Três poderes contra os direitos indígenas: entrevista de Henyo Barretto

Em entrevista exclusiva, o antropólogo Henyo Barretto avalia que as recentes homologações estão a anos luz de qualquer avanço no cenário das demarcações e que “há uma articulação poderosíssima costurando as três esferas de poder”

Por Clarissa Presotti, no Portal de Políticas Socioambientais

Esta semana saiu do papel um tímido pacote de homologações de Terras Indígenas (TI), após uma grande Mobilização Nacional Indígena que levou mais de 1,5 mil índios de todo o País, de 200 povos diferentes, ao Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília. Há dois anos nenhum decreto de homologação de TI tinha sido assinado pela presidente da República, Dilma Rousseff. O que fez com que o seu governo apresentasse o pior desempenho nesta temática desde a redemocratização do Brasil.

Após lideranças indígenas darem o seu recado no Congresso Nacional, e serem recebidos pelo ministro Miguel Rossetto e pelo vice-presidente da República, Michel Temer, eles esperavam muito mais do governo. Nesta quinta-feira (23), a articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) circulou uma nota em que qualifica como uma resposta “tímida e lacônica” a decisão do Planalto de homologar três TIs, no total de 232,5 mil hectares.

Para o antropólogo Henyo Barretto, que participou ativamente das discussões que culminaram na atual legislação que trata das demarcações de Terras Indígenas, “há indícios de uma articulação poderosíssima costurando as três esferas de poder para descaracterizar os povos indígenas como sujeitos de direitos”. Segundo Barretto, esse fator ajuda a entender um pouco o “nanopacote de bondades anunciado no dia 20 de abril, com três homologações – uma das quais é, a rigor, uma condicionante para a concessão da licença de operação da UHE de Belo Monte”.

Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Henyo avalia que esse pacote está a anos luz de representar qualquer avanço no cenário das demarcações. “Ele só faz reiterar que o Executivo pode mais e só não faz mais porque não quer”. Mas alguns compromissos políticos públicos foram reafirmados e assumidos durante a Mobilização Nacional Indígena. “E é em cima e a partir disso que a luta em defesa dos direitos prosseguirá”, avisa.

Nesta entrevista ao Portal de Políticas Socioambientais, o antropólogo que é diretor do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) fala das suas impressões sobre as estratégias do movimento indígena e das “propostas lesivas” que tramitam no Congresso nacional, como a PEC 215/2000, “que permitem não só modificar o rito administrativo de demarcação de TI, mas também dar outras destinações às terras indígenas”.

Portal: Como o senhor avalia a mobilização indígena deste ano e a “abertura” de diálogo com o Estado brasileiro que tenta retirar os direitos desses povos?

Henyo Barretto: Penso que o movimento indígena está experimentando diferentes formas de se relacionar com os poderes constituídos, e com o racismo e o preconceito institucionalizados que os indígenas sabem, por experiência própria e direta, está entranhado nesses poderes. Não se deve estranhar essa alternância de posturas e estratégias face à ordem colonial hegemônica. Os índios vêm fazendo isso desde os primeiros ataques e rebeliões Tupinambá contra posições europeias na primeira metade do século XVI. A guerra e a hostilidade abertas foram umas entre outras – ainda que as mais significativas – formas de resistir ao invasor, registrando-se na história hesitações e variadas formas de adaptação e acoplamento à formação social dominante.

Portal: Os indígenas foram homenageados no Congresso Nacional semana passada, e no final de 2014 foram tratados com violência e desrespeito por essa mesma instituição quando tentavam lutar pelos seus direitos. Como o senhor vê isso?

Henyo Barretto: Apesar da proximidade temporal, temos dois contextos diferentes: o fim de uma legislatura, desesperada para fazer passar às pressas tudo o que não conseguiu aprovar até então; e o início de outra legislatura, muito mais conservadora que a anterior, mas com quatro anos pela frente. O movimento indígena certamente fez essa leitura, e essa mudança de postura do Congresso e das forças de repressão pode ser entendida como resultado direto dessa oscilação na abordagem: uma tentativa de capturar o outro. Aliás, isso não deveria nos surpreender e quem sabe tenha raízes mais profundas do que estejamos propensos a admitir. Talvez até exista um fundamento nas socialidades e no pensamento ameríndio: a indispensabilidade dos outros, a impensabilidade de um mundo sem Outro, o reconhecimento da heteronomia como condição da autonomia.

Portal: E qual foi a estratégia para que os indígenas conseguissem ter acesso a esses poderes e finalmente serem ouvidos?

Henyo Barretto: Estou muito longe de saber exatamente como se construiu a estratégia do movimento indígena para esse ATL. Como espectador engajado, parece-me que a opção foi adotar uma estratégia que assegurasse aos índios reunidos no ATL acessarem os espaços de exercício ritual desses poderes e os seus protagonistas nos marcos das normas e procedimentos estabelecidos por estes (filas, identificações, contagens, limites etc). Suponho que fizeram uma leitura política – no que são muito mais sagazes do que nós – e que tenham percebido que, dada a correlação de forças na atual conjuntura, para barrar a PEC 215 e demais medidas legislativas e judiciais (além da inação e mutismo do Executivo) que os ameaçam, eles teriam que conversar com os seus potenciais algozes e não só pregar para nós que já estamos convertidos. Como diz uma camiseta que muitos usavam no ATL: a causa indígena é de todos nós – ou seja, não só de alguns de nós.

