Tania Pacheco*
Considerando que o Direito não é minha área de atuação, antes de preparar minha fala me preocupei em buscar um mínimo de dados sobre o papel da Defensoria em nossa sociedade. E, graças à ajuda de Thiago Tozzi, cheguei à Lei Complementar nº 132, sancionada pelo Presidente da República há quase um ano, em 7 de outubro de 2009. Embora tenha a certeza de que a maioria das pessoas aqui presentes devam conhecê-la de cor, peço licença para citar seu artigo 1º, pois considero fundamental que ele sirva de pano de fundo para tudo o que mostrarei e direi em seguida:
“Art. 1º – A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.”
Qual a importância desse artigo para a minha apresentação? Essa é uma resposta extremamente fácil de ser dada: ele sintetiza o espírito de uma Lei que vem totalmente ao encontro das necessidades e urgências expressas no Mapa, como veremos a seguir. Por isso quero partir dele, mantê-lo em mente e a ele voltar, na minha conclusão.
Acontece que o Mapa da injustiça ambiental e saúde no Brasil tem uma peculiaridade que o diferencia: os conflitos que ele registra são apresentados através do olhar e das vivências das comunidades e das populações atingidas. Isso significa que é a partir de suas vozes que as denúncias são relatadas, embora busquemos complementá-las com outras informações, obtidas junto a seus diferentes parceiros, estudos acadêmicos, notícias de jornais e da internet, e outros mais. Mas são as comunidades as nossas protagonistas, e é a partir das lutas que elas vivenciam e enfrentam que construímos a nossa pesquisa. Ressaltar esse fato é importante, pois ele também vai determinar os comentários e as referências que farei a seguir.
Minha fala será dividida em três partes: primeiro, quero mostrar alguns dados retirados do próprio Mapa, que considero devem embasar a nossa discussão. À luz desses resultados, gostaria de falar um pouco sobre um tema que é minha grande frente de luta: o Racismo Ambiental. Finalmente, pretendo socializar rapidamente algumas informações sobre como a ação da Justiça, dos Ministérios Públicos e das Defensorias Públicas nele aparecem.
Ainda há outro esclarecimento importante a ser feito: o Mapa é um processo em construção contínua, recebendo novas informações, não só sobre os casos em andamento, como sobre outros que já existem ou estão surgindo. Nesta apresentação, entretanto, falarei dos 297 conflitos que foram mapeados inicialmente. Esse número não se divide uniformemente por estado, variando de cinco a 30, selecionados pela sua dramaticidade e/ou abrangência em cada unidade da Federação. Lamentavelmente, cerca de 40 serão a ele acrescentados nos próximos dias; outros 60 estão sendo pesquisados; e outros tantos surgem diariamente, como novas denúncias. E digo “lamentavelmente”, claro, porque gostaríamos todos que esse quadro fosse diferente. Mas será à luz dos 297 com os quais o Mapa foi disponibilizado na internet que vamos agora trabalhar. Comecemos, pois, pelo nosso primeiro item:
1. O Mapa e as principais revelações que ele nos traz
O primeiro dado que gostaria de partilhar diz respeito ao nosso cenário maior, à relação urbano-rural, que poderemos ver no slide 1: “A localização dos conflitos”.
Embora esses números sejam questionados por muitas pessoas, as estatísticas do IBGE nos dizem que cerca de 83% da população brasileira vivem em cidades de portes variados, e apenas 17% estão ainda no campo. Esses índices são radicalmente invertidos se olharmos para os 297 conflitos presentes no Mapa. Como é possível ver no slide 1, 60,85% deles estão na zona rural; 30,99%, na zona urbana; e 8,38% atingem moradores de áreas onde campo e cidade de alguma forma se misturam.
A essa informação podemos agregar outra, que acrescenta mais uma dimensão a esses dados no que se refere à abrangência dos conflitos. No Amapá, temos apenas oito casos registrados, contra 30, em São Paulo. No entanto, esses oito conflitos do Norte atingem 100% dos 16 municípios do estado. A situação de São Paulo é bastante diferente: seus 30 conflitos afetam apenas 38 dos 645 municípios, correspondendo a 5,89% do total.
