Mudanças climáticas e a cosmovisão Ashaninka

Erika Mesquita[1], em ClimaCom Cultura Científica

Ao redor do mundo, diversos povos são regidos por calendários criados a partir de uma interpretação dos astros ou de conjuntos de estrelas que fornecem símbolos para cada povo apreender os fenômenos meteorológicos e assim realizarem seus ciclos agrícolas de plantio e coleta. Katz, Goloubinoff e Lammel (2008) relatam, por exemplo, que entre os indígenas do México existe o conhecimento de que o desaparecimento das Plêiades no céu ao anoitecer e o aparecimento de Vênus representam o começo da estação chuvosa. Com esse enfoque, Faulhaber (2004), em seu estudo sobre os Ticuna, relata que a relação entre o movimento das estrelas no céu ao longo do ano e a influência da sazonalidade das chuvas e da estiagem estão manifestos nos aspectos mitológicos e cosmológicos deste povo. Além da interpretação dos corpos celestes, a observação das plantas e o comportamento dos animais podem representar pistas para se entender o clima. A percepção de indivíduos sobre as variações climáticas a partir da observação da natureza de acordo com sua cultura é objeto de estudo da antropologia do clima, também chamada de Etnoclimatologia, que é o que busco trazer sobre o olhar do povo Ashaninka no Brasil. Em linhas gerais, Faulhaber (2004) define a antropologia do clima como a análise da relação entre os fatores do clima e as culturas humanas, enquanto uma interação bidirecional.

Assim como outros moradores da floresta que vivem na região do Alto Juruá, os Ashaninka[2] também possuem sua maneira de observar a natureza, elaborando suas análises sobre as alterações nas estações e suas implicações em seu mundo da vida. Os Ashaninka possuem elaborações das formas de representação da natureza, das características das estações, de suas nuances e transformações. Eles norteiam suas atividades diárias a partir das variações sazonais do clima na região amazônica onde vivem. Portanto, a natureza e seus sinais são importantes para eles na marcação do início das épocas de plantio, de piracema, de floração das árvores da mata e de colheita dos frutos, bem como na ocorrência de seus rituais.

Eles reconhecem as duas estações presentes na floresta baixa onde habitam: o verão e o inverno, isto é, otsarentsi e kiawontsi; respectivamente tempo do sol e tempo das chuvas. E é esse ciclo climático em sua normalidade que assegura o calendário agrícola e a socialidade do grupo. A característica desse ciclo climático amazônico é importante para que haja uma alternância de formas de socialidade: uma voltada para a dispersão, que ocorre na estação seca, e outra para a concentração na estação chuvosa. Durante o período seco, os Ashaninka acampam nas praias, fazem viagens e plantam. Já no período chuvoso fazem artesanato, artefatos para utilizar no seu cotidiano e arrancam os matos que crescem com as chuvas e atrapalham o roçado. O verão e o inverno ocorrem em épocas que correspondem a meses distintos. Épocas que, nos dias atuais, os Ashaninka constatam estar bastante diferentes das de outrora. Os Ashaninka mais velhos comentam que o inverno e o verão permanecem iguais, no sentido de um preceder ao outro, mas com características distintas de tempos passados, porque entendem que inverno e verão estão ficando cada vez mais parecidos (MESQUITA, 2012).

Um momento é o tempo do verão (otsarentsi) e o outro o tempo do inverno (kiawontsi). É considerado um período de verão um dia de sol ou uma sequência de dias de sol que podem ocorrer seja nos meses de verão seja nos de inverno. E igualmente para o inverno, que pode ser um dia de chuva ou um período chuvoso dentro das duas estações. Os períodos chuvosos e os secos sempre foram encarados como fenômenos naturais, e as mudanças nas características dessas estações passaram a ser interpretadas pelos Ashaninka como um problema para além do climático, perpassando questões sociocosmológicas.

Os Ashaninka apreciam a monotonia cotidiana, referente aos ciclos climáticos, sentidos em seus trabalhos diários nos roçados, pois remete a uma normalidade da vida na aldeia. Eles não gostam de nenhum evento atípico nos ciclos de verão e inverno, pelo fato desses eventos serem sinônimo de não abundância de alimentos, logo, de uma vida menos rica e saudável. Portanto, dessa percepção advém as observações sobre as características anormais do verão e do inverno, logo, das mudanças climáticas notadas in loco.

