O Rio São Francisco completa hoje 510 anos de seu “batismo”. O Opará dos indígenas – “rio-mar” ou “sem paradeiro definido” – tornou-se ao longo dos séculos “rio dos currais” e “rio da integração nacional”, gerador de energia elétrica e grande pólo de irrigação agrícola. Nos últimos 70 anos, intensificaram-se as produções de riquezas em suas margens e em seus biomas formadores (cerrado, mata atlântica e caatinga). Em conseqüência, as degradações várias e cumulativas chegaram ao ponto do quase esgotamento do seu complexo de vida. Foi de 35% a perda de sua vazão nos 56 anos entre 1948 e 2004, segundo o Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica (NCAR – Colorado / EUA), a mais grave entre os maiores rios do mundo. Os piores impactos recaem sobre a população pobre da Bacia Hidrográfica. Mais que sobreviver, ela resiste, toma iniciativas e cobra uma revitalização real já! É quase só isso o que se tem a celebrar hoje, além do próprio rio!
A Articulação Popular São Francisco Vivo – SFVivo, que congrega cerca de 300 entidades sociais da Bacia, entre movimentos, associações, sindicatos, pastorais e ONGs, vem a público e perante as autoridades para denunciar a continuidade dos desmandos contra o rio e seu povo; e convocar todos e todas a se unirem em iniciativas concretas em defesa da vida que ainda resta no São Francisco – Terra e Água, Rio e Povo.
Quatro anos depois de iniciado o projeto de transposição para o Nordeste chamado Setentrional, as principais críticas ao projeto se confirmam. A revitalização da Bacia, tarefa imensa, cobrada há tempos, veio num programa governamental mínimo como “moeda de troca” pela transposição, e se arrasta incompleta, insuficiente, sob suspeitas de corrupção, sujeita ao jogo dos interesses político-eleitorais. Pensa-se encobrir as evidências com eventos festivos e shows de artistas famosos durante esta semana, em algumas cidades ribeirinhas, sob o slogan de “São Francisco Vive”, cópia mal intencionada da divisa de nossa Articulação. Pretender com marketing “resolver” a grave situação do Velho Chico é tripudiar sobre a sorte de milhões de pessoas e um inúmero conjunto de espécies e formas de vida.
Transposição: obras confirmam críticas
Nossas críticas e alertas quanto à transposição, feitas por organizações da sociedade civil e cientistas isentos, que sempre contestamos a obra e suas razões, já se comprovaram:
1. A obra seria muito mais cara que o previsto: de 5 bilhões iniciais já estão reajustadas em 6,8 bilhões, um aditivo de 1,8 bilhões, 36% em média. Há lotes ainda não re-licitados, o que vai onerar ainda mais o preço final.
2. Não atenderia a população mais necessitada: efetivamente, não pôs uma gota d’água para nenhum necessitado; antes desmantelou a produção agrícola local por onde passou.
3. O custo da água seria inviável: hoje o governo reconhece que o metro cúbico valerá cerca de R$ 0,13 (poderá ser ainda bem maior), seis vezes maior que às margens do São Francisco, onde muitos irrigantes estão inadimplentes por dívidas com os sistemas de água. Para ser economicamente viável, este preço terá que ser subsidiado, e é certo que o povo pagará a conta;
4. Impactaria comunidades indígenas e quilombolas: comunidades quilombolas impactadas são 50 e povos indígenas nove. As demarcações de seus territórios foram emperradas, patrimônios destruídos. No caso dos Truká, em Cabrobó – PE, em cuja área o Exército iniciou o Eixo Norte, o território já identificado é demarcado se aceitarem as obras. No caso dos Tumbalalá, em Curaçá e Abaré – BA, na outra margem, se aceitarem a barragem de Pedra Branca. Ainda não foi demarcado pela FUNAI o território Pipipã e concluído o processo Kambiwá, a serem cortados pelos futuros canais, ao pé da Serra Negra, em Pernambuco, monumento natural e sagrado de vários povos. Muitas destas comunidades resistem. Em Serra Negra povoado e assentamento de reforma agrária não admitem as obras em seu espaço.
5. Destruiria o meio ambiente: grandes porções da caatinga foram desmatadas. Inventário florestal levantou mais de mil espécies vegetais somente no Eixo Leste.
6. Empregos precários e temporários: como sintetizou o cacique Neguinho Truká, “os empregos foram temporários, os problemas são permanentes”. Em Cabrobó, nada restou da prometida dinamização econômica, só decepção e revolta. Nas cidades por onde a obra passou ficou um rastro de comércio desorientado, casas vazias, gente desempregada, adolescentes grávidas…
7. Arrastadas no tempo, a obra se presta a “transpor” votos e recursos: não debela, antes realimenta a “indústria política da seca”. Nova precisão de data para conclusão: 2014! Vem mais uma eleição aí, em 2012, outra em 2014…
8. Faltam duas das conseqüências graves a serem totalmente comprovadas, que só teremos certeza se a obra chegar ao fim: vai impactar ainda mais o rio São Francisco e não vai levar água para os necessitados do Nordeste Setentrional. Enfim, a Transposição é para o agro-hidronegócios e pólos industriais do Pecém (CE) e Suape (PE).