Isso não acontece por acaso. Enquanto os conflitos paulistas são, na maioria, urbanos e localizados, no geral envolvendo alguns milhares de metros quadrados, os do Amapá são contados em milhares de hectares de território, muitas vezes se espraiando de um município para outros, vizinhos. Sabemos bem os motivos que levam a isso: é no campo que os grandes projetos “produtivos” e de infraestrutura se expandem, no atual processo de desenvolvimento que une os interesses de empresas e Estado.
Isso pode ser ainda melhor ilustrado se usarmos agora o próprio Mapa, fazendo uma busca com as palavras “terra e território”, para verificar o número de conflitos que têm nessa disputa sua origem principal. Vamos ao slide 2:
Na imagem, o que temos são as marcas de 227 de um total de 297 conflitos, o que corresponde a 76,5% dos casos. E vale registrar que: primeiro, muitos dos demais casos envolvem também questões ligadas a terra e território nas suas origens; e, segundo, como podemos ver um grande número desses conflitos está na zona costeira, e muitos acontecem também em áreas urbanas, como mostrarei.
Nesse cenário construído em rápidas pincelas, nossa segunda questão diz respeito a quem são as populações e comunidades mais atingidas. É o que veremos a seguir.
2. Quem são os principais atingidos ( slide 3)
À medida que se desenvolve, a luta pelo território determina aquelas e aqueles que serão por ela atingidos. A liderança dos 18% de conflitos envolvendo povos indígenas se torna muitíssimo mais expressiva se considerarmos que, segundo a FUNAI, há apenas cerca de 660 mil índios no País, dos quais somente 460 mil vivem em aldeias. Mais: esse número equivale a 0,25% da população brasileira! É claro que não estão sendo computados, nem pela FUNAI, nem pelo próprio Mapa, as centenas de milhares de indígenas que, expulsos de suas terras, viram como única solução negar suas origens, na busca pela aceitação e pelo emprego nas cidades. Ou alguns deles, que ultimamente nos levaram a um novo campo de estudos: os índios urbanos.
Ainda no campo e em seguida aos povos indígenas, temos, entre os “mais votados”, os agricultores familiares, com 17%; os quilombolas, com 12%; os pescadores artesanais, com 8%; os ribeirinhos, com 7%; e os caiçaras, com 2%. Na faixa do 1%, temos as quebradeiras de coco babaçu, marisqueiras, catadores de caranguejos, extrativistas, faxinalenses, geraizeiros, seringueiros, entre outros.
Circundei de cores diferenciadas alguns grupos com um propósito específico. Em branco, temos os percentuais mais altos envolvendo povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Optei por “cercar” de vermelho os 17% de agricultores familiares, uma vez que muitas vezes torna-se difícil separar, nessa autoclassificação com a qual trabalhamos, os camponeses que efetivamente estão vivenciando conflitos em suas terras e os que ainda estão lutando por ela, que seria o caso dos que se reconheceram objetivamente como “sem terra”, somando 1%. E a eles talvez pudéssemos acrescentar, englobando os três num mesmo tipo de problema, os boia frias, que também totalizam 1%.
Busquei igualmente reformatar as principais informações referentes ao mundo urbano, marcando-as em amarelo. Se deixamos de lado os 6% de operários envolvidos nos conflitos e focalizamos as informações referentes a “moradores”, agrupando-as, temos um quadro bastante interessante. Nas “periferias inóspitas”, temos 2% dos conflitos acontecendo; em “bairros normalmente atingidos por acidentes ambientais”, outros 4%; os “moradores de aterros contaminados” somam 8%; os do “entorno de incineradores” não chegam a 1%, mas os que vivem no “entorno de lixões” somam 2%; os sem teto são 3% dos casos; e os que habitam “encostas ou favelas”, 1%.
O total é bastante expressivo e mostra que, mesmo nas áreas urbanas, 20% dos casos envolvem diretamente a questão do território. Ou do direito cidadão à moradia, se assim quisermos falar. E eu diria que na maioria isso acontece por causas duplamente ligadas ao direito à terra e ao território. Se de um lado não há dúvida de que eles sobrevivem nesses locais pela mais completa falta de opção, por outro, sabemos que a grande maioria deve estar agora vivendo essa situação por ter sido expulsa de seus espaços e moradias originais, provavelmente no campo.
Mas o que gostaria de deixar marcado, acima de tudo, é quem exatamente são os protagonistas no nosso cenário desumano. No campo, além dos índios e quilombolas, outros componentes de comunidades tradicionais, como vimos; e na cidade? Quais serão as ‘identidades’ predominantes nos aterros contaminados, nas periferias inóspitas, nos lixões e nas favelas?