Chuva sobre a Floresta no alto Juruá - Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Erika Mesquita
Chuva sobre a Floresta no alto Juruá – Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Erika Mesquita

FENÔMENOS METEOROLÓGICOS

Qualquer fenômeno meteorológico tem relação direta com a vida e com a cosmologia Ashaninka. A observação dos movimentos do sol, da lua e das constelações, do comportamento de certos animais, bem como a presença de calor, frio ou direção do vento se tornam sistemas simbólicos que as populações indígenas e tradicionais utilizam para prever as condições climáticas em curto e médio intervalo de tempo. A percepção do clima está ligada não somente ao tempo, mas também ao espaço onde vivem.

Eles percebem que a lua e outros astros “estão tortos”, e esse fenômeno também contribui para que ocorram as mudanças no clima observadas e vividas. Segundo eles, era com a chegada de determinados ventos e a ocorrência de um pequeno tremor de terra que os Ashaninka tinham a certeza da mudança na estação, de chuvosa para seca ou de inverno para verão. Atualmente, esses tremores não são sentidos ou são sentidos em excesso, ou seja, não mais um e sim vários; e os ventos estão todos ocorrendo de forma desregulada, não anunciando as estações.

A percepção do sistema climático, a posição dos corpos celestes com relação à Terra, ponto de referência para os Ashaninka, e considerada centro do universo, têm papel importante na leitura do céu e do que os astros revelam com relação ao “tempo” e ao clima. Assim, da mesma forma como Roberto Cardoso de Oliveira faz a relação se referindo ao mana, pode-se acreditar que o firmamento e a abóbada celeste podem ser considerados uma categoria, ou seja, uma representação coletiva que se atualiza no agente individual (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, p. 36). Os Ashaninka dizem que se eles fossem se nortear, hoje, pelos astros para suas atividades, estariam em situação complicada, porque a fumaça, que ocorre principalmente no verão, os impede de vê-los de forma satisfatória como os viam outrora.

Sendo assim, os Ashaninka recriam suas cosmologias. Não podendo ser apresentada em um sistema equilibrado e harmônico, a cosmologia é antes o produto de negociações entre indivíduos que tentam alcançar um acordo e produzir significados baseados em suas experiências, criando com isso novas interpretações (VIVEIROS DE CASTRO, 2004). Por isso, há inclusão em suas cosmologias de explicações atuais sobre as mudanças climáticas, conjuntamente com as acepções de fim do mundo.

Os fenômenos naturais, e dentre eles os climáticos, são apresentados como deidades que habitam e tem controle sobre vários mundos, depois de terem deixado de viver como Ashaninka nesse mundo. Por exemplo, em cada reunião de Piarentsi (caiçuma), os Deuses deixam mostrar seu estado de espírito. Comentam que se no Piarentsi cai inkani perto (chuva fina) é porque os espíritos femininos que habitam o céu estão alegres e bêbados. Caso Inkaniteri (Deus da chuva) esteja muito bêbado, ele faz cair antao inkani (chuva forte).

O observar a natureza traz as experiências necessárias para os Ashaninka elaborarem suas próprias categorias e maneiras de interpretar todos os fenômenos naturais. Para eles, a dança das estrelas no céu está associada às mudanças de estações e a alguns fenômenos meteorológicos, como friagens, alagações e ausência ou presença de chuvas fortes. Os fenômenos meteorológicos e os astros são identificados por nomes próprios, e têm uma existência em si, estabelecendo uma relação com outros fenômenos, que também têm uma existência em si, ou seja, uma agência, por serem e representarem deidades. A agência pode ser atribuída a quase tudo no mundo Ashaninka. Os fenômenos meteorológicos também possuem essa característica de agência, são causadores de ações de acordo com suas intenções. Dessa maneira, a agência se caracteriza por um evento provocado por uma causa ou intenção alojada na coisa que iniciou determinado fenômeno. De acordo com Viveiros de Castro (2002, p. 354-355), a condição comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade”. Isto implica pensar na existência de uma continuidade (e não uma dicotomia) entre humanos e não humanos, baseada no pressuposto de que todos os seres naturais são sociais, uma vez que possuem atributos humanos e características sociais, incluso aqui os fenômenos naturais. Gerald Weiss, por exemplo, descreve o mundo dos Kampa como “um mundo de aparências relativas, onde diferentes tipos de seres vêem as mesmas coisas diferentemente” (1969, p. 170). Assim, as chuvas são diferentes em si e representam Deuses, podendo expressar seu temperamento e/ou “emoção” em dado momento.

