Macuxizando a Justiça Estadual

Ana Paula Caldeira Souto Maior*

Inicia-se hoje o primeiro júri popular a ser realizado dentro de uma comunidade indígena. A experiência vem sendo difundida como importante também por ser o primeiro júri popular composto apenas de indígenas no seu corpo de jurados . A transposição de uma instituição do judiciário estatal, para dentro de uma terra indígena, não torna porém, automaticamente indígena a decisão final, mas aproxima a Justiça Estadual dos povos indígenas, de seus usos, costumes e organização social. Existem dúvidas se tomar uma coisa por outra não possa frustrar essa que parece ser a intenção da comunidade do Maturuca.

Pode ser que o centro de origem da organização indígena política no Estado, onde nasceu o próprio CINTER (Conselho Indígena do Território de Roraima, depois CIR com a transformação do território em Estado, com a Constituição Federal de 1988) aceitou realizar o julgamento de dois índios Macuxi, moradores da comunidade Enseada, presos em flagrante por atentarem contra a vida de um outro Macuxi, da comunidade do Orinduque, ambas vizinhas do Maturuca e todas na Região das Serras, no norte da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, para aumentar os laços de compreensão e entendimento entre dois mundos muito diversos, o dos Macuxi e o nosso.

Os Macuxi tiveram uma experiência de exercício de aplicação autônoma da sua forma de fazer justiça respeitada plenamente pela Justiça Federal quando em meados dos anos 90 houve o julgamento do seu ex-vice tuxaua Basílio da comunidade Maturuca, que havia morto outro índio da própria comunidade. Neste caso Basílio foi preso, mas depois solto a pedido da comunidade que o julgou, o penalizou com a remoção para outra comunidade na região das Serras, onde inicialmente trabalhou para a família da vítima e não pode levar a sua família que apenas depois de um tempo pode se juntar a ele. Por ser um homem com atributos de liderança, a comunidade que o recebeu para cumprir sua pena quis elegê-lo como tuxaua, o que foi negado pelo órgão julgador indígena.

Por ter sido preso e ter se iniciado um processo penal, o Ministério Público Federal o pronunciou e a Justiça Federal realizou o júri, aqui em Boa Vista. O juiz solicitou, no entanto, um parecer antropológico para analisar a situação de cumprimento da pena, que foi disponibilizado aos jurados. Estes entenderam que Basílio era responsável pela morte, mas o juiz federal deixou de aplicar a pena prevista no nosso código penal por entender que Basílio já havia sido punido pelo seu povo próprio povo, de acordo com o princípio de direito do bis in idem – ninguém pode ter aplicada a mesma lei duas vezes pelo mesmo ato, neste caso, punido duas vezes por um mesmo crime.

Entendo ser esse um exemplo perfeito de respeito e aceitação de existência de duas formas de julgar e fazer justiça. Teria sido interessante se a Justiça de Pacaraima, onde corre o processo, tivesse paralisado a tramitação deste processo e dado às comunidades indígenas a chance de decidir de forma autônoma sobre o caso, posteriormente comunicando ao juiz a sua decisão e este homologasse a decisão da comunidade.

Recentemente, em um caso de adoção de uma criança Ingarikó, por família do mesmo povo, em processo que tramitou na Vara da Infância e Juventude de Boa Vista, o juiz estadual atendeu o pedido da comunidade indígena, o que foi endossado pelo promotor de Justiça que homologou a decisão. A sentença incluiu um dispositivo inovador que determinou ao Cartório cumprir de imediato a decisão. Não houve necessidade de publicação da decisão para que depois o Cartório expedisse a certidão de nascimento da criança. A família saiu direto da audiência para o Cartório, resumindo o seu tempo na cidade e os gastos decorrentes. Sem dúvida um passo importante para famílias que dispõem de poucos recursos financeiros para se deslocarem e se manterem na cidade para terem atendidos os seus direitos de cidadania.

Apenas para esclarecer, o caso de adoção foi para a Justiça Estadual porque a mãe da criança morrera de parto, por falta de remoção da SESAI e a criança foi removida para a cidade, onde depois de sair do hospital , foi internada pelo Conselho Tutelar, num destes equívocos comuns que tornam complicada a vida dos índios na cidade, num abrigo para menores. Felizmente a decisão do juiz da Vara da Infância e Juventude e a ação do promotor, inovadoras, remediaram de fato esta situação.

A realização de um júri, mesmo que numa comunidade indígena e constituído de jurados indígenas, o que já existe na Justiça Federal, que usou o mecanismo de oficiar às organizações indígenas com sede em Boa Vista para que fornecessem nomes de indígenas para compor corpo de jurados quando fosse decidir sobre crimes cometidos por indígenas, remete à atuação do Estado Americano, que a propósito de respeitar a autonomia dos povos indígenas nos Estados Unidos, os incentivava a reproduzir no século XX, cortes indígenas feitas ao modelo das cortes oficiais americanas.

Em termos de prestação de justiça, neste crime praticado por indígenas, contra um indígena, dentro de uma terra indígena, envolvendo fortes temas da cultura indígena circum Roraima como o Canaimé, a aplicação de um instituto formal da justiça estatal poder ser compreendida como um ato da comunidade que busca Macuxizar a Justiça Estadual de Roraima. O fato da aplicação da justiça indígena não compreender apenas o aspecto penal, mas buscar compensar a família da vítima de uma forma que busca restaurar a paz dentro de uma comunidade é porém, mais um dos aspectos que tornam a experiência limitante. A participação no Júri de pessoas que desconhecem completamente a cultura Macuxi, acusando e defendendo membros das comunidades deste povo é um custo a ser suportado. Espera-se que seja o único e não seja fator de desestabilização social posterior ao julgamento.

O Estado de Roraima por ter quase metade do seu território habitado por povos indígenas, que tem uma atuação política organizada nas últimas quatro décadas que serve de inspiração para outros povos indígenas do país e influencia a decisão da Justiça sobre os direitos indígenas, como houve no julgamento pelo STF da demarcação da TI Raposa Serra do Sol, é naturalmente um lugar interessante para novas experiências. Neste caso, a realização de júri que mobiliza advogados de outros estados, acadêmicos locais, de outros estados e mesmo de outros países, e principalmente autoridades do Judiciário Local, pois é esperada a presença do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado no evento, ou seja, o julgamento tem, além de promover o diálogo entre duas culturas distintas, o mérito de chamar a atenção nacional para o tema do pluralismo jurídico e a obrigação do Estado Brasileiro de respeitar plenamente as instituições indígenas.

*Advogada do Instituto Socioambiental (ISA)

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