Portal: Como isso aconteceu na prática?

Henyo Barretto: Creio que todos os observadores atentos puderam perceber como isso se deu. Parece-me que se tratou de conquistar mentes e corações na sociedade mais ampla para essa causa – que é a da defesa de direitos fundamentais. Assim sendo, testemunhamos nesses dias as articulações com Renan (com quem plotaram a sessão solene no Senado), Cunha, Aécio, Temer, com os órgãos públicos do DF (incluindo a PM), com a Polícia Legislativa, entre outros, para viabilizar o ATL e fazer avançar as suas agendas políticas. Aqueles de nós que esperamos dos índios posturas de estátuas de mármore (altivas, tenazes e ideologicamente constantes), muitas vezes nos surpreendemos pelo seu comportamento de estátuas de murta (que crescem e se movimentam por vias insuspeitas) – para usar uma imagem de Antônio Vieira que ainda nos assombra, passados 350 anos.

Portal: Mas por que só foi possível tentar abrir esse diálogo agora?

Henyo Barretto: A rigor, como disse, podemos observar essa postura em outros momentos da história. A Constituinte, por exemplo, não foi um processo confrontacional – e isso apesar da pesada campanha difamatória e caluniosa que aconteceu à época contra a Igreja e o Cimi. O problema talvez seja menos do movimento indígena, com todas as suas hesitações e tensões internas (é claro), e mais da nossa percepção, ainda atravessada por categorias tutelares e colonialistas – pretensos jardineiros supostamente aptos a podar e dar forma a essas árvores de murta inconstantes. Uma pena não terem circulado as imagens da audiência de lideranças indígenas com o vice-presidente da República recebendo a camiseta contra a PEC 215. Não me admiraria que se tenha feito o seguinte raciocínio: “Se o PMDB é de fato o dono da bodega, é com ele que há que se negociar os descontos da fatura”.

Portal: O senhor acredita que pode ser um sinal de que vão ser finalmente ouvidos e que terão seus direitos respeitados?

Henyo Barretto: Não necessariamente. Política é, entre outras coisas, ação e disputa de poder simbólico. O Estado é, entre outras coisas, um teatro – cuja frente de palco é iluminada pela mídia corporativa. Os indígenas estão carecas de saber isso. Se por um lado, ocupou-se o Congresso (dentro dos procedimentos estabelecidos por este), por outro, as autoridades máximas das duas casas não se fizeram presentes e os políticos profissionais falaram mais do que os índios nas sessões solenes. As vozes indígenas, contudo, se fizeram ouvir e circularam, não só no Congresso, mas no Supremo (onde também estiveram os quilombolas) e em vários setores do Executivo, nos quais os vários grupos reunidos no ATL incidiram. Alguns compromissos políticos públicos foram reafirmados e assumidos, e é em cima e a partir disso que a luta em defesa dos direitos prosseguirá. Como diz o Davi Yanomami, político é como cobra grande: quer engolir todo mundo; e é costume de branco não ter limite para parar. Diante desse insaciável apetite de poder, a mobilização será constante e os indígenas estão cientes disso, e o têm reiterado. Uma indigestão dessa cobra grande já seria uma importante conquista.

Portal: Então existe alguma possibilidade da PEC 215 não ir pra frente?

Henyo Barretto: Muitas possibilidades existem, tanto de ir, quanto de não ir pra frente. Ficou evidente por manifestações recentes dos ruralistas, principalmente em recente audiência pública em que o presidente da Funai foi arguido e nos requerimentos anódinos aprovados na primeira reunião ordinária da nova Comissão Especial da PEC 215, que estes não estão mais tão seguros de sua própria estratégia e passam a se questionar sobre as consequências insuspeitas do Congresso se tornar protagonista dos vários procedimentos de demarcação em andamento que se encontram judicializados. Por sua vez, parece ficar cada vez mais claro que a PEC 215 é uma isca para tentar fazer passar, por meio de negociações espúrias internas ao atual bloco de poder, outras medidas legislativas tão lesivas quanto, que permitam não só modificar o rito administrativo de demarcação de TI, mas também dar outras destinações às terras indígenas – que não a posse permanente e o usufruto exclusivo destas pelos índios.

Portal: E qual seria o caminho?

Henyo Barretto: O campo de batalha se ampliou e o ATL sinalizou isso com os protestos em frente ao STF, debaixo de muita chuva, logo no primeiro dia. Há indícios de uma articulação poderosíssima costurando as três esferas de poder para descaracterizar os povos indígenas como sujeitos de direitos. Isso ajuda a entender um pouco o nanopacote de bondades anunciado no dia 20 de abril, com três homologações – uma das quais é, a rigor, uma condicionante para a concessão da licença de operação da UHE de Belo Monte. Perverso, não? Esse nanopacote, que está a anos luz de representar qualquer avanço no cenário das demarcações, só faz reiterar que o Executivo pode mais e só não faz mais porque não quer. Voltando à pergunta, penso que potencializar as eventuais fissuras e rachaduras no bloco de poder dominante talvez seja um caminho. Se os indígenas optarem por esse caminho, estejamos preparados para mais surpresas.

Foto: Sérgio Lelis – Coedu/ICMBio

Comments (2)

  1. Cara Clarissa, desculpe-nos pelo lapso ocorrido. Informamos que o mesmo já foi reparado.
    Abraços!

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