Mapa de Conflitos e Racismo Ambiental: desafios para as advogadas e os advogados populares *

Tania Pacheco

Antes de mais nada, gostaria de agradecer aos organizadores deste evento – e em particular à Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – pelo convite para participar desta mesa e falar um pouco sobre o Mapa da injustiça Ambiental e Saúde e sobre o Racismo Ambiental no Brasil. Considerando a natureza do evento, optei por um recorte que espero possa contribuir para a riqueza das reflexões que aqui vêm sendo feitas.

Minha fala será dividida em três partes: primeiro, vou mostrar alguns dados retirados do Mapa da injustiça ambiental e saúde no Brasil, que considero devem embasar a nossa discussão. À luz desses resultados, gostaria de falar um pouco sobre um tema que é minha grande frente de luta: o Racismo Ambiental. Finalmente, pretendo socializar rapidamente algumas informações sobre como a ação do Ministério da Justiça, das Defensorias e dos Ministérios Públicos aparece no Mapa. Como o tempo é restrito, e o assunto me apaixona, escolhi escrever um roteiro para minha fala, pelo quê peço desculpas a vocês.

Antes de ir adiante, dois esclarecimentos precisam ser feitos. O primeiro é que o Mapa da injustiça ambiental e saúde no Brasil tem uma peculiaridade que o diferencia de outros: optamos por estabelecer como o referencial primeiro para o nosso olhar as comunidades e populações atingidas pelos conflitos ambientais. Isso significa que é a partir de suas vozes que as denúncias são apresentadas e relatadas, embora busquemos complementá-las com outras informações, obtidas junto a seus diferentes parceiros, estudos acadêmicos, notícias de jornais e da internet, e outros mais. Mas são as comunidades as nossas protagonistas, e é a partir das lutas que elas vivenciam e enfrentam que construímos a nossa pesquisa. Ressaltar esse fato é importante, pois ele vai determinar os comentários e as referências que farei a seguir.

O segundo esclarecimento é o fato de que o Mapa continua a ser construído, embora esta apresentação leve em conta apenas os 297 conflitos iniciais. Esse número não se divide uniformemente por estado, variando de cinco a 30, selecionados como os mais dramáticos e/ou abrangentes em cada unidade da Federação. Lamentavelmente, cerca de 40 serão a ele acrescentados nos próximos dias; outros 60 estão sendo pesquisados; e outros tantos surgem diariamente, como novas denúncias. E digo “lamentavelmente”, claro, porque gostaríamos todos que esse quadro fosse diferente. Mas será à luz dos 297 com os quais o Mapa foi disponibilizado na internet que vamos agora trabalhar. Comecemos, pois, pelo nosso primeiro item:

1. O Mapa e as principais revelações que ele nos traz

O primeiro dado que gostaria de partilhar com vocês diz respeito ao nosso cenário maior, à relação urbano-rural, que poderemos ver no slide 1: “A localização dos conflitos”.

Slide 1

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Embora esses números sejam questionados por muitas pessoas, as estatísticas do IBGE nos dizem que cerca de 83% da população brasileira vivem em cidades de portes variados, e apenas 17% estão ainda no campo. Esses índices são radicalmente invertidos se olharmos para os 297 conflitos presentes no Mapa. Como é possível ver no slide 1, 60,85% deles estão na zona rural; 30,99%, na zona urbana; e 8,38% atingem moradores de áreas onde campo e cidade de alguma forma se misturam.

A essa informação podemos agregar outra, que acrescenta mais uma dimensão a esses dados no que se refere à abrangência dos conflitos. No Amapá, temos apenas oito casos registrados, contra 30, em São Paulo. No entanto, esses oito conflitos do Norte atingem 100% dos 16 municípios do estado. A situação de São Paulo é bastante diferente: seus 30 conflitos afetam apenas 38 municípios, correspondendo a 5,89% do total de 645.

Isso não acontece por acaso. Enquanto os conflitos paulistas são, na maioria, urbanos e localizados, no geral envolvendo alguns milhares de metros quadrados, os do Amapá são contados em milhares de hectares de território, muitas vezes se espraiando de um município para outros, vizinhos. Sabemos bem os motivos que levam a isso: é no campo que os grandes projetos “produtivos” e de infraestrutura se expandem, no atual processo de desenvolvimento que une os interesses de empresas e Estado.