3. Introduzindo o conceito de Racismo Ambiental no cenário
Partindo exatamente do que foi dito anteriormente, gostaria de inserir rapidamente aqui um conceito que para algumas pessoas poderá ser novo: o de Racismo Ambiental. Chamamos de “Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e outras comunidades, discriminadas por sua origem ou cor”.
Nos casos dessas e desses excluídos urbanos, moradores de diferentes locais de alguma forma inóspitos, temos consciência de que, além da questão da classe social, há outro componente presente na grande maioria: o racismo. Pode-se dizer, inclusive, que na formação das classes sociais o racismo é um componente determinantes das desigualdades. Basta um olhar um pouco mais atento para se identificar que a pobreza tem cor. Nas grandes cidades ou, mesmo, nas menores, as pessoas envolvidas nesses conflitos são majoritariamente negros, nordestinos ou, ainda, nordestinos negros. Porque o Racismo Ambiental tem uma composição de origem simples: ganância mais preconceito. E quando uso a palavra “preconceito”, entendo-a englobando suas consequências diretas: discriminação, subordinação, segregação e marginalização.
Nossa tendência quando ouvimos falar em racismo é considerar apenas a população negra. Mas o que está em pauta vai bem além dela. Engloba a maioria absoluta daqueles que foram listados entre os mais atingidos pelos conflitos estudados, dos povos indígenas, que lideram os números, às quebradeiras de coco, que aparecem na lista do 1%. E sem esquecer que é igualmente racista a forma como os nordestinos são encarados e tratados no “Sul Maravilha”, numa situação que hoje também se repete no Centro-Oeste, em cidades como Sorriso, a chamada “capital da soja”.
É o mesmo preconceito racista que com essas conotações imperou e impera ainda na Casa Grande, jogando cada vez mais para as periferias – as “senzalas modernas” – os que chamo de “não brancos”. E que agora se alia à ganância para expulsar de suas terras aqueles e aquelas que estão no caminho das monoculturas; dos agro e hidronegócios; dos grandes empreendimentos turísticos; das minerações e siderurgias; dos atuais grandes complexos portuários, previstos para escoar nossas riquezas; de tudo o que pode ser transformado em lucro e poder, enfim.
Gostaria, neste instante, de mostrar rapidamente alguns slides, para que possamos ver como se espalham no Mapa os conflitos envolvendo essas comunidades. Os próximos cinco slides falam por si.
Não vou desrespeitar as pessoas aqui presentes repetindo o óbvio acerca do modelo de desenvolvimento hegemônico e de suas implicações para com o território e as pessoas que o habitam. Estamos vivendo a “farsa das invasões estrangeiras”. E não uso a palavra farsa apenas numa menção à célebre frase marxiana, ligando-a à repetição de algo que estudamos nas aulas de História do Brasil. Uso-a na medida em que sabemos muito bem que a apropriação e expropriação do território não estão sendo feitas, no nosso caso em especial, apenas por estrangeiros. E esse ponto nos diferencia do que vem acontecendo em outros países da América Latina e, mais recentemente, da África.
Muitas das empresas e empreendimentos que vêm cortando, desmatando, expulsando e dizimando o meio ambiente e seus habitantes, num vórtice de ganância que se espraia principalmente do Sul para o Norte e Nordeste, arrasando na passagem o Centro-Oeste, têm como responsáveis capitalistas brasileiros. Pessoas que se orgulham de terem entrado para as listas dos mais ricos do mundo, mas não se envergonham – como deveriam – do custo que essa riqueza impõe ao nosso País e à grande maioria da população. E os conflitos ambientais mapeados nos mostram que as mais atingidas são sobretudo comunidades historicamente discriminadas por suas origens étnicas ou “raciais”, como os povos indígenas, quilombolas e outras populações consideradas “não brancas”.
No interior, o que temos é a pecuária, a soja, a cana de açúcar e os grandes empreendimentos eletrointensivos, devoradores de energia (e, em consequência, determinantes de mais e mais hidro e termoelétricas e, agora, de novas usinas nucleares) desmatando, queimando, inundando e contaminando… Do Sul ao Norte, os Desertos Verdes se sucedem, numa outra invasão exótica: a das monoculturas do eucalipto. No litoral Nordeste, principalmente, vemos a carcinicultura e os mega empreendimentos turísticos destruindo manguezais e apicuns e privatizando praias e o próprio mar. Em todos esses processos, povos indígenas, pescadores, marisqueiras, caiçaras são expulsos; quilombolas, ribeirinhos e outros tantos são sumariamente condenados ao degredo.