Há uma relação de parentesco espiritual entre os seres donos de um determinado fenômeno natural, telúrico ou climático, que são os deuses que habitam outros mundos, e os habitantes da terra. As divindades correspondentes aos fenômenos podem castigar os humanos enviando as anormalidades, e mesmo enfermidades vindas pelos ares, trazidas pelo dono dos ventos que, insatisfeito com certas posturas humanas, emite essa sentença, pelo arco-íris, tremores de terras, alagações, que indicam insatisfação dos Deuses. Esses espíritos deificados representam entidades ambíguas, ora com comportamentos bons, ora com comportamentos hostis.

AS MUDANÇAS NO CLIMA

A intervenção do próprio virakotxa (homem branco) também é percebida, para além da ira de Pawa (Deus que compõe o panteão Ashaninka). É vista como ganância dos homens brancos que traz a degradação do ambiente na região. A pesca predatória, a extração desordenada de madeira, as queimadas, a derrubada das matas para a criação de gado e porcos são fatos que os Ashaninka observam como motivo “da Terra estar como está”. O gado é considerado pelos indígenas como algo ruim para a floresta, pois onde era floresta e agora é campo para o gado há mais calor.

Práticas, representações e o habitus Ashaninka sobre o clima sempre averiguaram que a “adivinhação” – diagnósticos e os prognósticos – é uma forma de interpretar e definir a ordem da casualidade e do efeito em relação aos elementos do clima, dentro de um sistema cosmológico conhecido. Mas as mudanças nessas representações com relação ao clima trazem incertezas, inseguranças e dúvidas quanto às épocas de botar roçado, de plantio nas praias, bem como quanto à continuidade da vida na Terra no otsarentsi (verão) do próximo ano. Essa percepção das transformações que vêm ocorrendo é explicável. A noção de habitus(BOURDIEU, 1977), como ferramenta de análise, revela que, mesmo inconscientemente, as pessoas percebem e agem de acordo com os pressupostos dados pela sociedade em que vivem.

Os Ashaninka observam que a floração das árvores da mata não coincide mais com o que costumava ser normal antigamente. Percebem que essa anormalidade está acontecendo em todas as esferas, fazendo-se presente nas árvores da mata e até na ausência de aviso que alguns animais davam. Ocorre também pela perda de plantio nos barrancos de rios e apodrecimento de sementes, em razão das alagações inesperadas e de um verão cada vez mais diferente, resultado da quantidade de chuva que já não é a mesma dos antigos verões na região.

A previsão do tempo por meio de plantas se baseia na interpretação de seus aspectos de floração, abundância de frutos e perda de folhas, que constituem interessantes indicadores de seus “medidores de tempo”.. Segundo eles, antigamente, a floração de algumas árvores na mata acontecia em épocas certas. O entendimento para isso é que Pawa está insatisfeito com seus filhos e está se aproximando da Terra, e trazendo o “calor monstro” que um dia, em tempos ancestrais, fez com que ele fosse embora; Pawa é simbolizado também pelo sol.

O ooriyatatsiritxekopi (ensolarar da flecha, quando ocorre a floração da planta com a qual fazem as flechas) não ocorre mais no meio da estação chuvosa, que se dava em dezembro, época que a chicosa solta um ramo, material bom para fazer flecha. Dizem que agora a chicosa está dando fora desse tempo, e não se sabe mais ao certo qual é o momento para coletar esse material para produção de flechas e artesanato.

Sheripiari Ashaninka - Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Erika Mesquita
Sheripiari Ashaninka – Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Erika Mesquita

Existem indicadores zoológicos e botânicos que fazem prognósticos da proximidade do verão e inverno. Antigamente, relatam os Ashaninka, a aparição de formigas, larvas, sapos e cantos de pássaros era indício de que uma nova estação se aproximava. Atualmente, ao que parece, o processo já não é bem assim. Falar do tempo é, de certo modo, dizer algo sobre as turbulências para além do clima, refletidas nas questões sociais, ou seja, sobre as relações entre os homens, os espíritos e as divindades que regem o mundo. Assim, as estrelas e os conhecimentos astronômicos e cosmológicos Ashaninka tem a ver com os eventos climáticos e meteorológicos que ocorrem na Terra. Alguns Ashaninka entendem que seus Deuses estão insatisfeitos com os viracocha (homem branco) pelo que vêm praticando com a natureza e, por isso, os Sheripiari (xamã) buscam intervir nesta negociação para que não haja prejuízo para a vida na Terra.