Nesse cenário construído em rápidas pincelas, nossa segunda questão diz respeito a quem são as populações e comunidades mais atingidas?. É o que veremos no slide 2.

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Slide 2

Como nos mostra o slide, o maior impacto é sobre os povos indígenas, com 18% do total. Em seguida, temos os agricultores familiares, totalizando 17%; e os quilombolas, com 12%. Seguem os pescadores artesanais, com 8%; os ribeirinhos, com 7%; e os caiçaras, com 2%. Na faixa do 1%, temos quebradeiras de coco babaçu, marisqueiras, catadores de caranguejos, extrativistas, faxinalenses, geraizeiros, seringueiros, entre outros.

Se olharmos em separado os números referentes à população urbana, veremos que eles são igualmente sugestivos, tanto na comparação com os anteriores, quanto no que sugerem quanto às “identidades” das pessoas atingidas: 8% são moradores de aterros contaminados; 6%, operários; 4% moram em bairros “normalmente” atingidos por acidentes ambientais; 3% incluem sem tetos e moradores das ruas; 2% vivem em periferias consideradas inóspitas por diferentes motivos; 2%, no entorno de lixões; e 1%, em encostas e favelas horizontais.

À medida em que se desenvolve, a luta pelo território determina aquelas e aqueles que serão por ela atingidos. A liderança dos 18% de conflitos envolvendo povos indígenas se torna muitíssimo mais expressiva se considerarmos que, segundo a FUNAI, há apenas cerca de 660 mil índios no País, dos quais somente 460 mil vivem em aldeias. Mais: esse número equivale a 0,25% da população brasileira! É claro que não estão sendo computados, nem pela FUNAI, nem pelo próprio Mapa, as centenas de milhares de indígenas que, expulsos de suas terras, viram como única solução negar suas origens, na busca pela aceitação e pelo emprego nas cidades.

Mas o que gostaria de deixar marcado, acima de tudo, é quem exatamente são os protagonista no nosso cenário desumano. No campo, além dos índios e quilombolas, outros componentes de comunidades tradicionais, como vimos; e na cidade? Quais serão as ‘identidades’ predominantes nos aterros contaminados, nas periferias inóspitas, nos lixões, nas favelas?

Acho que chega a hora de avançar para o segundo tema desta nossa conversa, à luz de tudo o que foi até agora mostrado.

2. Introduzindo o conceito de Racismo Ambiental no cenário

O GT Combate ao Racismo Ambiental conceitua: “Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e outras comunidades, discriminadas por sua origem ou cor”. Ora, o que vimos nesses dois slides e os resultados estatísticos por eles mostrados comprovam de forma inequívoca que, majoritariamente, essas injustiças ambientais têm como origem não apenas a classe social, mas, com a mesma intensidade, o racismo. E não estou falando de “raça” no sentido biológico, mas de discriminação, de exclusão e de preconceito.

Nossa tendência quando ouvimos falar em racismo é considerar apenas a população negra. Mas o que está em pauta vai bem além dela. Engloba a maioria absoluta daqueles que foram listados entre os mais atingidos pelos conflitos estudados, dos povos indígenas, que lideram os números, às quebradeiras de coco, que aparecem na lista do 1%. E sem esquecer que é igualmente racista a forma como os nordestinos são encarados e tratados no “Sul Maravilha”, numa situação que hoje também se repete no Centro-Oeste, em cidades como Sorriso, a chamada “capital da soja”.

Não vou desrespeitar as pessoas aqui presentes repetindo o óbvio acerca do modelo de desenvolvimento hegemônico e de suas implicações para com o território e as pessoas que o habitam. Estamos vivendo a “farsa das invasões estrangeiras”. E não uso a palavra farsa apenas numa menção à célebre frase marxiana, ligando-a à repetição de algo que estudamos nas aulas de História do Brasil. Uso-a na medida em que sabemos muito bem que a apropriação e expropriação do território não estão sendo feitas, no nosso caso em especial, apenas por estrangeiros. E esse ponto nos diferencia do que vem acontecendo em outros países da América Latina e,  mais recentemente, da África.