A ganância e o preconceito – ingredientes essenciais ao Racismo Ambiental, repito – tratam o território como se ele fosse deserto de vidas. Como se terra, água, mata e praias não fossem habitadas por serem humanos que ali nasceram e cujos ascendentes ali constituíram suas moradias, seus meios de sobrevivência, suas tradições, seus laços de parentesco e de amizade. Povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais são meros “entraves” na paisagem, aos quais são negados cidadania e direitos, começando pelo direito à própria existência.
Em alguns casos, essa expropriação se dá de forma relativamente pacífica. A falácia do desenvolvimento e do progresso, aliada ao oferecimento de empregos temporários, transforma o assalto em uma forma de suicídio. As próprias comunidades são convencidas a colaborar no desmatamento, na destruição dos manguezais, ou até mesmo no garimpo que envenenará suas águas. Cumprida essa última parte de sua “função social”, na ótica do capital, essas sub-raças podem ser “dispensadas” – o que no caso é sinônimo de expulsão sumária – para que os “grandes empreendimentos” se instalem. Quando resistem, os métodos mudam. E irão desde o uso da violência e dos jagunços, à compra de registros e autoridades, numa usurpação de direitos que é um verdadeiro escárnio à concepção de Justiça.
4. Os impactos na saúde das populações
No próximo slide, pelo qual passaremos rapidamente, mostra como essas populações são impactadas por tudo isso e deixa claro, melhor que qualquer discurso que possa aqui ser feito, os efeitos da injustiça e do Racismo Ambiental. Slide 9:
Dentre os “Danos e riscos à saúde” causados pelos conflitos, a “Piora na qualidade de vida” está presente em 25% dos casos, urbanos e rurais, implicando em diferentes causas e situações. Logo em seguida, entretanto, temos outra questão, para nós considerada tipicamente urbana, mas que aqui se refere fundamentalmente a conflitos da zona rural: a “Violência”. Ela está presente em 24% dos casos, de diferentes formas: como ameaça (12%), coação física (5%), lesão corporal (4%) e assassinatos (3%).
Mas há também outros tipos de violência praticados contra essas populações. Seguem, pois, “Insegurança alimentar e desnutrição” (14%); “Doenças não transmissíveis ou crônicas” (13%); “Falta de atendimento médico” (9%); “Doenças transmissíveis” (6%); “Acidentes” (4%); e “Suicídios” (1%). Desses dados, vale ressaltar que a maioria absoluta dos que envolvem doenças transmissíveis está ligada a povos indígenas. Principalmente a mulheres e adolescentes contaminadas por doenças sexualmente transmissíveis, inclusive AIDS, como subprodutos da expansão agrícola e da mineração.
Como se isso não bastasse, todos os casos incluídos no 1% de “Suicídios” dizem também respeito a indígenas que, expulsos de suas terras, alijados de suas tradições e culturas e/ou transformados em párias nas periferias das cidades, acabaram “optando” pelo “não ser” absoluto. Sobre esse assunto, vale lembrar que o CIMI divulgou, no início de julho passado, seu Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – 2009. Segundo esses dados, que ainda não constam do nosso Mapa, houve 19 casos de suicídio de indígenas no ano passado. Todos em um mesmo estado: Mato Grosso do Sul, que é também recordista em outro quesito, registrando 54% de todos os assassinatos indígenas do País em 2009.
A violência do Racismo Ambiental poderia ainda ser vista de outro ângulo, se tivéssemos tempo para mostrar aqui o slide sobre os “Danos ao meio ambiente”. Nele, com uma incidência em 6% dos casos, consta o item “Poluição atmosférica”. Mas o que para nós é tido como algo típico das cidades, lá se refere predominantemente à zona rural, através do uso indiscriminado de agrotóxicos.