Desse modo, para eles, o clima e os fenômenos atmosféricos estão relacionados a uma explicação de ordem mítico-religiosa, e não são determinados simplesmente por meio da observação de posições geográficas particulares ou apenas com a observação do movimento regular dos astros e “dos tempos”. Os fatores climáticos influenciados por seres que vivem em lugares míticos também interferem sobre os seres na Terra, entre os quais se situam os humanos. Os Deuses ou “seres donos” pertencentes à cosmologia Ashaninka possuem os sentimentos parecidos com os de um homem vivendo aqui na Terra. Eles têm raiva, sendo de humor, brincadeiras, porque também habitaram em tempos primordiais esse mundo. Hoje habitam outros mundos, mas guardam algumas dessas características, talvez resquícios de sua vida nessa Terra, por isso são temperamentais como os humanos. Portanto, os fenômenos meteorológicos têm existência em si mesmos, e se relacionam com o mundo sobrenatural. Na região que para muitos se apresentava como “inferno verde”, lugar onde as pessoas necessitam ser fortes e valentes para sobreviverem, “lugar de gente brava”, essas características são igualmente atribuídas às deidades, que na cosmologia dos povos da floresta estudados se mostram muito parecidas.

Esses seres que controlam os fenômenos naturais são compreendidos utilizando-se do invólucro do fenômeno em si para envolver sua essência também humana, portanto, como donos e conhecedores profundos daquele fenômeno, pois constituem o fenômeno e, assim, advogam sobre sua natureza e sua vontade, amparadas na própria natureza que também é humana. São coisa em si e “donos”de cada fenômeno, ou seja, o “dono do vento”, o “dono da chuva” e o “dono da mata”. Nesse sentido, as prescrições rituais dizem respeito a evitar comportamentos considerados perigosos, que acarretem reações desses seres, provocando, assim, as catástrofes que podem destruir o mundo. As catástrofes são fenômeno incomum, entendidas como a ira dos “donos” da natureza, possuidores de agencialidade, volição e intencionalidade.

Para os Ashaninka, todas as coisas vêm e são partes de um mesmo espírito, inclusive os próprios Ashaninka. É nesse todo sistêmico que os Kampa também estão inseridos na relação com outros seres. Eles reverenciam os fenômenos da natureza e acreditam na potência de recursos que permitem a vida, mas também no rigor dos Deuses. O Sheripiari é quem invoca a força ou os favores dos donos da fauna, da flora e dos fenômenos meteorológicos em prol da colocação de roçados, da presença de alimento e da fartura na colheita. E também invoca a força ou favores dos “donos dos fenômenos meteorológicos”, como Inkaniteri – “dono da chuva”, e Pawa, que representa o sol.

Os Sheripiari são os detentores da negociação entre os vários mundos que constituem sua cultura e responsáveis por realizar acordos com os “donos” da floresta, dos animais, dos rios ou das águas, para que certas regras sejam cumpridas tanto pelos Ashaninka quanto pelos “donos das coisas”. O cumprimento dessas regras garante aos Ashaninka bom cultivo e caça, ou seja, bom provimento de alimentos e ausência de males, como doenças ou pestes. O “dono dos animais” é Nantatsiri, o “dono das plantações” é Oretsi, que permite aos Ashaninka ter uma boa ou má colheita. Noonke é o “dono das águas e dos seres das águas”, e só oSheripiari é capaz de negociar e mediar a relação entre os Ashaninka e estes seres.

A vivência e a representação do cosmo Ashaninka repousa nos legados de ações dos seres sobrenaturais. Também através das histórias míticas contadas e vivenciadas se estabelece o vínculo entre o homem e as mais diversas realidades e mundos. Na perspectiva Ashaninka, essa época que estão vivenciando é caracterizada pela desestabilidade do cosmos, que ameaça a sobrevivência da vida de índios e não índios na Terra. Essas desestabilizações no equilíbrio, de forma tão radical, tem a ver com o destino provocado pelo próprio homem, e indica aos xamãs a eminência de catástrofes e perigos. Em muitos desses destinos, osSheripiari não tem mais o poder de intervenção, dado o grau de instabilidade das relações entre os seres sobrenaturais e o próprio Sheripiari. Eles acreditam que esses fenômenos anormais apresentam o início do fim e, ao mesmo tempo, de outra continuidade de toda vida no planeta.

