que tento fazer a uns pais sumidos na dor, o fato de comprar um pouco de comida para uma criança que passou todo um dia sem comer nem um bocadinho e por tentar trazer um pouco de humanidade ou de bom tratamento a essa maldita delegacia.
Então, olho para ele; me horroriza sua frieza, e lhe respondo que o fazemos por amor. Vejo nele esses seres que comem, cagam e posam de polícia para continuar comendo e cagando. Sinto pena.
Detêm ao teu esposo na delegacia e me dizem que, como caso humanitário, te deixarão dormir em casa. Amanhã terás que passar no Tribunal juntamente com teu marido.
Te encolhes. É a primeira vez que te vejo endireitar esse ventre que dói. Gritas e choras até que um policial manda que te cales.
Não o suporto; peço-lhe por favor que entenda que teu filho morreu hoje; que estás recém parida; que te doem as entranhas.
Me respondem com desprezo que nesse reino existem leis; que se faz o que diz o procurador do rei e que tu és uma NEGRA CLANDESTINA.
Amanhã iremos ao Tribunal; amanhã, um homem deste reino decidirá se te atiram com tua filha no deserto, na madrugada. A partir daí, a sorte decidirá se serás violentada; se tua filha será raptada ou violentada também.
Imagina que tudo isso aconteceu hoje.
Imagina que todas sentimos dores nas entranhas”.
* Assim o recebi. Assim o reenvio. E continuarei ajoelhando-me, porque hoje vi Deus em negro e sem documentos.
+ Fr. Santiago Agrelo Martínez
Arcebispo de Tánger
[Enviado por Eclesalia Informativo].
Helena Maleno Garzón
Tradução e postagem: ADITAL
Tánger, 16 de fevereiro de 2010.
“Imagina que deste à luz no domingo passado, em um hospital público marroquino. Um menino lindo!
Imagina que te deram alta no dia seguinte, segunda-feira.
Imagina que voltaste para casa cansada, sangrando do pós parto; ainda com dores no útero, que luta para voltar ao seu lugar.
Imagina que em casa te esperam tua filha de dois anos e dois meses e teu esposo.
Imagina que nessa manhã, enquanto banhavas o bebê, começaste a ver que ele tinha dificuldade para respirar.
Imagina que correste para o hospital público marroquino.
Imagina que te disseram que não podiam atender-te.
Imagina que voltaste duas vezes.
Imagina que na terceira vez teu bebê deixou de respirar quase na porta do hospital.
Imagina que pediste ajuda por teu bebê morto.
Imagina que ele foi levado ao necrotério do hospital.
Imagina que tu, tua filha e teu esposo foram levados à delegacia.
Agora, imagina-te retorcendo-se de dor nas entranhas, a dor amarga da morte de teu filho, a dor de um útero que te recorda que estás recém parida, a dor de um leite que sobre para teus seios duros como pedras. Porém, imagina-te NEGRA; imagina-te AFRICANA; imagina-te POBRE; imagina-te SEM DOCUMENTOS. (mais…)