Muitas das empresas e empreendimentos que vêm cortando, desmatando, expulsando e dizimando o meio ambiente e seus habitantes, num vórtice de ganância que se espraia principalmente do Sul para o Norte e Nordeste, arrasando na passagem o Centro-Oeste, têm como responsáveis capitalistas brasileiros. Pessoas que se orgulham de terem entrado para as listas dos mais ricos do mundo, mas não se envergonham – como deveriam – do custo que essa riqueza impõe ao nosso País e à grande maioria da população. E os conflitos ambientais mapeados nos mostram que as mais atingidas são sobretudo comunidades historicamente discriminadas por suas origens étnicas ou “raciais”, como os povos indígenas, quilombolas e outras populações consideradas “não brancas”.

No interior, o que temos é a pecuária, a soja, a cana de açúcar e os grandes empreendimentos eletrointensivos devoradores de energia (e, em consequência, determinantes de mais e mais hidro e termoelétricas e, agora, de novas usinas nucleares) desmatando, queimando, inundando… Do Sul ao Norte, os Desertos Verdes se sucedem, numa outra invasão exótica: a das monoculturas do eucalipto. No litoral Nordeste, principalmente, vemos a carcinicultura e os mega empreendimentos turísticos destruindo manguezais e apicuns e privatizando praias e o próprio mar. Em todos esses processos, povos indígenas, pescadores, marisqueiras, caiçaras são expulsos; quilombolas, ribeirinhos e outros tantos são sumariamente condenados ao degredo.

A ganância e o preconceito – ingredientes essenciais ao Racismo Ambiental – tratam o território como se ele fosse deserto de vidas. Como se terra, água, mata e praias não fossem habitadas por serem humanos que ali nasceram e cujos ascendentes ali constituíram suas moradias, seus meios de sobrevivência, suas tradições, seus laços de parentesco e de amizade.

Em alguns casos, essa expropriação se dá de forma relativamente pacífica. A falácia do desenvolvimento e do progresso, aliada ao oferecimento de empregos temporários, transforma o assalto em uma forma de suicídio: as próprias comunidades são convencidas a colaborar no desmatamento, na destruição dos manguezais, até mesmo no garimpo que envenenará suas águas. Cumprida essa última parte de sua “função social” na ótica do capital, essas sub-raças podem ser “dispensadas”, o que no caso é sinônimo de expulsão sumária. Quando resistem, os métodos mudam. E irão desde o uso da violência e dos jagunços, à compra de registros e autoridades, numa usurpação de direitos que é um verdadeiro escárnio à concepção de Justiça. Este terceiro slide é bastante expressivo quanto a essa questão.

Slide 3

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Dentre os “Danos e riscos à saúde” causados pelos conflitos, a “Piora na qualidade de vida” está presente em 25% dos casos, urbanos e rurais, implicando em diferentes causas e situações. Logo em seguida, entretanto, temos outra questão, para nós considerada tipicamente urbana, mas que aqui se refere fundamentalmente a conflitos da zona rural: a “Violência”. Ela está presente em 24% dos casos, de diferentes formas: como ameaça (12%), coação física (5%), lesão corporal (4%) e assassinatos (3%).

Mas há também outros tipos de violência praticados contra essas populações. Seguem, pois, “Insegurança alimentar e desnutrição” (14%); “Doenças não transmissíveis ou crônicas” (13%); “Falta de atendimento médico” (9%); “Doenças transmissíveis” (6%); “Acidentes” (4%); e “Suicídios” (1%). Desses dados, vale ressaltar que a maioria absoluta dos que envolvem doenças transmissíveis está ligada a povos indígenas. Principalmente a mulheres e adolescentes contaminadas por doenças sexualmente transmissíveis, inclusive AIDS, como subprodutos da expansão agrícola e da mineração.

Como se isso não bastasse, todos os casos incluídos no 1% de “Suicídios” dizem também respeito a indígenas que, expulsos de suas terras, alijados de suas tradições e culturas e/ou transformados em párias nas periferias das cidades, acabaram optando pelo “não ser” absoluto. Sobre esse assunto, vale lembrar que o CIMI divulgou, no início deste mês de julho, seu Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – 2009. Segundo esses dados, que ainda não constam do nosso Mapa, houve 19 casos de suicídio de indígenas no ano passado. Todos em um mesmo estado: Mato Grosso do Sul, que é também recordista em outro quesito, registrando 54% de todos os assassinatos indígenas do País em 2009.