Portanto, mantemos a crítica ao projeto. O governo reconhece oficialmente que cinco lotes estão parados, e os nove restantes estão em ritmo lento. Já foram gastos 3,5 bilhões de reais. Alegam que a obra “começou sem ter qualquer projeto executivo”, pelo que se deveriam prever custos… Já é longo o histórico de problemas do projeto, seguidas vezes suspenso ou sob suspeição do Tribunal de Contas da União. A pressa era eleitoral, o retardo é venal!
A título de comparação, pensando em menos custos, mais eficiência e eficácia, com esse dinheiro poderiam ter sido feitas 2.187.500 cisternas, beneficiando uma população total de 11 milhões de pessoas.
Em outra opção, com esses recursos poderiam ter sido custeadas mais de 1/3 das adutoras previstas pela Agência Nacional de Águas – ANA para o Nordeste não entrar em colapso hídrico até 2025. Portanto, já teria beneficiado seguramente 12.883.333. Com metade dos recursos da transposição, já teria sido beneficiada mais gente que os 12 milhões de pessoas que a obra promete atender. Entretanto, nenhuma dessas adutoras está em andamento!
Com o programa “Água para Todos”, o governo Dilma intensificou o programa de cisternas para abastecer a população difusa com mais 800 mil unidades. É um tácito reconhecimento de que as propostas da sociedade civil eram as mais corretas para abastecimento doméstico da população. E de que a transposição não é para matar a sede de 12 milhões!
Ainda há tempo de preparar a região para o presente e o futuro em termos de segurança hídrica. Segundo o Atlas Nordeste da ANA seriam necessários pouco menos de R$ 10 bilhões para abastecimento urbano de 39 milhões de pessoas em 1794 cidades dos nos nove estados da região. Obras que a despeito da transposição terão que ser feitas.
O aquecimento global poderá significar para o semiárido quase o dobro de aumento da temperatura em outras regiões. Não é aconselhável expandir os negócios intensivos em água e solos, ainda que sejam agora altamente lucrativos, com subsídios públicos e demandas crescentes do mercado global. É uma escolha política, não uma sina econômica.
Revitalização paliativa
O programa governamental de revitalização, afora um pequeno aumento de recursos, em nada foi melhorado. Continua setorial e desconexo, longe das causas estruturais dos processos de degradação sócio-ambiental da Bacia. Reduz-se a obras de saneamento básico e ambiental, melhoria da navegabilidade e recuperação de matas ciliares. Avançou um pouco mais nas primeiras, mas como muitos problemas como se verá, e quase nada nestas últimas. Em se tratando de transposição e revitalização, dois são os pesos e duas as medidas.
Numa falsa abertura à participação da sociedade coletou mais de 300 propostas, a maioria das quais o Ministério da Integração descartou por não apresentarem ou não se transformarem em projetos exeqüíveis, dentro dos marcos legais… Está-se a sugerir que a sociedade é a culpada por não se recuperar seu rio?
A título de Programa de Revitalização do Rio São Francisco – PRSF incluem-se todas as ações possíveis do governo federal, de vários setores, muitas em parcerias com os governos estaduais da Bacia, de modo a inflar os números, parecer menos discrepante com a transposição. Nos períodos eleitorais temos assistido como se decidem as destinações de verbas, para os mais variados fins… E não há transparência, não se tem como saber muito menos acompanhar o andamento das ações.
No site do Ministério da Integração os dados estão desatualizados. Falam de aplicados R$ 194,6 milhões entre 2004-2007 e da “previsão” de R$ 1,2 bilhões no PAC – Plano de Aceleração do Crescimento 2007-2010. No caso do “esgotamento sanitário” seriam atendidos todos os 102 municípios da calha. O último relatório do programa disponível é de dezembro de 2007. Já o site do Ministério do Meio Ambiente diz que “as ações para a revitalização estão inseridas no Programa de Revitalização de Bacias Hidrográficas com Vulnerabilidade Ambiental do Plano Plurianual (PPA 2004/2007 e PPA 2008/2011) e será complementado por outras ações previstas em vários programas federais do PPA”. De fato aparecem setorialmente neles. Já à agenda não se tem acesso em site nenhum, nem à execução orçamentária. O que se quer esconder?