Ler Mais

Peru vende Amazônia e ameaça comunidades indígenas da fronteira com o Brasil

[EcoDebate] Em nome do desenvolvimento, governo peruano cede terras para empresas estrangeiras explorarem recursos naturais, colocando em risco as populações tradicionais do Peru e do Acre
Em junho de 2009, no massacre de Bagua, no Peru, dezenas de indígenas foram mortos pela polícia e centenas ficaram feridos e detidos, fruto da repressão oficial, que impedia os protestos contra o decreto de implantação do Tratado de Livre Comércio com os EUA. O tratado visava o aumento do investimento de empresas em áreas ricas em recursos naturais. O descaso com o meio ambiente e seus habitantes e a criminalização do movimento indígena refletem a política neoliberal do Peru, que cede terras a empresas multinacionais para a exploração de petróleo, gás, minérios e madeira.
Hoje, 49 milhões de hectares de terras na Amazônia peruana (72% da região) estão entregues a empresas petroleiras – dentre elas à brasileira Petrobrás. São 65 lotes para exploração e produção de petróleo, muitos dos quais sobrepostos a terras indígenas e a unidades de conservação, segundo dados de 2008 da Plos One. A retirada ilegal de madeira e o tráfico de drogas se intensificam nas regiões fronteiriças do Peru, resultando em invasões de territórios protegidos no Acre, como aconteceu, anos atrás, na Terra Indígena Ashaninka do Rio Amônia e no Parque Nacional da Serra do Divisor.
Desde 2004, a Comissão Pró-Índio do Acre e a SOS Amazônia coordenam o Grupo de Trabalho para a Proteção Transfronteiriça da Serra do Divisor e Alto Juruá, grupo de instituições que debatem as questões da fronteira e os impactos sobre os povos da região. Em novembro de 2009, realizaram mais um encontro para discutir o tema, que reuniu organizações indígenas e do movimento social do Brasil, Peru e Bolívia.
Vítimas do ‘desenvolvimento’
Durante o evento, duas lideranças indígenas do Peru, da Comunidade Nativa Sawawo Hito 40, na fronteira com o Acre, relataram como a comunidade se aliou à empresa madeireira Forestal Venao, de Pucallpa, para tentar superar as dificuldades causadas pelo isolamento e o descaso do governo. Os irmãos Ashaninka, João e Luis Garcia Campos, contaram em entrevista que, em troca da retirada da madeira, a empresa prestaria serviços à comunidade, inclusive aqueles de responsabilidade do governo.
Mesmo certificado pela Smartwood-Rainforest Alliance com o selo FSC em 2007, a atividade madeireira, fundamentada em um plano de manejo elaborado pela empresa e aprovado pelo Instituto de Recursos Naturales (Inrena), resultou na abertura de uma estrada, em uma extensa rede de ramais, em grande devastação, na fuga das caças e na obstrução de cursos de água, deixando as famílias Ashaninka sem a sua principal fonte de sobrevivência: a floresta.
Este é um retrato do que acontece em regiões da Amazônia peruana. Assim como a Forestal Venao, outras empresas, dentre elas as estrangeiras, exploram recursos naturais do país e causam prejuízos ao patrimônio natural e cultural das comunidades e às suas formas de organização social e política. Em nome do desenvolvimento sustentável e do progresso, essas atividades são apoiadas por políticas favorecidas por vários órgãos do governo peruano. Nos debates oficiais, costuma-se analisar apenas o lado positivo desses processos para a economia. A mídia, por sua vez, continua a retratar os povos indígenas como atrasados ou como obstáculos ao desenvolvimento.
Integração Brasil-Peru
Nos últimos anos os governos do Brasil e do Peru têm construído processos de integração física e energética. Além da pavimentação da Rodovia Interoceânica, estão em fase de planejamento a construção de uma estrada e de uma ferrovia ligando o município de Cruzeiro do Sul a Pucalpa. Já a parceria energética visa promover a produção e exportação de energia hidrelétrica e a integração de empreendimentos de empresas estatais e privadas – brasileiras e peruanas – nas áreas de petróleo e gás.
Esses processos de integração têm sido discutidos há anos por organizações do movimento social e associações indígenas e extrativistas do Acre e Peru. Elas têm exigido que os dois governos cumpram as recomendações da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Essas recomendações garantem o direito das comunidades e organizações à realização de consultas, prévias, consentidas, informadas e de boa-fé, a respeito das políticas oficiais de desenvolvimento e de “integração regional” que venham a afetar seus territórios e modos de vida.
Têm também reivindicado que os governos de ambos os países implementem políticas fronteiriças comuns, voltadas à conservação do meio ambiente e da biodiversidade, à proteção de terras indígenas e unidades de conservação e à garantia de direitos dos povos indígenas, assegurando plena participação desses povos e dos demais moradores da região de fronteira na definição e execução dessas políticas.
ENTREVISTA
“O governo peruano tem contrato com empresas para a exploração de recursos naturais nas terras protegidas”, afirma liderança indígena Ashaninka do Peru
Leandro Chaves – Fale um pouco sobre a empresa Forestal Venao.
Luis Garcia e João Garcia – Forestal Venao é uma grande madeireira peruana. Foi ela que acabou com as madeiras da nossa aldeia. Hoje é uma empresa muito grande e só cresceu às nossas custas, porque quando a conhecemos, não tinha quase nada. Ela saiu da nossa comunidade e não nos deixou nada, nenhum recurso. Hoje ela trabalha com outras terras indígenas no Alto Juruá e está repetindo a mesma destruição que fez na nossa comunidade.
LC – O que aconteceu entre sua comunidade e a madeireira?