O que me faz mencionar esse item aqui, entretanto, é o fato de esses agrotóxicos serem em grande parte dos casos pulverizados por aviões, obrigando as pessoas a se esconderem em casa, o que não impede que envenenem a tudo e a todos. Mas o pior é que muitas vezes isso é mais que um “combate às pragas” das monoculturas. Trata-se também de uma estratégia utilizada para expulsar as comunidades, submetidas a um verdadeiro “bombardeio tóxico”, no qual o ar que respiram, suas hortas, suas criações, suas terras e sua água são contaminados, assim como elas próprias. Os cearenses presentes sabem melhor que ninguém do que estou falando, aliás.
Se deixarmos de lado a área rural e voltarmos nosso olhar para as cidades e, em especial, para as origens dos seus habitantes aos quais são negados os direitos da cidadania, sabemos que, excetuando os negros pseudamente libertos da escravidão urbana, na maioria absoluta esses não cidadãos vieram do campo. Negros, índios, caboclos, cafuzos ou até brancos, não importa; as histórias se repetem e seus efeitos são os mesmos.
Em muitos casos, há algumas décadas seus ascendentes foram atraídos para as grandes cidades, interessadas na mão de obra barata do Norte/Nordeste. Uns poucos conseguiram realizar seus sonhos e de alguma forma se estabilizar nas grandes cidades; outros voltaram para as suas origens; a maioria provavelmente tornou-se parte do grande exército de reserva que deu início às Cidades Tiradentes e às Rocinhas da vida.
Faz tempo que São Paulo tornou-se a maior cidade do Nordeste brasileiro. Agora, é também o grande habitat de uma categoria mais recente, que já mencionei: os “índios urbanos”. E não são mais as promessas e sonhos de emprego que atraem povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais para os centros urbanos, mas o desespero, a marginalização, a perda de seu espaço de vida e a expulsão sumária. E o racismo – ambiental, institucional e também impregnado na visão de mundo de muitos de nós – está igualmente presente na forma como a cidade acolhe esses atuais “refugiados ambientais”. Há e haverá cada vez menos espaço para eles, para esses “indesejáveis” que aumentarão ainda mais as favelas e as periferias inóspitas, e que grande parte da população urbana vê acima de tudo como “futuros marginais”.
É a partir dessas questões que gostaria de caminhar para o último item, mostrando a vocês, a partir do próprio Mapa, como essas comunidades e populações veem a atuação dos órgãos e instâncias da Justiça.
5. A atuação da Justiça, das Defensorias e dos Ministérios Públicos, Estadual e Federal
Agora vamos utilizar diretamente o Mapa, fazendo algumas pesquisas por palavra chave. O slide 10 marca todas as ocorrências da ação dos Ministérios Públicos – Estadual e Federal – nos conflitos. O número fala por si: dos 297 casos, o MPE e MPF, juntos, estão presentes em 210, espalhados por todo o País, embora bastante concentrados na zona litorânea.
Outra pesquisa no saite do Mapa, e podemos ver que o próprio Ministério da Justiça aparece como ator num total de 13 conflitos, dos quais apenas um não se refere a povos indígenas, mas à luta dos extrativistas por seus direitos em Xapuri, Acre. O slide 11 nos mostra onde se dá essa atuação:
Como as populações encaram essas atuações? Aqui temos duas faces de uma mesma moeda. No slide 12, vemos algo que pode nos deixar até certo ponto otimistas. Para as comunidades atingidas, o Ministério Público – englobando Federal e Estadual – e as Defensorias figuram como um dos principais parceiros na luta, presente em 16% dos casos. E, se formos pesquisar os dados referentes a esses conflitos, veremos referências altamente elogiosas e relatos de atitudes corajosas por parte desses “operadores da Justiça”. Em muitos, eles garantiram não só as terras e outros direitos, como as próprias vidas das pessoas envolvidas.
Mas a moeda tem outra face, infelizmente. No slide 13, podemos ver as atividades que as comunidades apontam como responsáveis pelas situações de conflito que vivenciam.
No que concerne a processos produtivos, todos os números majoritários presentes no slide dizem respeito a atividades que, ou negam o território à população que a ele tem direito, ou a expulsam para utilizá-lo em grandes projetos, sejam eles quais forem. Na listagem estão presentes as “Monoculturas”, responsáveis por 14% dos conflitos; a “Mineração, garimpo e siderurgia”, com 7%; as “Madeireiras” e as “Barragens e hidrelétricas”, ambas com 6%; a “Indústria química e de petróleo/gás”, 5%; a “Pesca industrial e carcinicultura”, 4%; e, todas com 3%, a “Pecuária”, as “Hidrovias, rodovias e gasodutos” e os “Agrotóxicos.