A violência do Racismo Ambiental poderia ainda ser vista de outro ângulo, se tivéssemos tempo para mostrar aqui o slide sobre os “Danos ao meio ambiente”. Nele, com uma incidência em 6% dos casos, consta o item “Poluição atmosférica”. Mas o que para nós é tido como algo típico das cidades, lá se refere predominantemente à zona rural, através do uso indiscriminado de agrotóxicos.

O que me faz mencionar esse item aqui, entretanto, é o fato de esses agrotóxicos serem em grande parte dos casos pulverizados por aviões, obrigando as pessoas a se esconderem em casa, o que não impede que envenenem a tudo e a todos. Mas o pior é que muitas vezes isso é mais que um “combate às pragas” das monoculturas. Trata-se também de uma estratégia utilizada para expulsar as comunidades, submetidas a um verdadeiro “bombardeio tóxico”, no qual o ar que respiram, suas hortas, suas criações, suas terras e sua água são contaminados, assim como elas próprias.

Se deixarmos de lado a área rural e voltarmos nosso olhar para as cidades e, em especial, para as origens dos seus habitantes aos quais são negados os direitos da cidadania, sabemos que, excetuando os negros pseudamente libertos da escravidão urbana, na maioria absoluta esses não cidadãos vieram do campo. Negros, índios, caboclos, cafuzos ou até brancos, não importa; as histórias se repetem e seus efeitos são os mesmos.

Em muitos casos, há algumas décadas seus ascendentes foram atraídos para as grandes cidades, interessadas na mão de obra barata do Norte/Nordeste. Uns poucos conseguiram realizar seus sonhos e de alguma forma se estabilizar nas grandes cidades; outros voltaram para as suas origens; a maioria provavelmente tornou-se parte do grande exército de reserva que deu início às Cidades Tiradentes e às Rocinhas da vida.

Faz tempo que São Paulo tornou-se a maior cidade do Nordeste brasileiro. Agora, é também o grande habitat de uma categoria mais recente: os “índios urbanos”. E não são mais as promessas e sonhos de emprego que atraem povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais para os centros urbanos, mas o desespero, a marginalização, a perda de seu espaço de vida e a expulsão sumária. E o racismo – ambiental, institucional e também impregnado na visão de mundo de muitos de nós – está igualmente presente na forma como a cidade acolhe esses atuais “refugiados ambientais”. Há e haverá cada vez menos espaço para eles, para esses “indesejáveis” que aumentarão ainda mais as favelas e as periferias inóspitas, e que grande parte da população urbana vê acima de tudo como “futuros marginais”.

É a partir dessas questões que gostaria de caminhar para o último item, mostrando a vocês, a partir do próprio Mapa, como essas comunidades e populações veem a atuação dos órgãos e instâncias da Justiça.

3. As atuações do Ministério da Justiça, das Defensorias e dos Ministérios Públicos, Estadual e Federal

Agora vamos utilizar diretamente o Mapa, fazendo algumas pesquisas por palavra chave. O slide 4 marca todas as ocorrências da ação dos Ministérios Públicos – Estadual e Federal –  nos conflitos. O número fala por si: dos 297 casos, o MPE e MPF, juntos, estão presentes em 210, espalhados por todo o País, embora bastante concentrados na zona litorânea.

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Slide 4

A mesma pesquisa pode ser feita separando as ações dos dois Ministérios. E, como veremos nos próximos slides, as presenças não são equânimes, quer em números absolutos, quer em localização geográfica. Optemos inicialmente por pesquisar a abrangência da atuação do Ministério Público Federal, presente no slide 5.

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Slide 5

O MPF está presente em 137 dos 297 conflitos, num desenho que lembra bastante o anterior. Desses 137 casos, uma visão rápida e limitada exclusivamente aos títulos dos casos presentes no Mapa indica que a grande maioria envolve povos indígenas, num total de 56 conflitos, seguida de quilombolas, com 33. Mas a ação do Ministério Público Federal também alcança ribeirinhos, pescadores artesanais, agricultores familiares, sem terras e outros tantos, embora em números menos expressivos.