PLANTAS MAESTRAS E AS TRANSFORMAÇÕES NO CLIMA

Para os Ashaninka, todas as plantas são windaotsiãtamerata, remédios da mata ou plantas que curam, mas a koka, a ayahuasca e as batatas (piri-piri ou ivenki) são mais respeitadas e reconhecidas por suas qualidades mágicas.

Com o uso do Kamaranpi (ayahusca), dos ivenki (piri-piri, espécie de batata) e dosheri (tabaco), os Sheripiari Ashaninka buscam compreender essa nova dinâmica do clima. Para os xamãs Ashaninka as plantas maestras têm agência de humanos e lhes ensinam os conhecimentos taquigrafados na natureza. Para eles, os espíritos dessas plantas, quando contatados, realizam intercâmbios, negociações, trazendo outros olhares sobre um tema. Nesses estados alterados do corpo, termo utilizado por Peter Gow, passa-se a conhecer agências invisíveis e a interagir com elas, os donos de determinados aspectos do mundo natural, na cosmovisão Kampa. Como o xamã é aquele que tem um profundo conhecimento dialógico, ele, por seus processos cognitivos, consegue entrar, estar e sair ileso do mundo invisível.

Segundo os Ashaninka, o Kamarampi é um dos maiores “livros” que a floresta tem, é muito rico em conhecimento. O tabaco é igualmente conhecedor de mistérios da floresta e da vida, e o piri-piri é o instrumento mais utilizado para entrar em contato com os donos dos tempos, da caça, dos rios e do roçado, e a Koka é uma Deusa que possui lugar de destaque no panteão Ashaninka.

O Kamaranpi é um importante conhecimento para a compreensão do mundo Ashaninka, e a bebida se faz presente em sua mitologia também para um devir visionário. O kamaranpi sempre foi utilizado pelos xamãs Ashaninka, e é notório pelas inúmeras etnografias dos povos de terras amazônicas terem nesta bebida um veículo para negociação com os donos de determinadas plantas e animais e os indígenas; mas, em tempos de mudanças climáticas, tem-se o uso do kamaranpipelo xamã como interlocutor entre os Ashaninka e os fenômenos climáticos.

As chuvas eram compreendidas pelos Ashaninka, muitas vezes, tendo no Piarentsi(festa da caiçuma) um termômetro de como estavam os ânimos dos Deuses da chuva no Inkite (céu): se Inkaniteri (Deus dono da chuva) estivesse bêbado, fazia cair antao inkani (chuva forte) porque estava derrubando sua caiçuma, mas se ele estivesse pouco bêbado, não derrubava, no entanto, se chove inkani pero (chuva fina) é porque os espíritos femininos que habitam o céu estão alegres e bêbados de caiçuma. Atualmente, segundo os Ashaninka, os Deuses não estão ficando mais bêbados e alegres na festa do Piarentsi, porque estão trabalhando muito, não param mais para se alegrar e, assim, não derrubam as cuias de caiçuma, logo, não chove. Um xamã Ashaninka observa que no Kamaranpi ele tem que conversar, dentre outras deidades, com os deuses que habitam o céu para negociar épocas de brocar e colocar roçado.

Muitos poderes do Sheripiari estão disponíveis para os Ashaninka comuns na forma de muitas plantas, como os ivenki. A esse tipo de planta são atribuídos poderes mágicos, tendo também o poder de fazer a ponte entre o mundo visível e o invisível. Segundo os Ashaninka, existe mais de trinta tipos de ivenki, e muitos são reconhecidos pelo seu formato “imitando” a pata de um animal, órgão do corpo humano ou artefato construído pelos Ashaninka, revelando, assim, a que serve. O conhecimento com o ivenki é passado dos mais velhos para os mais novos, uns de forma mais velada que outros.

É interessante notar que alguns ivenki possuem sexo, trazendo à tona sua condição humana. Assim, existem ivenki que são utilizados apenas por homens e outros por mulheres. Os ivenki femininos são utilizados pelas mulheres para questões relacionadas ao parto, à fiação e mesmo para atrair os homens. Os ivenkimasculinos são utilizados pelos homens principalmente para melhor caçar, pescar e, antigamente, fazer a guerra com outros povos.