LG/JG – Nós estávamos abandonados pelo governo do Peru. Estávamos muito longe de qualquer tipo de comunicação com as instituições peruanas, inclusive as que representam os direitos das comunidades indígenas. Estávamos longe, também, das cidades e ficava difícil fazer compras. Tinha os problemas de saúde, adoecia uma pessoa e não tínhamos como sair. Sabe quanto custa um avião de Pucallpa para a nossa aldeia? 1.800 dólares para pegar um doente lá, trazer e mandar tratar na cidade. A única coisa que nos ajudaria a cobrir essa necessidade era a madeira. Esse foi o único meio que vimos para sair dessa situação. Por isso, fizemos o acordo com a empresa, em 2002. Entramos com a proposta do que a gente queria também. Faltou uma boa administração da parte deles com os mais de 4 milhões de dólares gerados dentro da nossa terra. Em 2007, começamos a perceber que isso não estava certo. Nossa madeira estava acabando e, por isso, terminamos o contrato. Agora, essa empresa não trabalha mais com a gente e nos deixou sem madeira e sem benefícios. Percebemos um pouco tarde que com a nossa madeira não poderíamos mexer. Estamos sofrendo bastante, mas tentando nos reerguer. Apanhamos, mas aprendemos.
LC – Que outros problemas vocês sofreram por causa das ações da empresa?
LG/JG – Sempre antes de a madeireira chegar à comunidade, ela ficava uns seis meses em Pucallpa fazendo manutenção das máquinas. Nesses meses não tínhamos muitos problemas. Mas quando as máquinas começavam a transitar pela terra, dia e noite, não encontrávamos nenhum tipo de caça. Elas corriam. Pesca nunca tivemos problemas.
LC – O que está sendo feito para reverter a situação do desmatamento na sua terra?
LG/JG – Começamos a fazer um plano de manejo e aprendemos a usar nossa madeira. Também estamos reflorestando. Após a saída da empresa, já plantamos mais de 85 mil árvores. Estamos sobrevivendo somente através do nosso recurso, pois continuamos abandonados pelo governo. Vamos buscar outras alternativas e maneiras de trabalhar, como o artesanato e o ecoturismo. Isso sim é uma fonte de renda que não causa problemas. Queremos também uma parceria com as comunidades do lado acreano, que possuem mais experiência, como é o caso da Apiwtxa, onde vivem muitos de nossos parentes.
LC – Vocês possuem alguma organização?
LG/JG – Sim, temos a UCIFP (Unión de Comunidades Indígenas Fronterizas del Perú), que abrange as comunidades Sawawo, Dorado, Santa Rosa, Nueva Shawaya e Vitória, das etnias Ashaninka, Jaminawá, Amauaca. Acontece que essa organização não funciona para a gente. Ela funciona só para as empresas. Na época da Forestal Venao, defendia mais o interesse da empresa do que o nosso. Não reclamo da organização, mas das pessoas que estão à frente dela e só vêem benefícios que não são o dos povos indígenas, que ficam no prejuízo. Quem sabe se trocasse de direção, as coisas não mudariam?
LC – Hoje vocês sofrem algum tipo de pressão por parte de outras empresas?
LG/JG – Sem dúvida. Nossa principal preocupação hoje é com essas companhias petroleiras que estão se aproximando da nossa comunidade. Tem uma que está com as suas bases instaladas a cerca de 80 km da nossa terra. O governo peruano tem contrato com essas empresas para explorar recursos nas terras protegidas, tudo isso sem consultar nós, que somos donos do lugar. Isso já está acontecendo, como na Forte Esperança, dos nossos parentes Ashaninka. Já não bastou a Forestal Venao e agora vêm essas petroleiras? Nossa terra vai se acabar! Sobrevivemos da mata, nossas crianças precisam dela, a nossa alimentação vem daí. Tem que haver um mínimo de respeito. A exploração já chegou à comunidade Paraíso. Eu vi muitas coisas por lá. Mexer com petróleo pode trazer consequências ruins para todo mundo. Se os canos vazarem, por exemplo, podem contaminar todos os rios, inclusive os do Acre, porque os rios correm no rumo do Brasil. Se sofremos com a retirada da madeira, pois agora é que vem o pior.
LC – A imprensa peruana tem dado alguma visibilidade à causa de vocês?
LG/JG – Estive um tempo em Lima e tentei informar sobre isso. Tive até a oportunidade de chegar à televisão para levar informações sobre esse problema. Os empresários, que tem dinheiro e controlam os meios de comunicação, cortaram tudo. Acabaram com a informação. Falaram: “Vocês vão acreditar nesse índio? Ele está sendo pago para fazer essa denúncia”.
LC – Qual sua opinião em relação ao mandato do atual presidente Alan Garcia?
LG/JG – Ele está deixando as comunidades indígenas da fronteira abandonadas e dando mais valor aos empresários, petroleiros e mineradores. Gente que já tem dinheiro o bastante. Está deixando de lado o nosso direito enquanto povos indígenas, que vivemos da floresta, e dando parte dela para pessoas que já têm como sobreviver. São empresas grandes. O governo está vendendo a Amazônia e nos tratando como animais. Tudo isso por causa de interesses econômicos. Nos sentimos vendidos, nossa opinião é essa. Gostaríamos de falar para todos o que está acontecendo para ver se gera alguma cobrança. O Peru precisa saber do sofrimento que estamos passando por culpa dele mesmo. Muita gente nem sabe que existimos, mas estamos aí. Agora, graças a Deus tivemos essa oportunidade de estar aqui com vocês, em Rio Branco, discutindo esses problemas e compartilhando ideias. Por que não agir como o governo brasileiro, que mostra preocupação com as suas florestas? É isso que queremos.
LC – E a partir daqui? O que esperar para o futuro?
LG/JG – Nós temos que pensar somente em ir em frente e buscar os nossos direitos. Em relação à madeira, nossa situação melhorou com a saída da empresa e o começo do reflorestamento. Agora é só ver como vamos trabalhar. Ainda queremos indenização da Forestal Venao. Aprendemos com o que aconteceu e estamos retomando. Vamos reclamar ao governo peruano, pois as coisas não estão claras e não foram cumpridas como estavam no contrato. Nossa comunidade ainda está abandonada pelas autoridades. Tem o IBC [Instituto Bien Común] lutando pelos direitos indígenas, mas no geral não há o mesmo tipo de organização que existe no Brasil. Só sei que várias pessoas querem viver às custas das comunidades indígenas e no final não nos deixam nada. É necessário mudar essas ideias para que possamos ter melhores expectativas para o futuro. Pobres nós não somos porque temos toda a natureza.
Reportagem e entrevista realizada por Leandro Chaves, Comissão Pró-Índio do Acre CPI/AC para o EcoDebate, 24/02/2010