Vejamos, agora, o que temos de informação sobre a ação dos Ministérios Públicos Estaduais, presente no slide 6.

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Slide 6

Ao contrário do que talvez devêssemos esperar, dada a proximidade dos conflitos, os Ministérios Públicos Estaduais estão presentes em apenas 38 casos. E acho que também vale considerarmos a total ausência de qualquer registro na Região Centro-Oeste, que bem sabemos o que representa em termos de Racismo Ambiental, de luta pela demarcação de terras e de violência, em particular. Basta contrapormos o que foi dito a respeito de Mato Grosso do Sul ao clamoroso vazio presente no estado.

Uma rápida análise dos 38 conflitos mostra que eles envolvem majoritariamente agricultores familiares (15), populações quilombolas (nove), ribeirinhos (sete), pescadores artesanais (seis), povos indígenas (cinco) e moradores de aterros de rejeitos ou lixões (também cinco). Números bastante diferentes daqueles apresentados em relação ao MPF, sob todos os pontos de vista.

Outra pesquisa no saite do Mapa, e podemos ver que o Ministério da Justiça, em si, aparece como ator num total de 13 conflitos, dos quais apenas um não se refere a povos indígenas, mas à luta dos extrativistas por seus direitos em Xapuri, Acre. O slide 7 nos mostra onde se dá essa atuação:

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Slide 7

Finalmente, se buscarmos uma informação sobre as Defensorias Públicas, o quadro ficará ainda mais restrito, como pode ser visto no slide 8:

Slide 8

Dos nove casos em que as Defensorias Públicas estão atuando, três envolvem quilombolas, e dois, povos indígenas. Os outros estão divididos igualmente entre ribeirinhos, pescadores artesanais, agricultores familiares e, num conflito tipicamente urbano, catadores de materiais recicláveis.

Como as populações encaram essas atuações?

Aqui temos duas faces de uma mesma moeda. No slide 9, vemos algo que pode nos deixar otimistas. Para as comunidades atingidas, o Ministério Público – englobando Federal e Estadual – figura como um dos principais parceiros na luta, presente em 16% dos casos. E, se formos pesquisar os dados referentes a esses conflitos, veremos referências altamente elogiosas e relatos de atitudes corajosas por parte desses operadores da justiça. Em muitos, eles garantiram não só as terras e outros direitos, como as próprias vidas das pessoas envolvidas.

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Slide 9

Mas a moeda tem outra face, infelizmente. No slide 10, podemos ver as atividades que as comunidades apontam como responsáveis pelas situações de conflito que vivenciam.

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Slide 10

No que concerne a processos produtivos, todos os números majoritários presentes no slide dizem respeito a atividades que, ou negam o território à população que a ele tem direito, ou a expulsam para utilizá-lo em grandes projetos, sejam eles quais forem. Na listagem estão presentes as “Monoculturas”, responsáveis por 14% dos conflitos; a “Mineração, garimpo e siderurgia”, com 7%; as “Madeireiras” e as “Barragens e hidrelétricas”, ambas com 6%; a “Indústria química e de petróleo/gás”, 5%; a “Pesca industrial e carcinicultura”, 4%; e, todas com 3%, a “Pecuária”, as “Hidrovias, rodovias e gasodutos” e os “Agrotóxicos.

Dos 12% dos conflitos classificados como “outros”, vale citar os principais: a “Indústria do turismo”, com um total de 19% desses 12% dos casos; o “Setor imobiliário”, com 15%; as “Carvoarias”, com 10%; os “Aterros sanitários e depósitos de resíduos, 8%”; e a “Infraestrutura portuária”, a grande ‘novidade’ atual, presente em 6%.

Mas se enveredarmos por outro caminho nessa estatística sem vencedores dignos, o dado que mais choca é o fato de o primeiro lugar na lista dos “responsáveis” ser ocupado pela omissão e/ou conivência que as populações identificam nas “Ações das autoridades governamentais”, em 22% dos conflitos. Se a esse número somássemos os 8% das “Políticas públicas e legislação ambiental”, teríamos um total de 30% dos casos. Mas para o nosso tema, especificamente, acho que importam ainda mais os 4% de responsabilidade que as comunidades atribuem à “Atuação do Judiciário e do Ministério Público” – estadual e federal – quanto às injustiças ambientais sofridas.