Mas existem ivenki que são utilizados para modificar o tempo, como para atrair chuva, sol e curar doenças provenientes destes seres. Estes possuem uma cerimônia maior, sendo utilizados pelo Sheripiari com maior probabilidade de sucesso, apesar de não haver interdições para que outros Ashaninka os utilizem. Segundo os Ashaninka, existe ashivantsivenki para limpeza do roçado, que consiste em mastigar e cuspir na direção da área a ser limpa, para facilitar o trabalho de limpeza. Já o txiwasavenki era um ivenki utilizado para chamar o relâmpago e o trovão, e a chuva mais grossa, mas isso tempos atrás, porque atualmente não acontece. Muitos Ashaninka interpretam que o insucesso dos diversos usos doivenki se deve ao fato de que essa batata ficou pequena, portanto com pouco poder; outros entendem que além das batatas pequenas, são os Deuses que estão indóceis, vendo tanto desrespeito em relação ao mundo natural não fazem mais acordos com os Ashaninka.

Os Ashaninka entendem que atualmente os Deuses ou seres poderosos estão em constante confusão e paranoia, porque tampouco compreendem o que está se passando com o planeta Terra e as mudanças no clima. De acordo com alguns Ashaninka, a mesma loucura que os homens estão passando na Terra, as deidades experimentam em seus mundos. Atualmente, os xamãs não curam somente as enfermidades físicas e espirituais dos Ashaninka, buscam também interpretar para os Deuses o que se passa no mundo dos brancos e dos Ashaninka, agindo com uma estratégia psicanalítica e funcionando também como uma espécie de psicólogo das deidades, para que elas possam ter a possibilidade de compreender melhor sua função com os Ashaninka, e apoiá-los com o tema verão e inverno, o que significa contribuir para sua subsistência neste mundo.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Os Ashaninka, tal como apontado em minha hipótese inicial, possuem uma teoria nativa – uma compreensão do que está ocorrendo com os fenômenos climáticos e suas mudanças na região, e trazem isso em seu sistema sociocosmológico. À sua maneira vêm buscando agregar essas mudanças e alternativas a elas em suas vidas cotidianas. Nota-se que os Ashaninka estão tentando, ao seu modo, apreender, analisar cada percepção empírica, bem como o acionam novos símbolos recriando suas representações dentro de seu mundo. Desse modo, procuram dar conta da desordem, introduzindo novas ações e criando novas maneiras de pensar dentro de seu modo de entender o cosmos e o atual mundo da vida envolto pelas transformações no clima.

REFERÊNCIAS


BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 1977.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de Janeiro/Brasília: Tempo Brasileiro/CNPq, 1988.

FAULHABER, P. “As estrelas eram terrenas”: antropologia do clima, da iconografia e das constelações Ticuna. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 47, n. 2, p. 379-426, 2004.

LAMMEL, A.; GOLOUBINOFF, M.; KATZ, E. Aires y lluvias. Antropología del Clima e México. Ciudad de México: Centro de Estudios Mexicanos y Centroamericanos, 2008.

MESQUITA, E. Ver de perto pra contar de certo. As mudanças climáticas sob os olhares dos moradores da floresta do Alto Juruá. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.

VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naif, 2002.

______ Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. O que nos faz pensar, São Paulo, n.18, p. 225-254, set. 2004.

WEISS, G. Campa Cosmology. New York: Anthropological Papers of the American Museum of Natural History, 1969.


[1] Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e docente pesquisadora no Instituto Federal do Acre (Ifac).

[2] Os Ashaninka que vivem atualmente no Acre são provenientes do Peru, da região do Gran Pajonal, de onde são originários. Essa população migrou em diferentes épocas para o Brasil em razão da pressão do caucho, uns trabalhando para os patrões do caucho e outros para patrões madeireiros peruanos. Aqueles que não estavam sob os desmandos dos patrões, andavam pelas cabeceiras dos rios da região do Alto Juruá, onde se localizam atualmente as Reservas Indígenas dos Ashaninka em terras brasileiras. Os Ashaninka também perambulavam pelas cabeceiras do Rio Envira, onde atualmente localiza-se a Terra Indígena Kampa e Isolados do Envira.

Imagem destacada: Roça Ashaninka – Fonte: Arquivo pessoal. Foto: Erika Mesquita

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