[EcoDebate] Em nome do desenvolvimento, governo peruano cede terras para empresas estrangeiras explorarem recursos naturais, colocando em risco as populações tradicionais do Peru e do Acre

Em junho de 2009, no massacre de Bagua, no Peru, dezenas de indígenas foram mortos pela polícia e centenas ficaram feridos e detidos, fruto da repressão oficial, que impedia os protestos contra o decreto de implantação do Tratado de Livre Comércio com os EUA. O tratado visava o aumento do investimento de empresas em áreas ricas em recursos naturais. O descaso com o meio ambiente e seus habitantes e a criminalização do movimento indígena refletem a política neoliberal do Peru, que cede terras a empresas multinacionais para a exploração de petróleo, gás, minérios e madeira.

Hoje, 49 milhões de hectares de terras na Amazônia peruana (72% da região) estão entregues a empresas petroleiras – dentre elas à brasileira Petrobrás. São 65 lotes para exploração e produção de petróleo, muitos dos quais sobrepostos a terras indígenas e a unidades de conservação, segundo dados de 2008 da Plos One. A retirada ilegal de madeira e o tráfico de drogas se intensificam nas regiões fronteiriças do Peru, resultando em invasões de territórios protegidos no Acre, como aconteceu, anos atrás, na Terra Indígena Ashaninka do Rio Amônia e no Parque Nacional da Serra do Divisor. (mais…)

Ler Mais