Dos 12% dos conflitos classificados como “outros”, vale citar os principais: a “Indústria do turismo”, com um total de 19% desses 12% dos casos; o “Setor imobiliário”, com 15%; as “Carvoarias”, com 10%; os “Aterros sanitários e depósitos de resíduos, 8%”; e a “Infraestrutura portuária”, a grande ‘novidade’ atual, presente em 6%.
Se enveredarmos por outro caminho nessa estatística sem vencedores dignos, o dado que mais choca é o fato de o primeiro lugar na lista dos “responsáveis” ser ocupado pela omissão e/ou conivência que as populações identificam nas “Ações das autoridades governamentais”, em 22% dos conflitos. Se a esse número somássemos os 8% das “Políticas públicas e legislação ambiental”, teríamos um total de 30% dos casos. Mas para o nosso tema, especificamente, acho que importam ainda mais os 4% de responsabilidade que as comunidades atribuem à “Atuação do Judiciário e do Ministério Público” – aqui englobando também as Defensorias – quanto às injustiças ambientais sofridas. Esses 4% correspondem a 31 conflitos. Vale ver exatamente onde eles estão localizados e quais as populações ou grupos atingidos, no slide 14.
6. A questão da Defensoria Pública em si
Deixei para o final, de propósito, os dados referentes às Defensorias Públicas. Vejamos agora como elas aparecem, nestes 297 casos. Penso que este penúltimo slide nos mostra um quadro que sem dúvida nos obriga a refletir, principalmente considerando a razão de ser deste Encontro. Porque o que vemos é, acima de tudo, um grande vazio: (slide 15).
Dos nove casos em que as Defensorias Públicas estão atuando, três envolvem quilombolas; dois, povos indígenas. Os outros quatro estão divididos igualmente entre ribeirinhos, pescadores artesanais, agricultores familiares e, num conflito tipicamente urbano, catadores de materiais recicláveis.
Mas há ainda uma última informação a ser destacada. O slide final mostra, propositalmente, um caso em destaque, em Alagoas, acompanhado de um trecho da ficha a ele correspondente:
De tudo o que vimos e partindo exatamente destes últimos dados, penso que podemos tirar muitos desafios. Espero que a criação do Fórum Nacional de Defensores Públicos e este próprio Encontro sejam os primeiros passos para que esse quadro mude. Para que as populações de todos os estados possam contar com Defensores Públicos legitimamente concursados, e que tenham em suas mentes, antes de mais nada, o compromisso que assumiram com aqueles e aquelas que necessitam de suas atuações para poder sobreviver. E sobreviver com dignidade. Tenho a certeza de que essa minha esperança é partilhada por todas as pessoas que aqui estão reunidas.
Sabemos que, para construir a sociedade que desejamos, que respeite os Direitos Humanos e garanta a cidadania, precisamos poder contar com Defensorias Públicas fortes e bem estruturadas, que possam atuar efetivamente no combate às injustiças e ao Racismo Ambiental, cumprindo o que diz a Lei Complementar 132. Precisamos de uma sociedade que abrigue e defenda esses valores com tal determinação, que nela sejam inadmissíveis e até impensáveis episódios truculentos e vergonhosos, como a invasão do NAC e a destituição sumária do Defensor Thiago Tozzi, num ato claro de subserviência ao capital.
Finalizando, gostaria de poder ter a certeza de que, num próximo Encontro ou, mesmo antes dele, numa próxima pesquisa no Mapa, os nove casos nos quais a Defensoria Pública esteve engajada tenham sido multiplicados às dezenas. Assim como gostaria que desaparecessem aqueles 4% de comunidades que veem na atuação do Judiciário, do Ministério e da própria Defensoria a origem de seus conflitos. Ao contrário, que tenhamos, sim, muito mais casos somados aos 16% dos que os encaram como seus grandes parceiros. E penso que isso nos impõe um desafio maior: o de irmos cada vez mais longe, na construção de uma Justiça que garanta a cidadania sem considerar a cor das peles, as origens ou o valor das contas bancárias daquelas e daqueles que ela tem o dever de defender.
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* Conferência no Encontro Nacional Defensoria Pública, Direitos Humanos e Tutela Coletiva. Promovido pelo IBAP em Fortaleza. 24 de setembro de 2010.