Fomos conferir de perto aquelas que nos parecem as obras principais do PRSF: as de esgotamento sanitário. Membros da SFVivo percorreram o traçado destas obras em algumas cidades ribeirinhas. Notícias da revitalização, inclusive a popular, vêm também da região de Bom Jesus da Lapa. Veja em anexo no DOSSIÊ “Revitalização no Esgoto”.
Ao cabo, podemos reafirmar que ao PRSF falta precisão conceitual, pois visa remediar e não combater as causas da degradação, não melhora os principais aspectos dos ecossistemas implicados. Como está a reboque da transposição, fica condicionado e submisso aos interesses por trás deste projeto prioritário. Não parte de um diagnóstico amplo e profundo da bacia e não propõe um Zoneamento Econômico e Ecológico realista e responsável. O enfoque centrado em esgotamento sanitário urbano desconsidera as outras causas de degradação e perde efetividade em relação à carga total de poluição, oriunda também de outras atividades de exploração. As obras de desassoreamento e contenção de erosão das margens são ações experimentais voltadas para a hidrovia, que não atingem as causas relacionadas ao desmatamento descontrolado; ficaram restritas ao Campo de Provas da Barra-BA, que está abandonado. Não comporta medidas para garantir um consumo racional da água, evitando a superexploração da vazão do Rio e de seus afluentes, nas áreas de recarga, sobretudo pela irrigação e mineração. Conta com recursos muito aquém de uma obra monumental, trabalho de decênios. A estrutura do programa dá a impressão de uma “colcha de retalhos”, juntando vários projetos sob um programa “guarda-chuva”, sem visão estratégica e sistêmica.
Devido à aplicação de parcos recursos em projetos fragmentados, desarticulados e sem continuidade, não existe um programa nem um processo que pense a Bacia no seu conjunto. Em vez de uma pulverização de ações isoladas, é necessário estabelecer um consistente Programa de Desenvolvimento Sustentável do Cerrado, da Mata Atlântica, do Semi-Árido e da Bacia Hidrográfica do São Francisco, com início, meio e fim, metas plurianuais e indicadores mensuráveis, no contexto do qual seja possível estabelecer uma ação integrada do governo, agentes econômicos e sociedade civil visando o enfrentamento definitivo da falta de água, assim como os conflitos de uso dos recursos naturais e a recuperação hidro-ambiental do Rio e seus afluentes. (Cf. Andrea ZELLHUBER & Ruben SIQUEIRA, Rio São Francisco em descaminho: degradação e revitalização. Salvador, Cadernos do CEAS, n. 227, 2007. Disponível em: http://www.saofranciscovivo.com.br/files/CEAS_227_especial%20RSF.pdf. Acessado em: 02/09/2011.)
Também no Estado é possível ter uma ação sistêmica e integrada – é o que demonstra a Fiscalização Preventiva Integrada – FPI, promovida pelo Ministério Público Estadual da Bahia / Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco – NUSF, em parceria com os mais diversos órgãos estaduais e federais que têm atuam na Bacia. Suas realizações na Bahia, iniciando também em Sergipe, têm significado esperança de controle e punição sobre a extensa gama de ilegalidades socioambientais cometidas.
Fica, portanto, o desafio de efetivar-se um processo de revitalização que consiga ampliar a relação entre a sociedade civil organizada e o Estado, que crie uma opinião pública favorável e partícipe de fato de ações de revitalização. À população em geral cabe superar a letargia, descrer dos messianismos e mobilizar-se permanentemente, a pressionar os governantes para que revejam as políticas desenvolvimentistas, dialoguem honestamente com o povo – que é a maior riqueza do São Francisco –, em vista de ações revitalizadoras reais, efetivas e transparentes.
Até quando a sociedade barranqueira e brasileira vai assistir conformada aos desmandos que um diminuto grupo poderoso política e economicamente faz para si mesmo, na Bacia do São Francisco, no Nordeste e no Brasil, com vultuosos recursos públicos, sob o manto da democracia representativa, em nome do “desenvolvimento” social e da proteção ambiental? Reciclam-se os discursos (sustentabilidade) e os métodos (corrupção), para continuar a mesma sina (dominação e exploração). A sanha “crescimentista” sobre os recursos naturais e culturais da Bacia parece interminável: além da transposição, multiplicação das minerações e irrigações, Ferrovia Oeste-Leste, minerodutos, parques eólicos e usina nuclear… O planeta dá sinais de que não suporta mais, a humanidade se rebela em ruas e praças. Há esperança, e ela vem do povo unido e organizado. Como neste 510º 4 de outubro, ao dar a quem tanto nos ofereceu o “gole d’água” de sua luta pelo São Francisco Vivo – Terra e Água, Rio e Povo!
Rio São Francisco, 4 de outubro de 2011.
Articulação Popular São Francisco Vivo.