Esses 4% correspondem a 31 conflitos. Vale ver exatamente onde eles estão localizados, inclusive para avaliarmos, a grosso modo, se as queixas das comunidades têm fundamento. E o que o slide 11 nos revela é o vazio anterior agora preenchido com algumas denúncias.

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Slide 11

4. Desafios e perspectivas para os defensores de direitos humanos

De tudo o que vimos e partindo exatamente destes últimos dados, penso que podemos tirar alguns desafios. Se desejamos uma sociedade que não nos envergonhe do ponto de vista dos Direitos Humanos, precisamos lutar para incluir cada vez mais, no combate às injustiças e ao Racismo Ambiental, também juízes, membros das Defensorias e dos Ministérios Públicos, autoridades do Poder Judiciário, enfim. O total vazio no Centro-Oeste e o quase vazio de pontos vermelhos na Região Norte necessitam ser preenchidos, antes de sumirem do Mapa. E eles só devem desaparecer quando os conflitos tiverem sido resolvidos, quando os direitos tiverem sido conquistados.

No que me diz respeito, gostaria de ver multiplicados ao menos por dezenas os sete casos em 297 nos quais a Defensoria Pública esteve engajada. Como gostaria que desaparecessem aqueles 4% de comunidades que veem na Atuação do Judiciário e do Ministério Público a origem de seus conflitos. Seria também muito bom se, ao contrário, pudéssemos agregar muito mais casos aos 16% que encaram os Ministérios sobre seus grandes parceiros.

Talvez tudo se inicie com um desafio maior: o de irmos cada vez mais longe, na construção de uma Justiça que garanta a cidadania sem considerar a cor das peles, as origens ou o valor das contas bancárias. Da Faculdade de Direito ao Supremo Tribunal Federal, é preciso que a invisibilização de índios, quilombolas e comunidades tradicionais deixe de ser aceita como algo natural.

E isso também diz respeito aos casos urbanos. Sabemos quem são as pessoas mais atingidas nas cidades: operários contaminados e seus familiares; moradores das periferias e favelas; migrantes do Nordeste, principalmente. Negros, na maioria; gente pobre, com certeza. São eles os moradores das “zonas de sacrifício”; são eles os submetidos à chantagem do emprego, explorados como mão de obra barata e descartável. São eles que são expulsos pela explosão imobiliária; são eles os não cidadãos, com acesso precário à justiça, à saúde, à educação, a condições de vida de qualidade e ao bem viver, enfim.

A negação dos direitos humanos, a condenação à pobreza, a discriminação e o Racismo Ambiental não são em absoluto democráticos, assim como a própria luta de classes não o é. Eles têm cor, têm origem étnica, quando não geográfica. São reflexos de valores e práticas racistas que, neguemos ou não, fazem parte do nosso mais íntimo imaginário social e cultural, reproduzindo-se de forma perversa na nossa vida cotidiana. E isso não acontece apenas na medida em que esses valores são “naturalizados” por um senso comum formado por meios de comunicação que atuam como aparelhos de hegemonia a serviço das ideias e da classe dominante. O racismo e a discriminação estão histórica e insidiosamente impregnados nas nossas vidas e, até mesmo, na nossa militância política e na nossa própria concepção de mundo.

Em nome de tudo isso, espero que nossa parceria cada vez mais se estreite, para que construamos juntos o caminho para a nossa utopia por um mundo onde o capital não prevaleça, por um mundo sem injustiças e sem racismo – social e ambiental. Que as advogadas e os advogados populares aceitem o desafio de contribuir cada vez mais para mudarmos o que mostram esses slides, para as próximas versões do Mapa da injustiça ambiental de saúde no Brasil. Ao final de tudo, acho que o mero fato de aqui estarmos indica que todas e todos optamos pelo lado da justiça, da fraternidade, da luta e da esperança. Que continuemos assim.

*Texto escrito para o Encontro Nacional da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares, RENAP, realizado durante o “II Curso Essencial em Justiça de Transição: anistia política e direitos humanos”, em 31 de julho de 2010, em Luziânia, Goiás.

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